01/07/2022
Ano 25

Semana 1.278







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




O álbum “Canto sedutor” de Dori Caymmi e Mônica Salmaso



Cândido Luiz de Lima Fernandes



No dia 27 de maio foi lançado o álbum “Canto Sedutor”, de Dori Caymmi e Mônica Salmaso, músicos de excepcional qualidade, que dispensam maiores apresentações.

Como já havia escrito em crônica para Rio Total, Mônica Salmaso é dona da mais bela voz surgida nos últimos anos em nosso país. A escolha criteriosa dos músicos que a acompanham é uma característica marcante de seu trabalho. Outro aspecto que marca a trajetória da cantora é a escolha do repertório, que abrange um amplo espectro da música brasileira. Enxergando a música antes como ofício do que como um dom, Mônica sempre se manteve avessa à aura de glamour que costuma cercar os cantores no Brasil, promovendo o distanciamento entre artista e público. Ao contrário, é reconhecida não só pelo seu talento musical, mas pela sua simplicidade e proximidade de seu público fiel. Mônica nunca foi cantora de grandes espetáculos. É intérprete dos teatros de bolso, sempre em parceria com a nata da música instrumental. Seu timbre é excepcional, daqueles que se reconhece ao primeiro trinado. Destaca-se a sutileza com que trabalha as melodias, sem malabarismos, com um discernimento a toda prova, transitando entre vários ritmos da canção brasileira.

Na pandemia, Mônica fez uma série de lives, intitulada “Ô de casas”, com grandes compositores e instrumentistas, como Chico Buarque, com quem dividiu a bela canção “João e Maria”. No palco, Mônica é a pessoa comum, sutilmente amorosa, que trata seu marido, Teco Cardoso, como “meu amorzinho”, expressando-se através de pequenos gestos e trejeitos. É uma das interpretes prediletas de um dos maiores compositores brasileiros, Edu Lobo, que a convidou para o grande evento dos seus 70 anos, interpretando “Valsa Brasileira”.

Dori é filho do grande compositor e cantor Dorival Caymmi e de Adelaide Tostes Caymmi (a cantora Stella Maris) e irmão de Nana Caymmi (cantora) e de Danilo Caymmi (instrumentista, compositor e cantor). Destacou-se desde cedo como excelente compositor, vencedor de festivais de música popular brasileira, diretor musical e exímio arranjador. Foi contemplado, em 2012, com o Prêmio da Música Brasileira, nas categorias Melhor Álbum/MPB e Melhor Cantor/MPB, pelo CD “Poesia Musicada”. Celebrando a obra do pai, lançou, em 2013, com os irmãos Nana e Danilo, o CD “Caymmi”, No fim de 2015, este álbum foi indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de MPB.

Foi de Mônica, a ideia do álbum. A coragem, segundo a cantora, apareceu depois que ela convidou o compositor para participar da série “Ô de Casas”, durante a pandemia. Nela, Mônica cantou, a distância, com inúmeros convidados. Só com Dori, foram quatro duetos. Na ocasião, fizeram juntos, inclusive, duas canções que estão nesse disco: “À Toa” e “História Antiga”.

Dori delegou a Mônica a escolha do repertório do álbum, que traz ainda canções como “Desenredo”, “Estrela da Terra” e “Velho Piano”. Ela, por sua vez, fez uma pequena barganha: quis que Dori, além de tocar, cantasse com ela. "Tem o compositor que é uma escola, um fazedor de canções. Tem o violão que redesenhou o jeito de fazer os acordes, tem a voz absurda e a mão de arranjador", declarou a cantora. Dori devolveu o elogio. "Foi a primeira vez que vi meu repertório cantado por uma pessoa com vontade de entender todo o meu processo criativo. Cantar meu trabalho com Paulo César Pinheiro, que é artesanal e de uma complexidade melódica extrema, é sair da zona de conforto. Já teve cantor que disse que preferia não cantar", lembra Dori, com a sinceridade dos Caymmis. Dori afirma ter muitas composições inéditas com Pinheiro, a quem ele e outros amigos tratam de Paulinho. De 2008 para cá, eles fizeram cerca de 80 canções. Mônica deixa um alerta. "Intérpretes, corram, peçam!"

A direção musical é assinada por ambos em companhia do flautista Teco Cardoso, marido de Mônica, e que trabalhou com Dori nos Estados Unidos, nos anos 1990. Com eles, estão os músicos Tiago Costa (piano), Sidiel Vieira (baixo acústico), Neymar Dias (viola caipira), Lulinha Alencar (acordeon), Bré Rosário (percussão) e o Duo Imaginário, formado por Adriana Holtz e Vana Bock (cellos). As cordas, escritas por Dori, foram executadas pela St. Petersburg Studio Orchestra.

"O meu contentamento sai de mim com voz de mágoa." O verso, escrito por Paulo César Pinheiro e coberto pela melodia composta por Dori Caymmi, está em “Voz de Mágoa”, uma das três canções inéditas do álbum “Canto Sedutor”. Desse verso, pode-se puxar o fio do disco, que tem 14 faixas, todas parcerias de Dori e Pinheiro. Esse filamento está tingido com as cores do Brasil. Não o verde e amarelo tão banalizado atualmente, mas dos tons de Guimarães Rosa, Pixinguinha, João Cabral de Melo Neto, Dorival Caymmi, Jorge Amado, Di Cavalcanti, Adonias Filho, Tom Jobim e João Gilberto.

Introduzida no disco pela voz de Dori, cujo canto é capaz de conciliar doçura e profundidade, a bela canção “Desenredo” (Ê Minas, ê Minas, é hora de partir eu vou, vou me embora pra bem longe”) se desenrola com os dois artistas puxando o fio da memória afetiva mineira em trama que ecoa a sintaxe do poeta e escritor João Guimarães Rosa (1908 – 1967).

É nesse encontro de vozes de amor e mágoa que reside muito do encanto do álbum “Canto sedutor”. Não se trata de um álbum de Mônica cantando Dori. É um disco em que Mônica canta Dori com Dori – o que faz toda a diferença. A cumplicidade dos solistas salta aos ouvidos já na abertura do álbum com a inédita música-título, “Canto sedutor”: “Às vezes as canções têm dor / E a voz pode até embargar / Mas canto um canto sedutor / Pra quem precisa me escutar”, avisam Salmaso e Dori, afinados, nos versos metalinguísticos do tema de abertura.

Na sequência, outra inédita, “Raça morena”, situa o cancioneiro de Dori e Pinheiro no Brasil interiorano, rural, das matas e das águas, habitat natural da obra resultante da parceria. É nessa geografia sertaneja que se ambientam “Vereda” (2011) – música gravada com arranjo que segue a pisada do baião – e “A água do Rio Doce” (2022), terceira inédita apresentada entre as 14 músicas do álbum. “A água do Rio Doce”, nasceu da indignação causada pela tragédia de Mariana, que sujou a água do rio que banha Minas Gerais e o Espírito Santo. A letra de Pinheiro diz “a água do rio tem medo de gente”.

E, justiça seja feita, o enredo de “Canto sedutor” busca aliviar as dores poetizadas em canções melancólicas como “Delicadeza” (2009), solada pela cantora e ornada com as mesmas cordas que pontuam a lembrança afetiva de “História antiga” (1990), outra faixa somente com a voz de Salmaso.

A luz nordestina de “Estrela da terra” (1980) dissipa a treva sombria do desenredo cotidiano, com o toque do acordeon de Lulinha Alencar, instrumento que é um dos protagonistas da metalinguística “Sanfona, flauta e viola” (1994), exemplo de como a obra dos compositores cariocas se embrenham pelo grande sertão nordestino dos cantadores de baiões, modas, xaxados e aboios, evocados pelo contracanto de Dori na faixa levada pela voz de Mônica.

“Velho piano”, samba-canção que ressoa o desengano que emerge no vaivém do amor, toca fundo na voz de Mônica, secundada pelo contracanto de Dori, com arranjo encorpado pelas cordas da St. Petersburg Studio Orchestra.

“Voz de mágoa” (2017) – música que batizou o último álbum solo de Dori, lançado há cinco anos – ressurge feliz, como cantiga para crianças. Já “O passo da dança” (2014) evolui leve, ágil, no canto dos artistas, com o baixo de Sidiel Vieira, o piano de Tiago Costa e as flautas de Teco Cardoso entrando entrosados na dança na passagem instrumental do arranjo embasado pelas percussões de Bré Rosário e da própria Mônica.

Em atmosfera contemplativa, é bonito de se ouvir a evocação em “Quebra-mar” (2009) do cancioneiro matricial do Dorival Caymmi (1914 – 2008), patriarca da família musical de Dori.

No fecho do disco, a canção “À toa” (2014) mantém o álbum “Canto sedutor” na mesma estrada trilhada pela obra de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, reiterando a sensação de que, embora seja tudo muito bonito no álbum, já passou da hora de Mônica Salmaso – uma das maiores cantoras do Brasil em todos os tempos – sair da zona de segurança e arriscar outros caminhos, outras trilhas, outros sons, como fizeram Alaíde Costa, Áurea Martins e Leila Maria em álbuns recentes e já antológicos.

Mônica Salmaso, de 51 anos, vê um lado político no que gravou em Canto Sedutor, ora sozinha, ora enredando sua voz ao canto maduro de Dori: "Nesse momento, cantar esse repertório virou uma atitude política, um posicionamento. Esse disco é o Brasil de várias misturas, que é potencialmente inacreditável, mas que deu mil passos para trás em todos os sentidos. Há um ódio à cultura e à beleza que é gritado por uma gente que eu me pergunto de onde surgiu. Isso atropela todos os nossos valores. Temos de tirar isso, de alguma maneira".

Dori ainda trabalha em outros dois álbuns com previsão de lançamento para este ano. Um deles é “Sonetos Sentimentais” para violão e orquestra, com poemas escritos por Pinheiro. Outro, um songbook do Selo Sesc que trará um livro e um CD para registrar o modo de Dori tocar violão.

Mônica excursionou recentemente, ao lado do pianista André Mehmari, com um show em que canta Milton Nascimento e o Clube da Esquina. Ela ainda é cotada para fazer uma turnê ao lado de Chico Buarque - que anunciou a volta aos palcos para este ano.

Além de um álbum primoroso, “Canto Sedutor”, com a sensibilidade de Mônica em privilegiar a parceria Dori/Pinheiro, mostra que ambos seguem o propósito que os uniu e que nem o tempo e tampouco essa "gente" capaz de assustar até a água tiveram força para desviar.

Não deixem de adquirir o CD ou de escutar as lindas canções do álbum, disponíveis nas plataformas digitais, como o Spotify.

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com  


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Direção e Editoria
Irene Serra