01/10/2022
Ano 25

Semana 1.290







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




“Que tal um samba?”

o novo show de Chico Buarque e Mônica Salmaso



Cândido Luiz de Lima Fernandes


Após cinco anos sem se apresentar nos palcos, Chico Buarque canta e atualiza o desalento e a esperança do Brasil em 2022, em roteiro que harmoniza as 36 músicas do show “Que tal um samba?” – o primeiro do cantor, compositor e músico carioca desde “Caravanas” (2017).

Prevista para percorrer o Brasil até o primeiro semestre de 2023, a turnê nacional do novo show estreou na noite de 6 de setembro, no Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa (PB).

Em roteiro quase inteiramente autoral, dividido com a cantora Mônica Salmaso, solista das seis músicas iniciais e parceira de Chico na interpretação de outras 13 composições, o cantor transita por várias fases da carreira em repertório que cobre 55 anos de obra, desde 1967 – ano da marcha-rancho “Noite dos Mascarados”– até 2022, ano do samba à moda cubana, “Que tal um samba?”, lançado em “single” editado em 17 de junho, juntamente com o anúncio da turnê homônima.

Emoldurado pelo cenário de Daniela Thomas e pela luz de Maneco Quinderé, Chico Buarque – vestido com figurino de Cao Albuquerque – deu voz às dores humanas que não saem no jornal e às tensões sociais de cancioneiro engajado.

Os primeiros versos da letra do novo samba do Chico dizem:” “Um samba/Que tal um samba?/Puxar um samba, que tal?/Para espantar o tempo feio/Para remediar o estrago/Que tal um trago? Um desafogo, um devaneio”. Um tanto bem-humorado e otimista, o samba pede mais uma vez, com rimas inusitadas, para, de maneira escancarada, pular fora da sequência de coisas ruins em que o país caiu: “Cair na mar, lavar a alma, tomar um banho de sal grosso, que tal? /Sair do fundo do poço”. Essa é a proposta de Chico Buarque em sua nova turnê. Chico e Mônica nos convidam a "espantar o tempo feio, um desafogo e um devaneio" durante duas horas. Após 33 músicas, o show apresenta mais do que promete na letra da música que batiza a excursão: não há apenas um samba. São muitos. Tem também blues, bossa, valsa, cantiga e baião.

O convite ao samba para aliviar a dureza concreta cotidiana não é novidade na obra de Chico Buarque de Hollanda. Em 1966, ele já avisava que "com o samba eu não compro briga, do samba não abro mão". Mesmo sem saber como seria o amanhã, do alto dos 20 anos de idade, ele garantia: "Vem que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria tão fácil viver." Mas, nos dias difíceis que o país atravessa, o recado foi reforçado a partir da música que dá nome à nova turnê.

As cortinas se abrem pouco depois das 21h e, para surpresa dos fãs emocionados do cantor, Mônica Salmaso aparece sozinha no centro do palco. Volta ao século passado para lembrar que, se estamos todos no mesmo barco, "não há nada a temer".

A primeira música que ela canta é "Todos juntos", da trilha do musical "Os saltimbancos", de Luís Enríquez Bacalov e Sergio Bardotti, em versão de Chico Buarque (1977), cuja letra enfatiza os versos "E mais dia menos dia a lei da selva vai mudar". Inicia, assim, o envio de recados à situação social e política do país, mas sem citação de nomes. Deixa ao público a tarefa de vestir a carapuça em quem ele achar mais conveniente. Os gritos de protesto antes e depois do show explicitam o lado escolhido.

A seguir, canta a belíssima “Mar e Lua” (“Amaram o amor urgente/As bocas salgadas pela maresia/as costas lenhadas pela tempestade”) e emenda com “Passaredo”, de Francis Hime e Chico Buarque (1977) e “Bom tempo”, de Chico Buarque (1968). E, se ainda ronda a ameaça descrita em "Passaredo" ("Bico calado/Toma cuidado/Que o homem vem aí"), acentuada pela iluminação vermelho-sangue de Maneco Quinderé, é preciso acreditar na possibilidade de "Bom tempo" (“Um marinheiro me contou/ Que a boa brisa lhe contou/ Que vem aí bom tempo”), outro dos cinco números que a cantora faz ainda sem o seu anfitrião. O mais notável dos números iniciais é a difícil "Beatriz", de Edu Lobo e Chico Buarque (1983), com as notas mais altas que um arranha-céu, em que Mônica arranca aplausos em cena aberta.

Com a música “Paratodos” (O meu pai era paulista/Meu avô pernambucano/ O meu bisavô mineiro/ Meu tataravô baiano”), a cantora convida Chico para entrar no palco. O tom algo solene de uma das três parcerias com Edu Lobo presentes no repertório dá lugar, então, ao despojamento da entrada de Chico para os versos finais de "Paratodos". "Sou um artista brasileiro", anuncia, iniciando com a intérprete uma jornada às raízes do país: "O velho Francisco" (1987) e "Sinhá" (2011). Em seguida, apresentam a belíssima “Sem fantasia”, da peça de teatro “Roda Viva” (1968) (“Vem, meu menino vadio/ Vem sem mentir pra você”), que Chico dividiu com Maria Bethânia em disco ao vivo de 1975. Juntos, Chico e Mônica cantam ainda “Biscate” (Chico Buarque, 1993), originalmente gravada com Gal Costa) e “Imagina” (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1983).

Diante de referências tão fortes, Salmaso percorre caminho próprio. Alia à técnica impecável uma certa brejeirice. Com respeito e com afeto, parece ciosa do que ela representa neste show - as vozes que cantam as músicas do dono de uma das vozes poéticas mais celebradas da MPB. Não é pouco. Imagina dividir o palco com Chico Buarque? Sonho impossível de nove entre dez cantoras brasileiras. Para Salmaso, que tantas vezes cantou Chico em lives e tem um disco inteiro de releituras do compositor, "Que tal um samba?" é sonho realizado.

Na parte do show em que se apresenta sozinho, Chico canta “Morro Dois Irmãos” (1989), “Futuros amantes” (1993), ),“ O meu guri” (1981), “Assentamento”, (1997) “Bancarrota blues”, parceria com Edu Lobo (1985), “Tua cantiga”, parceria com Cristovão Bastos (2017), “ Sabiá”, parceria com Antonio Carlos Jobim (1968 “As caravanas” (2017), com citação de “Deus lhe pague” (1971) e “As minhas meninas” (1986).

Sabemos que "As minhas meninas" homenageia as filhas do cantor e as notas musicais, mas mulheres de todas as idades se sentem um pouco representadas nesta e em outras composições. São as que combinam dois trunfos da obra de Chico Buarque: a alteridade e a perenidade. Nelas, observamos "o tempo meio que girando em falso, meio que transcorrendo sempre no presente, meio que sendo um gerúndio", como está escrito em "O sítio", um dos melhores contos de "Anos de chumbo" (2021), o mais recente livro do vencedor do Prêmio Camões. Nas duas horas do show, a gente vai levando uma surpresa a cada resgate que os intérpretes fazem. Não há "Apesar de você", "Quem te viu, quem te vê" ou "Vai passar" no repertório de "Que tal um samba?".

Na volta de Mônica Salmaso, cantam juntos “Que tal um samba?” (lançado em 2022), “Injuriado” (1998), “Uma canção desnaturada” (1978), “Samba da benção” (de Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966), “Maninha” (1977), dedicada à Miúcha, irmã do Chico, que morreu em 2018, “Noite dos mascarados (1967) e “João e Maria” (em parceria com Sivuca, 1977). Mesmo que Mônica Salmaso realce versos como "Um dia ele vai embora pra nunca mais voltar", dedicados a Miúcha, Chico Buarque parece mais interessado em olhar, simultaneamente, para trás e para a frente. Tenta enxergar a possibilidade de um outro tempo. Como o próprio Chico cantou, há exatos 50 anos, em plena ditadura militar, ao responder aos que o ofendiam "humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar", na música-tema do filme de Cacá Diegues: "Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar, tô me guardando pra quando o carnaval chegar." A alegria, tantas vezes adiada, contagia a despedida. A lembrança festiva de "Noite dos mascarados", com a aproximação dos cantores e do público sem as máscaras outrora exigidas pela pandemia, é a senha da certeza. Amanhã tudo volta ao normal, deixa o dia raiar. E, se não for assim, seja o que Deus quiser.

Cabe observar, finalmente, que o show "Que tal um samba?" vai além da conjuntura política. Parece se concentrar em uma questão que transcende governantes e governados: o triunfo do sorriso. Afinal, ainda mais depois de uma pandemia, "é melhor ser alegre do que ser triste", como garante Vinicius de Moraes em "Samba da bênção", citado na parte final do show.

Os músicos que os acompanham são Luiz Claudio Ramos (arranjos, guitarra e violão), Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico Batera (percussão), João Rebouças (piano), Jorge Helder (baixo acústico e elétrico), Jurim Moreira (bateria) e Marcelo Bernardes (sopros).

Depois de João Pessoa (PB), a turnê continuou em Natal (RN) nos dias 9 e 10 de setembro. Percorrerá 11 cidades até abril de 2023. Belo Horizonte recebe quatro shows, de 6 a 9 de outubro, no Minascentro, com ingressos já esgotados. Já garanti o meu ingresso para o show do dia 6.

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com  


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Direção e Editoria
Irene Serra