“A última sessão de música”: o adeus aos palcos de Milton Nascimento

Cândido Luiz de Lima Fernandes
Em 2022 quatro grandes mestres da música popular brasileira, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Milton Nascimento completaram 80 anos
de idade. Eles fazem parte da geração que reuniu a plenitude artística e o
reconhecimento de público — algo pouco alcançado nas artes brasileiras. Suas
obras são ponto de convergência do que mais sofisticado se fez na tradição
cosmopolita com os traços locais da cultura popular.
Dos quatro, Milton é
aquele que mais nos assombra. Músicos de jazz nos Estados Unidos ficaram
estarrecidos com sua capacidade musical: um cancionista que poderia dispensar as
letras, como se vê no inclassificável disco “Milagres dos Peixes” (1973). Neste
álbum, a censura política da época barrou boa parte das letras, fazendo Milton
tomar a decisão ousada de usar a voz para apenas cantarolar, gritar, sussurrar,
grunhir. O resultado foi a criação da trilha sonora para os tempos sombrios de
então.
Para celebrar seus 80 anos, Milton Nascimento rodou o país com a
turnê “A última sessão de música”. Trata-se de uma despedida dos palcos e o
registro de como a canção brasileira pode atingir o estágio de grande arte e de
decifração do sentimento coletivo. O setlist vai de “Os tambores de Minas”, com
a mensagem de que “seus tambores nunca se calaram” ao clássico “Travessia”, tão
caro ao imaginário de Minas Gerais. Os mineiros que construíram um enclave
cultural de luzes e sombras, um barroco modernista.
Pode ser um mistério
ou uma revelação natural a explosão musical de um grupo de jovens na Belo
Horizonte dos anos 1960. Conta a lenda ou o mito fundador que, em 1964, Milton
Nascimento ainda se recusava a compor. Foi assim até assistir, com Márcio
Borges, ao filme “Jules e Jim”, de François Truffaut. Saiu febril da maratona de
dez horas de sucessivas sessões da história que mostra a amizade/paixão de dois
homens por uma mulher. Comunicou, então, ao amigo Marcio Borges que finalmente
estava pronto para criar. A dupla se trancou num quarto da casa da família
Borges e, no mesmo dia, fez três canções. São momentos que o grande artista
ainda não tinha a menor ideia de estar fazendo algo realmente grande. Difícil
saber se Milton tinha noção do que estava por vir ao convocar amigos, em 1972,
para o disco “Clube da Esquina”. O cantor negro e o bando de meninos cabeludos.
A voz carregando a religiosidade mineira, a suavidade da bossa nova e os
balanços do samba e jazz. Os jovens traziam a energia do rock/folk.
A
musicalidade de Milton nos coloca em outra atmosfera, elevada — a exemplo da
bossa nova. Trata-se de uma utopia nacional. Faz um brasileiro se sentir
sofisticado e universal, como na poesia de Carlos Drummond de Andrade. O
cosmopolitismo das luzes para enxergar as trevas que colocam lado a lado o
espírito aventureiro de desbravar o sertão e o horror da escravidão africana.
Milton lembra também a humildade e a fraternidade de Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade. O tom musical é baixo, delicado e melancólico.
Humilde e fraterno, Milton dividiu o estúdio de gravação, de igual para igual,
com jovens ligados em Beatles (Lô Borges, Beto Guedes) e os instrumentistas de
mão cheia (Wagner Tiso, Toninho Horta). Eles produziam sons para o trio de
letristas afiados (Marcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos). O disco
“Clube da Esquina” captou um sentimento de uma época contraditória que aliava a
euforia do Brasil Grande ao fim da utopia civilizatória e modernista chamada
Brasil.
À frente de tudo naquele Clube da Esquina, apareceu a voz de
Milton, em canções como “Tudo o que você podia ser” e “Nada será como antes”.
Nos discos seguintes “Milagre dos Peixes”, “Minas” (1975) e “Geraes” (1976),
além do primeiro disco de Lô Borges (aquele com a foto do tênis velho na capa),
criou-se uma ideia do que poderíamos ser, como brasileiros e brasileiras, para o
mundo. Um ideal de serenidade, equilíbrio e delicadeza no jeito de ser e agir,
misturando humildade e hospitalidade.
A turnê do show "A última sessão da
música" começou no Rio de Janeiro no dia 11 de junho de 2022, depois seguiu para
a Europa e Estados Unidos e terminou apoteoticamente no estádio do Mineirão em
13 de novembro do ano passado. O estádio estava repleto e milhares de fãs,
emocionados, portavam cartazes com os dizeres “Bituca, eu te amo”.
Milton
começou o show com sua histórica sanfona, tocando e cantando “Ponta de Areia”,
tendo “Os Tambores de Minas“ como música incidental. Emendou com “Canção do
Sal”, com a qual homenageou Elis Regina e cantou a belíssima “Morro velho”,
seguida de “Outubro”, “Vera Cruz” e “Pai Grande”. Um dos pontos altos do show
foi a interpretação de “Para Lennon e McCartney”, acompanhada de “Cais”, “Tudo o
que você podia ser”, “Cravo e Canela” e “San Vicente”. A voz de Bituca não tem
mais a força e o vigor de outrora, mas ele contou com o auxílio luxuoso do
cantor José Ibarra, de voz maravilhosa, que o ajudou a sustentar as notas mais
altas. Outro ponto alto foi a interpretação de “Clube da Esquina número 2”, que
contou com a participação de parceiros, como Beto Guedes, Lô Borges, Toninho
Horta e Wagner Tiso. Tocou a seguir “Lilia”, música composta para homenagear sua
mãe adotiva. A platéia delirou com “Nada será como antes“, emendada com “Fé cega
faca amolada” e”Paula e Bebeto”. Com “Volver aos los 17”, prestou homenagem à
sua amiga que interpretava lindamente esta canção, a cantora argentina Mercedes
Sosa. Acompanhado de Nelson Ângelo cantou “Fazenda”. Teve em seguida “Cálix
bento”,”Peixinhos do mar”,”Cuitelinho”, “O cio da terra”, “Canção da América”,
“Caçador de mim”,“Nos bailes da vida,” “Bola de meia, bola de gude” (tendo “Tema
de Tostão como música Incidental)” e “Coração de estudante”(com Wagner Tiso ao
piano). Terminou com “Maria, Maria”, com a plateia em delírio dançando e
cantando junto. No bis teve “Encontros e despedidas” e a linda “Travessia”.
Com este emocionante show, Milton Nascimento fez sua despedida dos palcos,
mas não da música, segundo declarou ao fim do espetáculo. Este foi um dos shows
mais lindos e emocionantes da história do Mineirão e ficará para sempre gravado
em nossos corações.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |