História das letras de música (1)
O Bêbado e a Equilibrista

Cândido Luiz de Lima Fernandes
Iniciamos nesta edição uma nova
série sobre a história das letras de música do cancioneiro popular brasileiro e
de sua importância no contexto político e cultural do país. A letra escolhida
para inaugurar esta seção foi “O Bêbado e a Equilibrista”, canção composta por
João Bosco e Aldir Blanc, e interpretada por Elis Regina em seu LP Essa Mulher,
de 1979.
Em 25 de dezembro de 1977, morria na Suíça o genial comediante
e cineasta inglês Charles Chaplin. No Brasil, o cantor, violonista e compositor
João Bosco sentiu a necessidade de homenagear o artista e, entre o Natal e o Ano
Novo, começou a rascunhar um samba que remetia ao personagem mais famoso de
Chaplin, o vagabundo Carlitos. E aí resolveu chamar o seu parceiro de fé, Aldir
Blanc, para pôr letra na sua criação.
Só que nas mãos de Aldir, o samba
acabou tomando outros rumos, vindo a se tornar “O bêbado e a equilibrista”, um
clássico da música popular brasileira e hino informal sobre o período da anistia
e do declínio da Ditadura Militar no Brasil, sendo mesmo chamado de Hino da
Anistia, ainda que tenha sido composto antes da aprovação da Lei da Anistia, de
1979.
Em depoimento à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), anos mais
tarde, Aldir Blanc contou que “o João me chamou na casa dele e disse que havia
feito um samba, cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com 'Smile'
(tema do filme 'Tempos modernos'), propositalmente construídas para que
homenageássemos Charlie Chaplin. Só que, casualmente, encontrei o cartunista
Henfil e o violonista e compositor Chico Mário, que só falavam do mano que
estava no exílio. Cheguei em casa, liguei para o João e sugeri que criássemos um
personagem chapliniano, que, no fundo, deplorasse a condição dos exilados. Não
era a ideia original, mas ele não criou caso e disse: 'Manda bala, o problema é
seu.'"
E assim nasceu O Bêbado e a Equilibrista. "Caía a tarde feito um
viaduto / e um bêbado trajando luto / me lembrou Carlitos", assim começa "O
bêbado e a equilibrista", com sua letra que empilha referências a eventos e
personalidades marcantes do período de exceção no Brasil. Nos versos "choram
Marias e Clarisses", por exemplo, Aldir Blanc cita as viúvas Maria, mulher do
operário Manuel Fiel, e Clarisse Herzog, esposa do jornalista Vladimir Herzog,
brasileiros assassinados nos porões do DOI-CODI (órgão de inteligência e
repressão do governo militar, subordinado ao Exército) por fazerem parte da
oposição política à ditadura.
Mas o trecho mais lembrado de "O bêbado e
a equilibrista" é justamente o do "Brasil que sonha com a volta do irmão do
Henfil", referência ao sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, que esteve
exilado desde 1971, tendo passado pelo Chile (onde foi assessor do presidente
Salvador Allende, deposto e assassinado em 1973, no golpe militar do general
Augusto Pinochet), Canadá e México.
Quando o samba ficou pronto, João
Bosco e Aldir Blanc o enviaram para a cantora que melhores interpretações e mais
visibilidade vinha dando a suas composições: Elis Regina, estrela suprema da
MPB. A mesma artista que, em 1972, havia sido "enterrada" por Henfil, em uma
charge para o jornal "O Pasquim", no chamado Cemitério dos Mortos-Vivos, devido
à participação na Olimpíada do Exército (ela havia recebido ameaças do Exército
por comentários depreciativos feitos em entrevistas dadas na Europa e, por temer
pelo filho pequeno, achou melhor atender ao convite para a apresentação). Henfil
se emocionou ao ouvir a interpretação de Elis Regina e os dois se reconciliaram.
Elis mostrou "O bêbado e a equilibrista" ao cartunista, que percebeu naquele
samba um importante aliado na luta pela abertura política diante de uma ditadura
então enfraquecida: "Agora temos um hino, e quem tem um hino faz uma
revolução!", disse Henfil a Betinho, por telefone, tentando convencê-lo a voltar
ao Brasil. A música foi tocada, em diversos gravadores, pelas pessoas que foram
receber os exilados (Betinho, entre eles) no Aeroporto de Congonhas, em São
Paulo, no mês de setembro de 1979.
O detalhe curioso sobre "O bêbado e a
equilibrista" é que, quando escreveu sobre "a volta do irmão do Henfil", Aldir
Blanc de fato não sabia o seu nome. E passou-se um bom tempo até que ele
viesse a conhecer pessoalmente o sociólogo, que se depois da volta ao Brasil se
tornaria um importante ativista pelos direitos humanos, vindo a criar o
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e, mais tarde, a
Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. "Nós tivemos um encontro
que só pode ser chamado de cômico", contou Aldir Blanc em depoimento ao Ibase,
em 2017, nos 20 anos da morte do Betinho (ele sucumbiu a complicações da Aids,
que antes dele levou os seus irmãos igualmente hemofílicos Henfil e Chico
Mário). Eu esperava encontrar um sociólogo, um sei lá o quê e tal, e vi um
sujeito irônico, gozador, embora com os olhos marejados de lágrimas. Nosso
primeiro encontro foi na porta do banheiro do Canecão. Nos abraçamos e a frase
dele foi: “Eu não ia voltar, eu tinha me planejado todo para não voltar, mas
ouvi a sua letra para a música do João e resolvi voltar, seu fdp!'"
Passemos à análise da letra da música:
Caía a tarde feito um viaduto E um
bêbado trajando luto Me lembrou Carlitos
A tarde que caía "feito um
viaduto" fazia menção à queda, em 1971, do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de
Janeiro (a obra, concluída dois anos antes, ruiu subitamente, soterrando 48
pessoas e matando 29). De forma irônica, Aldir Blanc se refere ao otimismo do
período como uma ilusão tão frágil quanto uma obra malfeita. Além disso, temos a
figura de Carlitos, que simboliza a classe trabalhadora, a mais afetada pela
situação. Também é possível entender o personagem como um representante da
classe artística, uma vez que as roupas pretas de Carlitos simbolizam o luto
pela falta de liberdade.
A Lua tal qual a dona do bordel Pedia a cada
estrela fria Um brilho de aluguel
A Lua é utilizada aqui no sentido
figurado para se referir a políticos que defendiam o regime militar por
interesses particulares. Sem luz própria, ela recorre às “estrelas frias”
(militares poderosos) em busca de “um brilho de aluguel” (ganhos eleitorais e
pessoais). Ou seja, tal qual a cafetina dona do bordel, que explora as
prostitutas para benefício próprio, esses políticos se vendiam ao regime, para
obter ganhos pessoais.
E nuvens lá no mata-borrão do céu Chupavam
manchas torturadas Que sufoco! Louco!
O mata-borrão era um papel
absorvente, usado para remover excessos de tinta das canetas-tinteiro. Ou seja,
um utensílio para eliminar erros. Assim, o verso “e nuvens no mata-borrão do
céu” se refere às torturas e desaparecimentos promovidos pelo regime militar. Os
torturadores são representados pelas “nuvens”, enquanto o “mata-borrão”
simboliza o DOI-CODI, órgão de repressão do governo. Durante o período da
ditadura militar, era comum que opositores fossem eliminados pelos militares,
que forjavam situações para justificar e abafar as mortes.
O bêbado com
chapéu-coco Fazia irreverências mil Pra noite do Brasil Meu Brasil!
A figura do “bêbado com chapéu-coco” é mais uma referência ao personagem
Carlitos. Assim como Carlitos, que mantinha a irreverência diante das
dificuldades, o povo continuava a tentar levar a vida com bom humor, acreditando
que dias melhores chegariam.
Que sonha com a volta do irmão do Henfil Com
tanta gente que partiu Num rabo de foguete Chora A nossa Pátria mãe
gentil Choram Marias e Clarisses No solo do Brasil
Para Aldir
Blanc, era um desejo de toda a sociedade que pessoas exiladas, como Betinho,
retornassem ao Brasil. Em “chora a nossa Pátria mãe gentil”, há uma alusão
irônica ao Hino Macional Brasileiro. Neste verso ele menciona a dor de “Marias e
Clarisses”, em referência às mães e viúvas de presos políticos, como Maria,
esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, e Clarice, esposa do jornalista
Vladimir Herzog, ambos torturados e mortos pelo regime.
Mas sei que uma
dor assim pungente Não há de ser inutilmente A esperança Dança na corda
bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha Pode se machucar
A
música, que começa em tom de desalento, termina com uma mensagem de fé: toda a
luta de pessoas contrárias ao regime, que sonhavam com a abertura democrática,
não seria em vão. A esperança, mesmo que frágil e andando de sombrinha na corda
bamba, existia.
Azar! A esperança equilibrista Sabe que o show de
todo artista Tem que continuar...
Ainda que o período fosse de
incertezas, tanto o povo quanto a classe artística deveriam seguir em frente,
equilibrando suas esperanças na corda bamba. Afinal, a vida só tem um sentido:
seguir em frente!
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
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