16/09/2020
Ano 23

Semana 1.181







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




Adeus, Sérgio Ricardo (1932-2020)




Cândido Luiz de Lima Fernandes



No último dia 23 de julho perdemos um ser humano luminoso, Sérgio Ricardo. Compositor, cantor, diretor de cinema e pintor, esse artista, natural de Marília (SP) escolheu o Rio para morar - e, não por acaso, morou, nas últimas décadas, até o final da vida, num apartamento dentro da favela do Vidigal. Nos anos 50 e 60, atuou em movimentos que redefiniram a cultura brasileira, como a Bossa Nova e o Cinema Novo, além dos principais festivais de música popular.

Sérgio cantou os sofrimentos e as esperanças de sua gente. Quem não se lembra de sua música “Zelão”? "Todo o morro entendeu quando o Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval/ No fogo de um barracão só se cozinha ilusão/ Restos que a feira deixou e ainda é pouco só/ Mas, assim mesmo o Zelão dizia sempre a sorrir /Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar/ Choveu, choveu!/ A chuva jogou seu barraco no chão/ Nem foi possível salvar violão/ Que acompanhou morro abaixo a canção/Das coisas todas que a chuva levou/Pedaços tristes do seu coração”.

No cinema, Sérgio fez trilhas sonoras para os filmes de Glauber Rocha, “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (quem não se lembra da música "Corisco” na voz de Nara Leão? “Te entrega, Corisco! Eu não me entrego não!”) e dirigiu "Juliana do Amor Perdido", "O Menino da Calça Branca", "Esse Mundo é Meu" e "A Noite do Espantalho". Recentemente, com produção de Cavi Borges, lançou o filme “Bandeira de Retalhos”. O filme traz a história real de resistência dos moradores da favela do Vidigal que lutaram contra a remoção de suas casas. Vale a pena procurar o show “O Cinema na Música de Sérgio Ricardo”, produzido pelo Canal Brasil, que está disponível no YouTube.

No teatro, musicou peças, como "O coronel de Macambira" (encenada pelo Tuca-Rio, sob a direção de Amir Haddad) e criou o roteiro musical da peça "O Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, além de escrever com Ziraldo a peça infantil "Flicts".

Como compositor, foi autor de lindas canções, como “Poema Azul”, “Pernas”, “O Nosso Olhar”, “Bouquet de Isabel”, entre outras. Uma das minhas preferidas de sua autoria é “Mundo Velho sem Porteira”: "Ê mundo velho/ êta mundo sem porteira/ vou me levando no retão da lembranceira/ minha dor é como a lenha numa caldeira/ e a saudade, um trem de carga, sem passageira". Junto com Geraldo Vandré e Carlos Lyra, Sérgio Ricardo trouxe a bossa nova para olhar de perto a realidade brasileira, com músicas de harmonias belíssimas, mas que não falam de sol, sal ou mar. São exemplos disso os versos "Tristeza mora na favela/ às vezes ela sai por aí/ felicidade então/ que era saudade sorri/ brinca um pouquinho/ enquanto a tristeza não vem", da música "Enquanto a Tristeza Não Vem”, que embala com lirismo a dura realidade brasileira. Ou os versos de “Esse Mundo é Meu”: “Esse mundo é meu/ esse mundo é meu!/ Fui escravo no reino e sou/ escravo no mundo em que estou/ mas acorrentado ninguém pode amar”.

Sérgio Ricardo cumpriu sua existência com grandeza. Seu legado mistura muito bem poesia e solidariedade Era de uma solidariedade infinita. Sua obra na música, no cinema e no teatro tem origem nesse olhar verdadeiramente voltado para as outras pessoas.


Viveu um dos momentos mais marcantes da chamada “Era dos Festivais”, em 1967. Em 21 de outubro daquele ano, durante a final do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, considerada por muitos a melhor edição do evento, o músico quebrou seu violão e arremessou o instrumento em direção ao público. O ato marcaria pra sempre sua carreira, inspirando, décadas depois, o título de seu livro "Quem quebrou meu violão" (1991), no qual faz uma análise histórica da música brasileira e fala sobre o episódio.

1. Tudo começou ainda nas eliminatórias do festival - a 3ª Eliminatória, realizada em 14 de outubro de 1967, na qual Sérgio Ricardo defendeu a música "Beto bom de bola", sendo outro grande destaque da noite "Alegria, alegria", apresentada por Caetano Veloso e os Beat Boys. Nesta primeira apresentação, Sérgio Ricardo foi vaiado, e uma animosidade contra ele foi crescendo. Outros artistas, como o próprio Caetano Veloso e Roberto Carlos, também receberam vaias nas suas apresentações.

No dia da grande final, 21 de outubro, Sérgio Ricardo subiu ao palco já sendo vaiado, mas decidido a apresentar um arranjo modificado de sua canção "Beto bom de bola", uma homenagem a Garrincha meio incompreendida pelo público. As vaias eram uma prática comum da plateia, que torcia para seus artistas preferidos como num jogo de futebol naqueles festivais. Mas, naquela ocasião, estavam bem intensas.

2. Após alguns pedidos de silêncio e calma, Sérgio Ricardo ironizou a situação: "O nome da música vai se chamar 'Beto bom de vaia', de forma que vocês possam vaiar a vontade", disse. A alfinetada serviu para pôr ainda mais lenha na fogueira da torcida. Na sequência, ele começou a tocar a canção num andamento lento, destoando ainda mais da animosidade crescente da plateia.
Depois de alguns segundos de execução da música, sem conseguir escutar o retorno da banda, ele se dirigiu nervoso para os presentes: "Vocês ganharam, vocês ganharam!". Saiu de lado, rachou seu violão num banco do palco e o atirou em cima da multidão em polvorosa.
Além das vaias e da impossibilidade de tocar sua música, outros fatores explicam a ira do cantor. Ligado às ideias de esquerda e considerado um dos inauguradores da música de protesto no Brasil, Sérgio Ricardo vinha sofrendo com a censura da ditadura militar, num período em que o regime estava intensificando a perseguição aos artistas.

Tachado por muitos de "comunista", ele não abandonou suas convicções. Seguiu crítico ao regime militar e produziu ao longo da carreira, com suas canções e filmes, importantes reflexões sobre questões sociais brasileiras, como a desigualdade social e a vida nas favelas.



Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com



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Direção e Editoria
Irene Serra