01/05/2024
Ano 27

Semana 1.365







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




O novo álbum duplo de Mônica Salmaso e Chico Buarque




Cândido Luiz de Lima Fernandes



Em 1975, o álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia - Ao Vivo” reunia o compositor carioca e a intérprete baiana, então já grandes nomes da música brasileira. Desde então, décadas e discos depois, Chico nunca mais havia dividido um projeto com outra cantora, até o seu mais recente lançamento, “Que tal um samba? (Ao Vivo)”, pela gravadora Biscoito Fino, em que ele convidou a paulistana Mônica Salmaso para compartilhar as 31 músicas do seu repertório em turnê pelo Brasil e no disco duplo.

Mônica Salmaso é uma das mais habilidosas cantoras brasileiras da atualidade, seja pelo ecletismo do seu repertório como pela maestria vocal com que interpreta canções. Ela é antiga conhecedora do repertório de Buarque, pelo qual já tinha passeado no seu disco “Noites de gala, samba na rua” (2007), todo com composições do carioca. Ainda assim, foi uma surpresa para ela o convite para realizar uma turnê ao lado de Chico.

“Foi um presente que eu jamais imaginei ganhar na minha carreira e na minha vida. Por isso, pelo tamanho que a obra do Chico tem na minha formação musical e pessoal, eu me dediquei completamente à turnê, vivi cada momento intensamente”, conta Mônica, em recente entrevista.

Diferentemente do habitual - em que um disco de estúdio dá origem a um show/turnê e, posteriormente, disco ao vivo -, foi a partir do single “Que tal um samba?” que se originou o show, a turnê e o álbum, gravado no Vivo Rio.

O repertório de “Que tal um samba? (Ao Vivo)” - assim /como a própria canção - sugere um desconjuro da maré de fascismo que se insinuava no País em 2022 e vai evoluindo como que fazendo uma travessia desta tempestade rumo à bonança. Estão lá músicas que abrangem as dimensões poéticas de Chico - social, individual, política e romântica - registrando e ressignificando, junto ao público, a própria história do Brasil.
“Chico não colocou no repertório nenhuma música icônica-explícita como se esperava (‘Apesar de Você’, ‘Cálice’ etc). “Ao invés disso, ele chamou as pessoas para a ‘volta pra casa’. Uma casa cheia de deficiências e de coisas por fazer. Mas, a nossa identidade de volta. Essa opção, a meu ver, tocou mais profundamente a todos", completou Salmaso.

Mônica Salmaso não apenas canta com Chico Buarque no álbum. Coube a ela, em todas as 65 apresentações da turnê, iniciar o show cantando sozinha. Chico se junta a ela a partir de “Paratodos”, faz alguns números solo, para, depois, voltar ao duo com Salmaso.

No repertório, algumas canções rendem homenagens: Chico e Mônica cantam, juntos, “Biscate” (que ele havia dividido com Gal Costa, no disco “Paratodos”); já “Maninha”, ele canta para a irmã Miúcha. As tensões sociais estão em “Bancarrota Blues”, “O meu guri”, “Assentamento”, “As caravanas”, entre outras.

Seja em seus momentos mais sublimes, ou nos mais românticos, até nos mais tensos, o desconjuro cantado por Chico e Mônica – e perceptível na audição do álbum – foi conduzido e irmanado pelo afeto. “Nos shows a gente viveu o afeto coletivo, a união e a soma de forças dos nossos valores mais preciosos. O afeto é muito mais poderoso do que o embate. Estava tudo lá!”, celebra Mônica.

Que tal um samba? (ao vivo)" traz algo mais do que a princípio possa parecer: é o registro de um artista no encontro com uma geração que enfim - e pelas mais diversas razões - fez dele uma figura pop no melhor dos sentidos.

Crônica da aflição em meio ao desmonte (do país, da razão) dos últimos anos, a composição de combativo otimismo reuniu força suficiente para ancorar um repertório de 31 canções, das mais variadas fases de uma carreira de seis décadas. "Que tal um samba?" é um evento, palco para todas os gritos engasgados na garganta, com canções que são o mais perfeito veículo para tal. É meio como estar diante de Bob Dylan: a idade maltratou a voz, a banda é praticamente a mesma há décadas, mas é ele, cantando as suas próprias canções. Ninguém vai esperar ouvi-las como nos discos, o que vale ali é a experiência Chico Buarque.

Não sendo como Caetano Veloso e Gilberto Gil, tropicalistas que mudaram de roupa musical muitas vezes do longo das carreiras, Chico justifica (mais) esse registro ao vivo pela fidelidade aos seus valores musicais. O samba, em primeiro lugar, e depois a bossa nova com profundidades eruditas de Tom Jobim, seu maestro soberano.

Na observância atenta desses paradigmas e um olhar aguçado para a inustiça e a beleza de cada um dos períodos em que viveu, ele construiu uma obra das mais sólidas e abrangentes da música popular brasileira - que não perde riqueza nem mesmo em um recorte tão específico quando o desse show.

Mônica Salmaso abre o espetáculo (e o disco) com “Todos juntos” (do musical “Os Saltimbancos”), batuca um tamborim e canta o samba “Bom tempo” e singra com maestria e beleza pelos contornos melódicos (e pela poesia) de “Beatriz” (parceria de Chico e Edu Lobo, do musical "O Grande Circo Místico"), arrancando merecidos aplausos.

Chico só surge no palco, para juntar-se a Mônica, em "Paratodos" (faixa-título do LP de 1993), e com ela interpreta "Sinhá", uma das suas mais fortes canções recentes (ou melhor, de um de seus últimos álbuns, "Chico", de 2011). Juntos, eles ainda prestam uma homenagem a Gal Costa, na forma de "Biscate", canção do repertório da cantora falecida em novembro do ano passado (quando o espetáculo já estava na estrada).

Sem Mônica, Chico ressalta o brilho dos violões de “Choro bandido”, faz o público acompanhá-lo em “Sob medida” e dá a sua interpretação sóbria e carinhosa para “Bastidores” – música feita para a irmã Cristina e consagrada por Cauby Peixoto. Logo depois, em “Mil perdões”, ele presta outro tributo a Gal, dona suprema dessa composição.

Em momento mais contemplativo do show é a vez de Chico estimular o coro da plateia, em clima festivo, com a naturalmente melancólica “Futuros amantes” (do LP "Paratodos") e de dar um retrato cruel (e atemporal) do país em “Bancarrota blues”. “Tua cantiga” e a tensa “Caravanas” (fundida à antiga “Deus lhe pague”) mostram o poder do repertório mais recente do compositor, para desembocar em “Que tal um samba?”, com o baixista Jorge Helder fazendo o bandolim de Hamilton de Holanda – hora em que o público lava a alma.

Ao fim, "Maninha", que era para ser só uma homenagem à irmã Miúcha (falecida em 2018, e com quem ele gravou o dueto na versão original), acaba sendo (a despeito da alta voltagem lírica impressa por Mônica Salmaso) um dos grandes momentos políticos do show, com um público que aplaude com vontade os versos (cantados entre risos) “que um dia ele vai embora / ô, maninha / pra nunca mais voltar”.

Obviamente, a sensação é irreproduzível em disco, mas “Que tal um samba? (ao vivo)” pode reavivar as lembranças de quem esteve lá - e fazer sonhar quem não esteve. Nessa travessia de "inferno e maravilhas", Chico recorreu ao seu amplo e fundamental cancioneiro e de lá extraiu 31 faixas que formam o repertório do álbum, em que tem a companhia da sofisticada intérprete paulista Mônica Salmaso. São releituras de clássicos e históricas canções buarqueanas, que vão de abordagem lírica à temática atual, que ganharam novos significados com o decorrer do tempo — tornando-as atemporais.

Tensões podem ser observadas em parcerias do compositor com Edu Lobo (“Sinhá”, “Bancarrota Blues”), Francis Hime (“Passaredo”), Sérgio Bardotti e Luís Bacalov (“Os Saltimbancos”), “Caravanas”, “Deus lhe pague” e “Meu Guri”, para as quais “Bom Tempo” é um contraponto. Há canções como “Mar e Lua”, que retrata o dramático amor lésbico, ressurgindo como novidade num período em que ainda persiste a repressão a casais homoafetivos. Ela está lado a lado na trilha sonora amorosa proposta por Chico que traz as virtuosas “Noite dos Mascarados”, “Sem fantasia”, “João e Maria”, “Sob Medida”, “Choro Bandido”, “Beatriz”, “As minhas meninas”, “Futuros amantes”, “O Velho Francisco” e “Samba de um grande amor”, entre outras.

Mônica Salmaso, que dividiu o palco com Chico na turnê de Que tal um samba, tinha profundo conhecimento da obra de Chico Buarque. Ela deu prova disso nos álbuns “Voadeira” (1999) e, principalmente, no “Noite de Gala, Samba na Rua” (2007) — este totalmente dedicado ao legado do compositor carioca. Um ano antes, ele havia convidado Mônica para participar do CD “Carioca”, na faixa “Imagina”.

A presença de Salmaso em “Que tal um samba?” proporcionou maior leveza ao espetáculo por estimular Chico a exercitar sua improvável faceta teatral, ao se mostrar mais solto nos duos e solos. O show festeja o canto feminino, uma vez que presta tributo às saudosas Gal Costa e Miúcha, evocadas em Mil perdões e Maninha.

Acompanhada pela banda de Chico Buarque, a cantora paulistana inicia o show com "Todos juntos", do musical "Os saltimbancos", e interpreta ainda "Passaredo" e "Beatriz", um dos momentos mais aplaudidos. Depois de ser apresentado em "Paratodos", o cantor entra no palco para dividir com Mônica a interpretação de "O velho Francisco" e eles fazem duetos em músicas, “Sinhá" (João Bosco/Chico Buarque),"Sem fantasia" (Chico Buarque), "Biscate" (Chico Buarque) e "Imagina" (Tom Jobim/Chico Buarque) e, no bis, "Maninha" (dedicada à Miúcha, irmã de Chico, que morreu em 2018, "Noite dos mascarados" e "João e Maria" (composição com Sivuca, também homenageado pelo autor da letra).
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Chico canta sozinho "Choro bandido" (Edu Lobo/Chico Buarque), "Desalento" (Chico Buarque/Vinícius de Moraes), "Sob medida" (Chico Buarque), "Nina" (Chico Buarque), "Blues pra Bia" (Chico Buarque), "Samba do grande amor" (Chico Buarque) "Injuriado" (Chico Buarque) i9com Mônica Salmaso "Tipo um baião" (Chico Buarque), "As minhas meninas" (Chico Buarque), "Uma canção desnaturada" (Chico Buarque) - Com Mônica Salmaso,) "Morro Dois Irmãos" (Chico Buarque), "Futuros amantes" (Chico Buarque), "Assentamento" (Chico Buarque), "Bancarrota Blues" (Edu Lobo/Chico Buarque) , "Tua cantiga" (Cristóvão Bastos / Chico Buarque), "Sabiá" (Tom Jobim/Chico Buarque), "O meu guri" (Chico Buarque), "As caravanas" (Chico Buarque), com citação de "Deus lhe pague" (Chico Buarque) e fecha o show com "Que tal um samba?" (Chico Buarque) - com Mônica Salmaso.

No bis, Chico e Mônica cantam "Maninha" (Chico Buarque), "Noite dos mascarados" (Chico Buarque) e "João e Maria" (Sivuca/Chico Buarque)

Os dois têm a companhia da banda liderada por Luiz Cláudio Ramos (responsável pelos arranjos de guitarra e violão) e formada por João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo, violão bandolim), Jurim Moreira (bateria), Chico Batera (percussão), Marcelo Bernardes (sopros) e Bia Paes Lima (teclado e voz). Daniela Thomas assina a cenografia com 25 imagens dos fotógrafos brasileiros Araquém Alcântara, Sebastião Salgado, Thereza Eugênia e Cristiano Mascaro.



Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com



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Direção e Editoria
Irene Serra