Leny Andrade e Doris Monteiro:
duas importantes cantoras da música popular brasileira falecem no mesmo dia
Cândido Luiz de Lima Fernandes
Leny de Andrade Lima, mais
conhecida como Leny Andrade, (Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1943 - Rio de
Janeiro, 24 de julho de 2023) foi uma cantora brasileira que começou sua
carreira cantando em boates, morou cinco anos no México e passou boa parte da
vida morando nos Estados Unidos e Europa.
Começou sua carreira
participando de programas de calouros em rádios e estreou profissionalmente como
crooner da orquestra de Permínio Gonçalves passando mais tarde a cantar nas
boates Bacará (com o trio de Sérgio Mendes) e Bottle's Bar, no Beco das
Garrafas, reduto de boêmios e músicos do movimento musical urbano carioca
surgido em 1957, a bossa nova. Ganhou uma bolsa de estudos para o Conservatório
Brasileiro de Música.
Em 1965 alcançou grande sucesso com o espetáculo
Gemini V atuando com Pery Ribeiro e o Bossa Três na boate Porão 73, lançando um
disco gravado ao vivo. Leny, por muitos considerada a maior cantora brasileira
de jazz.
Gravou o primeiro disco em 1961. Até 2018, lançou 34 álbuns,
sendo alguns destes destinados para o mercado americano. Aliás, essa cantora tão
brasileira era cultuada nos Estados Unidos, onde tinha fãs como Tony Bennett -
que estava sempre na primeira fila e desenhava Leny durante os shows - e também
Liza Minnelli.
Em 2007, ganhou o Grammy Latino com o músico César Camargo
Mariano. Em 2019, cantou no “Conversa com Bial”, à capela, “Por causa de você”,
de Dolores Duran e Tom Jobim. Um momento e uma carreira que ficarão para sempre
nas nossas memórias e corações.
Faleceu em 24 de julho de 2023, no Rio de
Janeiro. A artista vivia no Retiro dos Artistas e estava internada no Hospital
de Clínicas de Jacarepaguá. Recuperava-se de uma pneumonia e teve uma piora de
seu quadro clínico.
Sofisticada e popular, tinha uma voz que jamais
perdia o caminho da afinação precisa. Foi diva da bossa nova, e também do samba,
do bolero. Ritmos que, muitas vezes, ela transformava no mais puro jazz, como
uma mestra do scat-singing: a arte de improvissar e emitir sons em vez de
palavras. Leny Andrade é uma cantora de tantas qualidades que qualquer definição
poderá ser injusta ou incompleta.
Adelina Doris Monteiro
nasceu
Rio de Janeiro em 21 de outubro de 1934 e faleceu no Rio de Janeiro em 24 de
julho de 2023. A carioca Doris Monteiro começou a despontar para o público aos
15 anos, cantando em programa de calouros no rádio, em francês. O ano era 1949 e
o samba-canção consagrava cantores com vozes de alta potência e repertório de
dor de cotovelo.
Doris nasceu e foi criada em Copacabana, primeiro pela
mãe biológica - que, sozinha, se viu impossibilitada de trabalhar como empregada
doméstica e proporcionar os cuidados que a filha necessitava - e depois pelo
casal Lázaro e Ana, ele porteiro de um prédio e ela dona de casa. Foi uma
infância sem privilégios em termos financeiros, mas com muito foco na educação.
Mesmo com dificuldades, os pais conseguiram que ela fizesse o primário em uma
escola privada, o Colégio Copacabana, e posteriormente ela foi aprovada para
ingressar no Colégio Pedro II, tradicional instituição de ensino público
federal. Ela também estudou na Cultura Inglesa e aprendeu a falar francês com a
mãe, que tinha vivido nove anos em Lyon. Esse conhecimento foi decisivo quando,
por insistência de uma vizinha que ouvia Doris cantando em casa e percebia seu
talento, a jovem de 15 anos se apresentou no programa Papel Carbono, apresentado
por Renato Murce, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. O desafio feito aos
calouros era imitar outros cantores e Doris escolheu cantar Boléro, interpretada
pela francesa Lucienne Delyle. Tirou o primeiro lugar e, a partir daí, começou a
receber convites para participar de vários programas de calouros.
No
começo dos anos 50 foi convidada pelo cantor Orlando Correia a fazer estágio de
um mês na Rádio Guanabara, onde foi crooner da Orquestra Napoleão Tavares e Seus
Soldados Musicais. Doris, porém, queria ingressar na Rádio Tupi, cuja audiência
era bem maior. Para tanto, contava com um traço marcante de sua personalidade -
a capacidade incansável de insistir até conquistar o que quer - e uma ajuda do
destino: no prédio em que ela morava vivia Alcides Gerardi, cantor da Tupi que
fazia muito sucesso na época. Em diversas entrevistas ela conta que "infernizou"
tanto a vida do vizinho que conseguiu um teste com o cantor, compositor e
radialista Almirante. Tinha 16 anos, foi contratada e ficou oito anos na rádio.
Quando começou na emissora, Doris também trabalhava como crooner no
Copacabana Palace, um dos mais luxuosos palcos da época, cantando em inglês e
francês. A experiência durou seis meses porque, uma vez contratada pela Tupi,
não podia seguir na boate do hotel, cujos shows eram transmitidos pela Rádio
Nacional. A passagem pelo Copacabana, no entanto, foi marcante, pois o público
se interessava em ver a menina de 16 anos, de trança, com a mãe sempre ao lado e
de posse de um alvará para que a filha pudesse cantar, pois era menor de idade.
No livro MPBBambas - Histórias e memórias da canção brasileira Volume 1, do
jornalista e crítico musical Tárik de Souza, a cantora conta que sua história
era publicada "em tudo quanto era revista da época" e era como se ela tivesse
virado uma "atração turística" do Rio de Janeiro.
Cada vez mais
conhecida também como cantora da Tupi, onde não interpretava músicas inéditas,
despertou o interesse da gravadora Todamérica, que a contratou para produzir seu
primeiro disco (78rpm), em 1951. Na lado A, lançou Se Você se Importasse, de
Peterpan; no lado B, Fecho Meus Olhos, Vejo Você, de José Maria de Abreu.
Os anos 50 marcam a consagração da artista em todo o Brasil. Sua gravação de
Se Você se Importasse ficou cinco meses no topo das paradas de sucesso, lançando
Doris ao estrelato na música brasileira. É uma década em que produz vários
discos em 78rpm com músicas de compositores como Wilson Batista e Jorge de
Castro; Tom Jobim e Dolores Duran; e Antônio Maria e Vinicius de Moraes, para
citar alguns.
O primeiro LP surgiria em 1954: Vento Soprando, pela
Continental, que teve entre as músicas de maior sucesso Graças a Deus e
Dó-Ré-Mi, ambas de Fernando César e Joga a Rede no Mar, de Fernando César e
Nazareno de Brito.
Tão logo se tornou famosa, nos anos 50, foi convidada
a fazer cinema, participando de oito filmes ao longo da carreira. Em 1953 obteve
o prêmio de Melhor Atriz no I Primeiro Festival de Cinema por sua interpretação
em Agulha no Palheiro, de Alex Viany. Ao todo, fez oito filmes na década de 50 e
dois nos anos 60, tendo atuado com artistas como Mazzaroppi, José Lewgoy, Glauce
Rocha e Tônia Carrero. A música, no entanto, era a prioridade e ela acabou se
afastando do cinema.
Sucesso nas paradas, no rádio e no cinema, a artista
também se tornou uma das estrelas da TV Tupi em meados dos anos 50, apresentando
o programa semanal Encontro com Doris Monteiro, transmitido somente para o Rio
de Janeiro. Nesta época, seu repertório ganhou novas tonalidades, deixando de
ficar restrito ao samba-canção e ao bolero, por influência do músico e
compositor Billy Blanco. Ele aconselhou a artista a interpretar músicas com mais
balanço, mais próximas do samba, o que Doris considerava estranho ao seu estilo,
até ser apresentada a Mocinho Bonito, composição de Blanco. Gravada em 1957,
tornou-se uma das músicas mais marcantes da carreira.
O canto mais
"suingado", na verdade, era justamente o que Doris, ainda menina, mais gostava
de ouvir. Era fanática por Lúcio Alves e Dick Farney, que para ela eram os
melhores cantores, além de apreciar também Os Cariocas, Nat King Cole e Sarah
Vaughan.
Em 1956 foi eleita Rainha do Rádio, em um concurso da
Associação Brasileira do Rádio no qual as candidatas vendiam votos com objetivo
de arrecadar fundos para a construção de um hospital para os radialistas. Foi um
processo diferente de quando, em 1952, se tornou Rainha dos Cadetes, quando foi
eleita diretamente no voto.
Nos anos 1960, com a técnica vocal mais
amadurecida, Doris mergulhou de vez em um repertório moderno, cheio de charme e
suingue. Em 1961, já pela Philips, lança o LP Doris Monteiro, com o qual
emplaca mais dois grandes sucessos: Palhaçada e Fiz o Bobão, ambas de Luís Reis
e Haroldo Barbosa. Na nova gravadora, o então diretor-artístico Armando
Pittigliani pede para a cantora gravar músicas da bossa nova e no LP de 1962,
Gostoso é Sambar, já começam a aparecer entre os compositores Roberto Menescal e
Ronaldo Bôscoli, com Nós e o Mar; e Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, que
assinam Você e Eu. Na sequência ela grava o disco que é considerado "o mais
bossa nova" de toda a carreira. No LP Doris Monteiro, de 1964, a cantora
registra Samba de Verão, Deus Brasileiro, E Vem o Sol e
Razão de Amor, todas dos
irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Também canta três músicas de Durval
Ferreira com diferentes parceiros (Dois Peixinhos, Vivendo de Ilusão e
Falaram
Tanto de Você), Eumir Deodato (Baiãozinho), João Mello (Vou de Samba com Você),
além de gravar o sucesso Sambou, Sambou, de João Donato e João Mello. Também é
neste disco que Doris canta Diz que Fui Por Aí, de Zé Keti e Hortêncio Rocha.
Em Simplesmente, de 1966, a cantora apresenta seu álbum de estreia na
Odeon com um repertório que também privilegia a bossa nova e apresenta, na
primeira faixa, Meu Refrão, de um Chico Buarque em início de carreira. Foi uma
das primeiras artistas renomadas a gravar o compositor. Em 1969, um ano depois
de lançar Mudando de Conversa (Maurício Tapajós/Hermínio Bello de Carvalho) em
um compacto simples, a cantora batiza o novo LP com o mesmo nome da música, que
se tornou um clássico de seu repertório. O hit ficou cerca de cinco meses nas
paradas e o disco foi recordista de vendas. Outra música que marcou foi
Dó-Ré-Mi, de Fernando César. Neste álbum Doris mostrou-se uma intérprete mais
madura e versátil, sem se prender a rótulos de cantora de bossa ou de
samba-canção. Aliás, daí por diante, Doris seria da MPB, sem restrições.
Os anos 70 encontram em Doris Monteiro uma cantora madura e mais versátil, com
maior domínio dos rumos da própria carreira. No LP de estreia desta década,
também denominado “Doris Monteiro”, ela grava de Sílvio Cesar e João Roberto
Kelly a Jorge BenJor e Carlos Imperial, além de Roberto Carlos e Erasmo Carlos,
autores de uma das músicas mais tocadas do disco, Coqueiro Verde. Um ano depois
ela lança Doris, cultuado LP em que a artista apresenta três canções que marcam
para sempre seu repertório: É Isso Aí, composta por Sidney Miller; De Pilantra e
de Poeta, de Alberto Land; e Conversa de Botequim, parceria de Noel Rosa com
Vadico. Ela também canta no disco Hei Você, de Elizabeth, uma artista ligada à
Jovem Guarda, além de gravar composições de Caetano Veloso, Sérgio Sampaio,
Antonio Adolfo e da dupla Toquinho e Vinicius de Moraes. Ao longo da década
grava mais cinco álbuns solo nos quais amplia ainda mais o leque de compositores
e diversifica o repertório, ao mesmo tempo em que lança discos em parceria. De
1970 a 1974 grava quatro LPs com o cantor Miltinho, todos intitulados Doris,
Miltinho e Charme. O encontro, que antes de se concretizar parecia improvável,
acabou virando um marco na música popular brasileira. A cantora também fez dupla
com Tito Madi, em 1992, no disco Brasil Samba Canção, dentro da série Academia
Brasileira de Música, lançada pela Sony. Em 1977, Doris Monteiro foi convidada a
participar do Projeto Pixinguinha, fazendo dupla com seu ídolo de infância,
Lúcio Alves. Deste trabalho nasceu o disco Doris e Lúcio, lançado no ano
seguinte com 12 faixas, todas já consagradas naquela época entre os grandes
sucessos da música brasileira
A artista seguiu fazendo shows e, em 1990,
a convite da cantora nipo-brasileira Lisa Ono, realizou uma turnê no Japão com
Johnny Alf, apresentando-se em teatros de Osaka, Nagoya e Tóquio. Na ocasião,
gravou a música Praia Nova, de Lisa Ono e Paulo César Pinheiro, no disco
Bossa
Nova Underground. Um ano depois subiu ao palco com Emilinha Borba, Ivon Curi e
Zezé Gonzaga no espetáculo comemorativo dos 70 anos do rádio no Brasil, encenado
com grande sucesso no Teatro do BNDES, no Rio de Janeiro.
Em 2004, para
marcar a comemoração de seus 70 anos, foi presenteada pelas gravadoras Universal
e EMI com o relançamento em CD de doze de seus melhores discos. Na ocasião,
realizou dois shows de lançamento no Bar do Tom, em Ipanema. Outra apresentação
de destaque foi quando abriu, em 2008, a temporada de shows do projeto Adoniran
- Oito e Meia, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Acompanhada pelo
tecladista Ricardo Júnior, seu marido, interpretou canções da fase de ouro do
rádio brasileiro, entre as quais Mocinho Bonito e Conversa de Botequim, com as
quais obteve grande sucesso: Valsa de uma Cidade, de Ismael Netto e Antônio
Maria; Copacabana, de Braguinha e Alberto Ribeiro; e Se Todos Fossem Iguais a
Você, de Tom e Vinícius.
Em 2010, juntamente com o saxofonista Aurino
Ferreira, foi homenageada na Calçada da Fama de Ipanema, diante de uma plateia
de quase mil pessoas. "A música de Doris, de Aurino e de seus pares é um
patrimônio da cultura brasileira e como tal deveria ser estudada. De
preferência, ministrada por eles próprios", escreveu Ruy Castro por ocasião da
homenagem.
Em 2019 Doris e a cantora Leny Andrade foram homenageadas com
o Troféu Feira de Vinil do Rio de Janeiro, no Instituto De Arquitetos dos
Brasil. Neste mesmo ano, junto com as cantoras Claudette Soares e Eliana
Pittman, apresenta-se no espetáculo As Divas do Sambalanço, que teve um dos
shows registrados para a produção de CD de mesmo nome, lançado em 2020.
Com mais de 20 LPs e mais de 20 discos de 78rpm gravados, Doris se manteve
ativa, fazendo shows. Em 2020, regravou a música Fecho Meus Olhos, Vejo Você no
álbum Copacabana - Um Mergulho nos Amores Fracassados, produzido pelo jornalista
e musicólogo Zuza Homem de Mello, com base em seu livro Copacabana - A
Trajetória do Samba-Canção(1929-1958), lançado em 2017.
Em 2020, lançou
o último disco solo. Entre as músicas do LP “Doris Monteiro” destacam-se
Memórias do Café Nice (Artúlio Reis e Monalisa) e O Pato, de Jayme Silva e Neuza
Teixeira, cuja gravação "rivaliza com a de João Gilberto", na visão do
jornalista Ruy Castro. Também em 2020 o jornalista destacou em sua coluna na
Folha de S.Paulo que, considerando a primeira gravação, em 1951, a cantora se
prepara para completar 70 anos de carreira "incólume, com a voz e a bossa com
que atravessou o tempo e com o mesmo estilo adulto e sem vibrato que a tornou a
cantora mais moderna do país em sua época.
Doris Monteiro teve um papel
importante na história da música brasileira ainda por ter afiançado, com sua
arte, o início da carreira de grandes criadores. Um atrás do outro, Doris ajudou
a lançar compositores como Tom Jobim e Dolores Duran (Se É Por Falta de Adeus),
o hoje injustamente esquecido Fernando César (Dó-Ré-Mi, Graças a Deus e
Joga a
Rede no Mar), Billy Blanco (Mocinho Bonito), Sílvio César (O Que Eu Gosto em
Você), Sidney Miller (Alô Fevereiro), Maurício Tapajós e Hermínio Bello de
Carvalho (Mudando de Conversa).
Foi descrita por renomados críticos
musicais como a cantora que tem "a bossa de quem já nasceu sabendo" e símbolo de
"modernidade já atemporal" no universo da música brasileira. Tinha uma voz suave
e emprestava charme e frescor às canções, privilegiando também letras mais
alegres e firmando-se como precursora de um estilo que viria a ter destaque
também na bossa nova, além de acumular gravações de sucesso nas décadas
seguintes - especialmente nos anos 60 e 70. É considerada uma das mais
expressivas cantoras da transição do samba-canção para a bossa nova.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |