O álbum “Canto sedutor” de Dori Caymmi e Mônica
Salmaso

Cândido Luiz de Lima Fernandes
No dia 27 de maio foi
lançado o álbum “Canto Sedutor”, de Dori Caymmi e Mônica Salmaso, músicos de
excepcional qualidade, que dispensam maiores apresentações.
Como já havia
escrito em crônica para Rio Total, Mônica Salmaso é dona da mais bela voz
surgida nos últimos anos em nosso país. A escolha criteriosa dos músicos que a
acompanham é uma característica marcante de seu trabalho. Outro aspecto que
marca a trajetória da cantora é a escolha do repertório, que abrange um amplo
espectro da música brasileira. Enxergando a música antes como ofício do que como
um dom, Mônica sempre se manteve avessa à aura de glamour que costuma cercar os
cantores no Brasil, promovendo o distanciamento entre artista e público. Ao
contrário, é reconhecida não só pelo seu talento musical, mas pela sua
simplicidade e proximidade de seu público fiel. Mônica nunca foi cantora de
grandes espetáculos. É intérprete dos teatros de bolso, sempre em parceria com a
nata da música instrumental. Seu timbre é excepcional, daqueles que se reconhece
ao primeiro trinado. Destaca-se a sutileza com que trabalha as melodias, sem
malabarismos, com um discernimento a toda prova, transitando entre vários ritmos
da canção brasileira.
Na pandemia, Mônica fez uma série de lives, intitulada
“Ô de casas”, com grandes compositores e instrumentistas, como Chico Buarque,
com quem dividiu a bela canção “João e Maria”. No palco, Mônica é a pessoa
comum, sutilmente amorosa, que trata seu marido, Teco Cardoso, como “meu
amorzinho”, expressando-se através de pequenos gestos e trejeitos. É uma das
interpretes prediletas de um dos maiores compositores brasileiros, Edu Lobo, que
a convidou para o grande evento dos seus 70 anos, interpretando “Valsa
Brasileira”.
Dori é filho do grande compositor e cantor Dorival Caymmi e
de Adelaide Tostes Caymmi (a cantora Stella Maris) e irmão de Nana Caymmi
(cantora) e de Danilo Caymmi (instrumentista, compositor e cantor). Destacou-se
desde cedo como excelente compositor, vencedor de festivais de música popular
brasileira, diretor musical e exímio arranjador. Foi contemplado, em 2012, com o
Prêmio da Música Brasileira, nas categorias Melhor Álbum/MPB e Melhor
Cantor/MPB, pelo CD “Poesia Musicada”. Celebrando a obra do pai, lançou, em
2013, com os irmãos Nana e Danilo, o CD “Caymmi”, No fim de 2015, este álbum foi
indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de MPB.
Foi de
Mônica, a ideia do álbum. A coragem, segundo a cantora, apareceu depois que ela
convidou o compositor para participar da série “Ô de Casas”, durante a pandemia.
Nela, Mônica cantou, a distância, com inúmeros convidados. Só com Dori, foram
quatro duetos. Na ocasião, fizeram juntos, inclusive, duas canções que estão
nesse disco: “À Toa” e “História Antiga”.
Dori delegou a Mônica a escolha
do repertório do álbum, que traz ainda canções como “Desenredo”, “Estrela da
Terra” e “Velho Piano”. Ela, por sua vez, fez uma pequena barganha: quis que
Dori, além de tocar, cantasse com ela. "Tem o compositor que é uma escola, um
fazedor de canções. Tem o violão que redesenhou o jeito de fazer os acordes, tem
a voz absurda e a mão de arranjador", declarou a cantora. Dori devolveu o
elogio. "Foi a primeira vez que vi meu repertório cantado por uma pessoa com
vontade de entender todo o meu processo criativo. Cantar meu trabalho com Paulo
César Pinheiro, que é artesanal e de uma complexidade melódica extrema, é sair
da zona de conforto. Já teve cantor que disse que preferia não cantar", lembra
Dori, com a sinceridade dos Caymmis. Dori afirma ter muitas composições inéditas
com Pinheiro, a quem ele e outros amigos tratam de Paulinho. De 2008 para cá,
eles fizeram cerca de 80 canções. Mônica deixa um alerta. "Intérpretes, corram,
peçam!"
A direção musical é assinada por ambos em companhia do flautista
Teco Cardoso, marido de Mônica, e que trabalhou com Dori nos Estados Unidos, nos
anos 1990. Com eles, estão os músicos Tiago Costa (piano), Sidiel Vieira (baixo
acústico), Neymar Dias (viola caipira), Lulinha Alencar (acordeon), Bré Rosário
(percussão) e o Duo Imaginário, formado por Adriana Holtz e Vana Bock (cellos).
As cordas, escritas por Dori, foram executadas pela St. Petersburg Studio
Orchestra.
"O meu contentamento sai de mim com voz de mágoa." O verso,
escrito por Paulo César Pinheiro e coberto pela melodia composta por Dori
Caymmi, está em “Voz de Mágoa”, uma das três canções inéditas do álbum “Canto
Sedutor”. Desse verso, pode-se puxar o fio do disco, que tem 14 faixas, todas
parcerias de Dori e Pinheiro. Esse filamento está tingido com as cores do
Brasil. Não o verde e amarelo tão banalizado atualmente, mas dos tons de
Guimarães Rosa, Pixinguinha, João Cabral de Melo Neto, Dorival Caymmi, Jorge
Amado, Di Cavalcanti, Adonias Filho, Tom Jobim e João Gilberto.
Introduzida no disco pela voz de Dori, cujo canto é capaz de conciliar doçura e
profundidade, a bela canção “Desenredo” (Ê Minas, ê Minas, é hora de partir eu
vou, vou me embora pra bem longe”) se desenrola com os dois artistas puxando o
fio da memória afetiva mineira em trama que ecoa a sintaxe do poeta e escritor
João Guimarães Rosa (1908 – 1967).
É nesse encontro de vozes de amor e
mágoa que reside muito do encanto do álbum “Canto sedutor”. Não se trata de um
álbum de Mônica cantando Dori. É um disco em que Mônica canta Dori com Dori – o
que faz toda a diferença. A cumplicidade dos solistas salta aos ouvidos já na
abertura do álbum com a inédita música-título, “Canto sedutor”: “Às vezes as
canções têm dor / E a voz pode até embargar / Mas canto um canto sedutor / Pra
quem precisa me escutar”, avisam Salmaso e Dori, afinados, nos versos
metalinguísticos do tema de abertura.
Na sequência, outra inédita, “Raça
morena”, situa o cancioneiro de Dori e Pinheiro no Brasil interiorano, rural,
das matas e das águas, habitat natural da obra resultante da parceria. É nessa
geografia sertaneja que se ambientam “Vereda” (2011) – música gravada com
arranjo que segue a pisada do baião – e “A água do Rio Doce” (2022), terceira
inédita apresentada entre as 14 músicas do álbum. “A água do Rio Doce”, nasceu
da indignação causada pela tragédia de Mariana, que sujou a água do rio que
banha Minas Gerais e o Espírito Santo. A letra de Pinheiro diz “a água do rio
tem medo de gente”.
E, justiça seja feita, o enredo de “Canto sedutor”
busca aliviar as dores poetizadas em canções melancólicas como “Delicadeza”
(2009), solada pela cantora e ornada com as mesmas cordas que pontuam a
lembrança afetiva de “História antiga” (1990), outra faixa somente com a voz de
Salmaso.
A luz nordestina de “Estrela da terra” (1980) dissipa a treva
sombria do desenredo cotidiano, com o toque do acordeon de Lulinha Alencar,
instrumento que é um dos protagonistas da metalinguística “Sanfona, flauta e
viola” (1994), exemplo de como a obra dos compositores cariocas se embrenham
pelo grande sertão nordestino dos cantadores de baiões, modas, xaxados e aboios,
evocados pelo contracanto de Dori na faixa levada pela voz de Mônica.
“Velho piano”, samba-canção que ressoa o desengano que emerge no vaivém do amor,
toca fundo na voz de Mônica, secundada pelo contracanto de Dori, com arranjo
encorpado pelas cordas da St. Petersburg Studio Orchestra.
“Voz de mágoa”
(2017) – música que batizou o último álbum solo de Dori, lançado há cinco anos –
ressurge feliz, como cantiga para crianças. Já “O passo da dança” (2014) evolui
leve, ágil, no canto dos artistas, com o baixo de Sidiel Vieira, o piano de
Tiago Costa e as flautas de Teco Cardoso entrando entrosados na dança na
passagem instrumental do arranjo embasado pelas percussões de Bré Rosário e da
própria Mônica.
Em atmosfera contemplativa, é bonito de se ouvir a
evocação em “Quebra-mar” (2009) do cancioneiro matricial do Dorival Caymmi (1914
– 2008), patriarca da família musical de Dori.
No fecho do disco, a
canção “À toa” (2014) mantém o álbum “Canto sedutor” na mesma estrada trilhada
pela obra de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, reiterando a sensação de que,
embora seja tudo muito bonito no álbum, já passou da hora de Mônica Salmaso –
uma das maiores cantoras do Brasil em todos os tempos – sair da zona de
segurança e arriscar outros caminhos, outras trilhas, outros sons, como fizeram
Alaíde Costa, Áurea Martins e Leila Maria em álbuns recentes e já antológicos.
Mônica Salmaso, de 51 anos, vê um lado político no que gravou em Canto
Sedutor, ora sozinha, ora enredando sua voz ao canto maduro de Dori: "Nesse
momento, cantar esse repertório virou uma atitude política, um posicionamento.
Esse disco é o Brasil de várias misturas, que é potencialmente inacreditável,
mas que deu mil passos para trás em todos os sentidos. Há um ódio à cultura e à
beleza que é gritado por uma gente que eu me pergunto de onde surgiu. Isso
atropela todos os nossos valores. Temos de tirar isso, de alguma maneira".
Dori ainda trabalha em outros dois álbuns com previsão de lançamento para
este ano. Um deles é “Sonetos Sentimentais” para violão e orquestra, com poemas
escritos por Pinheiro. Outro, um songbook do Selo Sesc que trará um livro e um
CD para registrar o modo de Dori tocar violão.
Mônica excursionou
recentemente, ao lado do pianista André Mehmari, com um show em que canta Milton
Nascimento e o Clube da Esquina. Ela ainda é cotada para fazer uma turnê ao lado
de Chico Buarque - que anunciou a volta aos palcos para este ano.
Além de
um álbum primoroso, “Canto Sedutor”, com a sensibilidade de Mônica em
privilegiar a parceria Dori/Pinheiro, mostra que ambos seguem o propósito que os
uniu e que nem o tempo e tampouco essa "gente" capaz de assustar até a água
tiveram força para desviar.
Não deixem de adquirir o CD ou de escutar as
lindas canções do álbum, disponíveis nas plataformas digitais, como o Spotify.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |