O show de Mônica Salmaso e André Mehmari
em homenagem aos 80 anos de Milton Nascimento

Cândido Luiz de Lima Fernandes
A música de Milton
Nascimento é sagrada. Embute forte componente sacro, não apenas quando ecoa as
batidas dos sinos das catedrais de Minas Gerais. Como o canto solene de Mônica
Salmaso também tem algo de celestial, a abordagem da obra desse compositor de
alma mineira pela voz dessa artista paulistana resulta sublime em muitos
momentos. O encontro acontece em Milton, recital que vem sendo apresentado por
Salmaso com o pianista André Mehmari em vários teatros do país.
Derivado
de registro audiovisual gravado pelo duo em estúdio em dezembro de 2020 e
lançado em 15 de janeiro de 2021 no YouTube, o show Milton – previsto para ser
lançado em disco pela gravadora Biscoito Fino em data ainda incerta – aportou na
cidade do Rio de Janeiro (RJ) em apresentação que lotou o Teatro Riachuelo na
noite de 26 de maio de 2022.
Tanto no disco quanto no show, que celebra
que celebra os 80 anos que Milton Nascimento fará em 26 de outubro, o formalismo
tradicionalista do canto da intérprete atinge altas esferas. No recital com
Mehmari, que se reveza entre o piano e marimba (evocativa dos sons artesanais do
grupo mineiro Uakti), esse canto reverente ritualiza a paixão e a fé que pautam
a obra de Milton Nascimento, inclusive as músicas de lavras alheias que o
compositor escolhe cantar com a voz divina.
Milton é fruto da quarentena.
Mônica e Teco moram em São Paulo, mas cumpriram o isolamento social no interior
paulista, onde têm casa. De lá, ela fez uma série de lives domésticas
acompanhada de destaques da MPB, como Chico Buarque, Teresa Cristina, Ney
Matogrosso e Marcos Valle, entre outros.
“Ficamos lá e saímos com
raríssimas exceções. Uma delas foi depois que conversei com o André, que tem
estúdio na capital, onde gravei o disco Caipira, e o convidei para fazermos algo
juntos novamente”, relembra. André topou. Ele respondeu: ‘Pelo amor de Deus, não
aguento mais essa solidão pandêmica’”, diz Mônica.
Em dezembro, ela e o
marido, o flautista Teco Cardoso, deixaram o interior rumo ao estúdio de
Mehmari. “Foi uma sessão inteira com repertório variado, coisas que eu e ele
vínhamos fazendo há mais tempo. Como gravamos muita coisa, decidimos dividir em
duas partes.” Foi assim que surgiu o projeto Quarentena partes 1 e 2. “Colocamos
no YouTube, a primeira parte foi ao ar em 7 de novembro e a segunda no dia 14. A
repercussão foi muito boa”, conta ela.
Milton começou a ser gravado em 14
de dezembro. “Tudo foi emocionante, a começar pelo fato de me encontrar com um
músico com quem trabalho há muito tempo. Não via o André há quase um ano”,
revela. “Usamos equipamento de ponta para fazer a melhor música possível. Isso
depois que fiz lives heroicas, vídeos quase artesanais. É emocionante poder
trabalhar com aquilo que lhe dá condições de apresentar o melhor.”
O novo
projeto representa um mergulho na obra de Milton. “André adora tudo dele, tocou
e ainda toca Bituca direto. Ele me disse: ‘Gosto tanto de tudo que deixo na sua
mão. Veja aí o que você quer fazer’”, conta a cantora.
Mônica ouviu
novamente os discos de Milton e apresentou sua lista ao pianista. “Entraram duas
que não são de Bituca, mas foram gravadas por ele e são muito marcantes para
nós. Uma delas, Paixão e fé, eu havia gravado com André. Já
Casamiento de
negros, conheci na voz do Milton”, conta, referindo-se à canção do repertório da
chilena Violeta Parra, faixa do disco Clube da Esquina 2 (1978).
Sintomaticamente, um dos números que mais arrebatou o público foi a música
justamente intitulada Paixão e fé (de Tavinho Moura e Fernando Brant, 1977),
cantada em feitio de oração.
O roteiro começa com A lua girou (tema de
domínio público adaptado por Milton Nascimento em 1976). A seguir são
apresentados Noites do sertão (de Milton Nascimento e Tavinho Moura) e
Saudade
dos aviões da Panair (Conversando no bar) (de Milton Nascimento e Fernando
Brant, 1974).
A quarta música é A terceira margem do rio (de Milton
Nascimento e Caetano Veloso), número que embutiu leitura de trecho do conto
também intitulado A terceira margem do rio, lançado no livro de Guimarães Rosa,
“Pequenas estórias” (1962)
A seguir, vem Canção amiga, poema de Carlos
Drummond de Andrade musicado por Milton Nascimento.
As duas músicas que
se sucedem já foram mencionadas: Casamiento de negros, tema tradicional adaptado
por Violeta Parra e Polo Cabrera e Paixão e fé (de Tavinho Moura e Fernando
Brant)
As três músicas apresentadas a seguir foram Milagre dos peixes (de
Milton Nascimento e Fernando Brant, Credo (de Milton Nascimento e Fernando
Brant, com citação de San Vicente) e Paula e Bebeto (de Milton Nascimento e
Caetano Veloso, 1975).
Um ponto alto do roteiro foi a interpretação de
Morro velho (Milton Nascimento), em que Mônica canta com forte dramaticidade a
saga ruralista dessa composição, que expõe o apartheid social existente no
Brasil.
O roteiro de Milton desembocou em Dorival Caymmi (1914 – 2008),
outro pilar da música brasileira. O fecho com Acalanto (1957), em tom terno e
progressivamente sussurrante, acarinhou o público em registro que sublinhou o
caráter ritualístico da celebração da obra de Milton Nascimento por Mônica
Salmaso e André Mehmari.
Em que pese todo o tom ritualístico da obra do
compositor e do canto da intérprete, o show Milton jamais soou pesado. E cabe
ressaltar que, em cena, André Mehmari jamais se portou como o pianista
acompanhante da cantora.
Em perfeita sintonia com Salmaso, o pianista é
também um artista, que cria e faz de cada tema uma pequena suíte que embute
citações de músicas como Ponta de areia (Milton Nascimento e Fernando Brant,
1974), por exemplo.
No bis, para citar outro exemplo, Mehmari emergiu com
citação do samba Águas de março (Antonio Carlos Jobim, 1972, quando Salmaso
cantava Pescaria (Canoeiro) (Dorival Caymmi, 1944), música gravada por Milton em
1969 no terceiro álbum do artista.
Vale a pena esperar pelo disco a ser
lançado pela Biscoito Fino. Enquanto o disco não vem, aconselho-os a ouviram
suas músicas pelo You Tube.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |