O novo álbum duplo de Mônica Salmaso e Chico Buarque

Cândido Luiz de Lima Fernandes
Em 1975, o
álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia - Ao Vivo” reunia o compositor carioca e a
intérprete baiana, então já grandes nomes da música brasileira. Desde então,
décadas e discos depois, Chico nunca mais havia dividido um projeto com outra
cantora, até o seu mais recente lançamento, “Que tal um samba? (Ao Vivo)”, pela
gravadora Biscoito Fino, em que ele convidou a paulistana Mônica Salmaso para
compartilhar as 31 músicas do seu repertório em turnê pelo Brasil e no disco
duplo.
Mônica Salmaso é uma das mais habilidosas cantoras brasileiras da
atualidade, seja pelo ecletismo do seu repertório como pela maestria vocal com
que interpreta canções. Ela é antiga conhecedora do repertório de Buarque, pelo
qual já tinha passeado no seu disco “Noites de gala, samba na rua” (2007), todo
com composições do carioca. Ainda assim, foi uma surpresa para ela o convite
para realizar uma turnê ao lado de Chico.
“Foi um presente que eu jamais
imaginei ganhar na minha carreira e na minha vida. Por isso, pelo tamanho que a
obra do Chico tem na minha formação musical e pessoal, eu me dediquei
completamente à turnê, vivi cada momento intensamente”, conta Mônica, em recente
entrevista.
Diferentemente do habitual - em que um disco de estúdio dá
origem a um show/turnê e, posteriormente, disco ao vivo -, foi a partir do
single “Que tal um samba?” que se originou o show, a turnê e o álbum, gravado no
Vivo Rio.
O repertório de “Que tal um samba? (Ao Vivo)” - assim /como a
própria canção - sugere um desconjuro da maré de fascismo que se insinuava no
País em 2022 e vai evoluindo como que fazendo uma travessia desta tempestade
rumo à bonança. Estão lá músicas que abrangem as dimensões poéticas de Chico -
social, individual, política e romântica - registrando e ressignificando, junto
ao público, a própria história do Brasil. “Chico não colocou no repertório
nenhuma música icônica-explícita como se esperava (‘Apesar de Você’, ‘Cálice’
etc). “Ao invés disso, ele chamou as pessoas para a ‘volta pra casa’. Uma casa
cheia de deficiências e de coisas por fazer. Mas, a nossa identidade de volta.
Essa opção, a meu ver, tocou mais profundamente a todos", completou Salmaso.
Mônica Salmaso não apenas canta com Chico Buarque no álbum. Coube a ela, em
todas as 65 apresentações da turnê, iniciar o show cantando sozinha. Chico se
junta a ela a partir de “Paratodos”, faz alguns números solo, para, depois,
voltar ao duo com Salmaso.
No repertório, algumas canções rendem
homenagens: Chico e Mônica cantam, juntos, “Biscate” (que ele havia dividido com
Gal Costa, no disco “Paratodos”); já “Maninha”, ele canta para a irmã Miúcha. As
tensões sociais estão em “Bancarrota Blues”, “O meu guri”, “Assentamento”, “As
caravanas”, entre outras.
Seja em seus momentos mais sublimes, ou nos
mais românticos, até nos mais tensos, o desconjuro cantado por Chico e Mônica –
e perceptível na audição do álbum – foi conduzido e irmanado pelo afeto. “Nos
shows a gente viveu o afeto coletivo, a união e a soma de forças dos nossos
valores mais preciosos. O afeto é muito mais poderoso do que o embate. Estava
tudo lá!”, celebra Mônica.
Que tal um samba? (ao vivo)" traz algo mais do
que a princípio possa parecer: é o registro de um artista no encontro com uma
geração que enfim - e pelas mais diversas razões - fez dele uma figura pop no
melhor dos sentidos.
Crônica da aflição em meio ao desmonte (do país, da
razão) dos últimos anos, a composição de combativo otimismo reuniu força
suficiente para ancorar um repertório de 31 canções, das mais variadas fases de
uma carreira de seis décadas. "Que tal um samba?" é um evento, palco para todas
os gritos engasgados na garganta, com canções que são o mais perfeito veículo
para tal. É meio como estar diante de Bob Dylan: a idade maltratou a voz, a
banda é praticamente a mesma há décadas, mas é ele, cantando as suas próprias
canções. Ninguém vai esperar ouvi-las como nos discos, o que vale ali é a
experiência Chico Buarque.
Não sendo como Caetano Veloso e Gilberto Gil,
tropicalistas que mudaram de roupa musical muitas vezes do longo das carreiras,
Chico justifica (mais) esse registro ao vivo pela fidelidade aos seus valores
musicais. O samba, em primeiro lugar, e depois a bossa nova com profundidades
eruditas de Tom Jobim, seu maestro soberano.
Na observância atenta desses
paradigmas e um olhar aguçado para a inustiça e a beleza de cada um dos períodos
em que viveu, ele construiu uma obra das mais sólidas e abrangentes da música
popular brasileira - que não perde riqueza nem mesmo em um recorte tão
específico quando o desse show.
Mônica Salmaso abre o espetáculo (e o
disco) com “Todos juntos” (do musical “Os Saltimbancos”), batuca um tamborim e
canta o samba “Bom tempo” e singra com maestria e beleza pelos contornos
melódicos (e pela poesia) de “Beatriz” (parceria de Chico e Edu Lobo, do musical
"O Grande Circo Místico"), arrancando merecidos aplausos.
Chico só surge
no palco, para juntar-se a Mônica, em "Paratodos" (faixa-título do LP de 1993),
e com ela interpreta "Sinhá", uma das suas mais fortes canções recentes (ou
melhor, de um de seus últimos álbuns, "Chico", de 2011). Juntos, eles ainda
prestam uma homenagem a Gal Costa, na forma de "Biscate", canção do repertório
da cantora falecida em novembro do ano passado (quando o espetáculo já estava na
estrada).
Sem Mônica, Chico ressalta o brilho dos violões de “Choro
bandido”, faz o público acompanhá-lo em “Sob medida” e dá a sua interpretação
sóbria e carinhosa para “Bastidores” – música feita para a irmã Cristina e
consagrada por Cauby Peixoto. Logo depois, em “Mil perdões”, ele presta outro
tributo a Gal, dona suprema dessa composição.
Em momento mais
contemplativo do show é a vez de Chico estimular o coro da plateia, em clima
festivo, com a naturalmente melancólica “Futuros amantes” (do LP "Paratodos") e
de dar um retrato cruel (e atemporal) do país em “Bancarrota blues”. “Tua
cantiga” e a tensa “Caravanas” (fundida à antiga “Deus lhe pague”) mostram o
poder do repertório mais recente do compositor, para desembocar em “Que tal um
samba?”, com o baixista Jorge Helder fazendo o bandolim de Hamilton de Holanda –
hora em que o público lava a alma.
Ao fim, "Maninha", que era para ser só
uma homenagem à irmã Miúcha (falecida em 2018, e com quem ele gravou o dueto na
versão original), acaba sendo (a despeito da alta voltagem lírica impressa por
Mônica Salmaso) um dos grandes momentos políticos do show, com um público que
aplaude com vontade os versos (cantados entre risos) “que um dia ele vai embora
/ ô, maninha / pra nunca mais voltar”.
Obviamente, a sensação é
irreproduzível em disco, mas “Que tal um samba? (ao vivo)” pode reavivar as
lembranças de quem esteve lá - e fazer sonhar quem não esteve. Nessa travessia
de "inferno e maravilhas", Chico recorreu ao seu amplo e fundamental cancioneiro
e de lá extraiu 31 faixas que formam o repertório do álbum, em que tem a
companhia da sofisticada intérprete paulista Mônica Salmaso. São releituras de
clássicos e históricas canções buarqueanas, que vão de abordagem lírica à
temática atual, que ganharam novos significados com o decorrer do tempo —
tornando-as atemporais.
Tensões podem ser observadas em parcerias do
compositor com Edu Lobo (“Sinhá”, “Bancarrota Blues”), Francis Hime
(“Passaredo”), Sérgio Bardotti e Luís Bacalov (“Os Saltimbancos”), “Caravanas”,
“Deus lhe pague” e “Meu Guri”, para as quais “Bom Tempo” é um contraponto. Há
canções como “Mar e Lua”, que retrata o dramático amor lésbico, ressurgindo como
novidade num período em que ainda persiste a repressão a casais homoafetivos.
Ela está lado a lado na trilha sonora amorosa proposta por Chico que traz as
virtuosas “Noite dos Mascarados”, “Sem fantasia”, “João e Maria”, “Sob Medida”,
“Choro Bandido”, “Beatriz”, “As minhas meninas”, “Futuros amantes”, “O Velho
Francisco” e “Samba de um grande amor”, entre outras.
Mônica Salmaso, que
dividiu o palco com Chico na turnê de Que tal um samba, tinha profundo
conhecimento da obra de Chico Buarque. Ela deu prova disso nos álbuns “Voadeira”
(1999) e, principalmente, no “Noite de Gala, Samba na Rua” (2007) — este
totalmente dedicado ao legado do compositor carioca. Um ano antes, ele havia
convidado Mônica para participar do CD “Carioca”, na faixa “Imagina”.
A
presença de Salmaso em “Que tal um samba?” proporcionou maior leveza ao
espetáculo por estimular Chico a exercitar sua improvável faceta teatral, ao se
mostrar mais solto nos duos e solos. O show festeja o canto feminino, uma vez
que presta tributo às saudosas Gal Costa e Miúcha, evocadas em Mil perdões e
Maninha.
Acompanhada pela banda de Chico Buarque, a cantora paulistana
inicia o show com "Todos juntos", do musical "Os saltimbancos", e interpreta
ainda "Passaredo" e "Beatriz", um dos momentos mais aplaudidos. Depois de ser
apresentado em "Paratodos", o cantor entra no palco para dividir com Mônica a
interpretação de "O velho Francisco" e eles fazem duetos em músicas, “Sinhá"
(João Bosco/Chico Buarque),"Sem fantasia" (Chico Buarque), "Biscate" (Chico
Buarque) e "Imagina" (Tom Jobim/Chico Buarque) e, no bis, "Maninha" (dedicada à
Miúcha, irmã de Chico, que morreu em 2018, "Noite dos mascarados" e "João e
Maria" (composição com Sivuca, também homenageado pelo autor da letra).
Playvolume00:03/01:00estadodeminasTruvid
Chico canta sozinho
"Choro bandido" (Edu Lobo/Chico Buarque), "Desalento" (Chico Buarque/Vinícius de
Moraes), "Sob medida" (Chico Buarque), "Nina" (Chico Buarque), "Blues pra Bia"
(Chico Buarque), "Samba do grande amor" (Chico Buarque) "Injuriado" (Chico
Buarque) i9com Mônica Salmaso "Tipo um baião" (Chico Buarque), "As minhas
meninas" (Chico Buarque), "Uma canção desnaturada" (Chico Buarque) - Com Mônica
Salmaso,) "Morro Dois Irmãos" (Chico Buarque), "Futuros amantes" (Chico
Buarque), "Assentamento" (Chico Buarque), "Bancarrota Blues" (Edu Lobo/Chico
Buarque) , "Tua cantiga" (Cristóvão Bastos / Chico Buarque), "Sabiá" (Tom
Jobim/Chico Buarque), "O meu guri" (Chico Buarque), "As caravanas" (Chico
Buarque), com citação de "Deus lhe pague" (Chico Buarque) e fecha o show com
"Que tal um samba?" (Chico Buarque) - com Mônica Salmaso.
No bis, Chico
e Mônica cantam "Maninha" (Chico Buarque), "Noite dos mascarados" (Chico
Buarque) e "João e Maria" (Sivuca/Chico Buarque)
Os dois têm a companhia
da banda liderada por Luiz Cláudio Ramos (responsável pelos arranjos de guitarra
e violão) e formada por João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo,
violão bandolim), Jurim Moreira (bateria), Chico Batera (percussão), Marcelo
Bernardes (sopros) e Bia Paes Lima (teclado e voz). Daniela Thomas assina a
cenografia com 25 imagens dos fotógrafos brasileiros Araquém Alcântara,
Sebastião Salgado, Thereza Eugênia e Cristiano Mascaro.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |