Adeus, Sérgio Ricardo
(1932-2020)

Cândido Luiz de Lima Fernandes
No último dia 23 de julho
perdemos um ser humano luminoso, Sérgio Ricardo. Compositor, cantor, diretor de
cinema e pintor, esse artista, natural de Marília (SP) escolheu o Rio para morar
- e, não por acaso, morou, nas últimas décadas, até o final da vida, num
apartamento dentro da favela do Vidigal. Nos anos 50 e 60, atuou em movimentos
que redefiniram a cultura brasileira, como a Bossa Nova e o Cinema Novo, além
dos principais festivais de música popular.
Sérgio cantou os sofrimentos
e as esperanças de sua gente. Quem não se lembra de sua música “Zelão”? "Todo o
morro entendeu quando o Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou e era
carnaval/ No fogo de um barracão só se cozinha ilusão/ Restos que a feira deixou
e ainda é pouco só/ Mas, assim mesmo o Zelão dizia sempre a sorrir /Que um pobre
ajuda outro pobre até melhorar/ Choveu, choveu!/ A chuva jogou seu barraco no
chão/ Nem foi possível salvar violão/ Que acompanhou morro abaixo a canção/Das
coisas todas que a chuva levou/Pedaços tristes do seu coração”.
No
cinema, Sérgio fez trilhas sonoras para os filmes de Glauber Rocha, “Terra em
Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (quem não se lembra da música
"Corisco” na voz de Nara Leão? “Te entrega, Corisco! Eu não me entrego não!”) e
dirigiu "Juliana do Amor Perdido", "O Menino da Calça Branca", "Esse Mundo é
Meu" e "A Noite do Espantalho". Recentemente, com produção de Cavi Borges,
lançou o filme “Bandeira de Retalhos”. O filme traz a história real de
resistência dos moradores da favela do Vidigal que lutaram contra a remoção de
suas casas. Vale a pena procurar o show “O Cinema na Música de Sérgio Ricardo”,
produzido pelo Canal Brasil, que está disponível no YouTube.
No teatro,
musicou peças, como "O coronel de Macambira" (encenada pelo Tuca-Rio, sob a
direção de Amir Haddad) e criou o roteiro musical da peça "O Auto da
Compadecida", de Ariano Suassuna, além de escrever com Ziraldo a peça infantil
"Flicts".
Como compositor, foi autor de lindas canções, como “Poema
Azul”, “Pernas”, “O Nosso Olhar”, “Bouquet de Isabel”, entre outras. Uma das
minhas preferidas de sua autoria é “Mundo Velho sem Porteira”: "Ê mundo velho/
êta mundo sem porteira/ vou me levando no retão da lembranceira/ minha dor é
como a lenha numa caldeira/ e a saudade, um trem de carga, sem passageira".
Junto com Geraldo Vandré e Carlos Lyra, Sérgio Ricardo trouxe a bossa nova para
olhar de perto a realidade brasileira, com músicas de harmonias belíssimas, mas
que não falam de sol, sal ou mar. São exemplos disso os versos "Tristeza mora na
favela/ às vezes ela sai por aí/ felicidade então/ que era saudade sorri/ brinca
um pouquinho/ enquanto a tristeza não vem", da música "Enquanto a Tristeza Não
Vem”, que embala com lirismo a dura realidade brasileira. Ou os versos de “Esse
Mundo é Meu”: “Esse mundo é meu/ esse mundo é meu!/ Fui escravo no reino e sou/
escravo no mundo em que estou/ mas acorrentado ninguém pode amar”.
Sérgio
Ricardo cumpriu sua existência com grandeza. Seu legado mistura muito bem poesia
e solidariedade Era de uma solidariedade infinita. Sua obra na música, no cinema
e no teatro tem origem nesse olhar verdadeiramente voltado para as outras
pessoas.

Viveu um dos momentos mais marcantes da chamada “Era dos
Festivais”, em 1967. Em 21 de outubro daquele ano, durante a final do III
Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, considerada por muitos a
melhor edição do evento, o músico quebrou seu violão e arremessou o instrumento
em direção ao público. O ato marcaria pra sempre sua carreira, inspirando,
décadas depois, o título de seu livro "Quem quebrou meu violão" (1991), no qual
faz uma análise histórica da música brasileira e fala sobre o episódio.
1. Tudo começou ainda nas eliminatórias do festival - a 3ª Eliminatória,
realizada em 14 de outubro de 1967, na qual Sérgio Ricardo defendeu a música
"Beto bom de bola", sendo outro grande destaque da noite "Alegria, alegria",
apresentada por Caetano Veloso e os Beat Boys. Nesta primeira apresentação,
Sérgio Ricardo foi vaiado, e uma animosidade contra ele foi crescendo. Outros
artistas, como o próprio Caetano Veloso e Roberto Carlos, também receberam vaias
nas suas apresentações.
No dia da grande final, 21 de outubro, Sérgio
Ricardo subiu ao palco já sendo vaiado, mas decidido a apresentar um arranjo
modificado de sua canção "Beto bom de bola", uma homenagem a Garrincha meio
incompreendida pelo público. As vaias eram uma prática comum da plateia, que
torcia para seus artistas preferidos como num jogo de futebol naqueles
festivais. Mas, naquela ocasião, estavam bem intensas. 2. Após
alguns pedidos de silêncio e calma, Sérgio Ricardo ironizou a situação: "O nome
da música vai se chamar 'Beto bom de vaia', de forma que vocês possam vaiar a
vontade", disse. A alfinetada serviu para pôr ainda mais lenha na fogueira da
torcida. Na sequência, ele começou a tocar a canção num andamento lento,
destoando ainda mais da animosidade crescente da plateia. Depois de alguns
segundos de execução da música, sem conseguir escutar o retorno da banda, ele se
dirigiu nervoso para os presentes: "Vocês ganharam, vocês ganharam!". Saiu de
lado, rachou seu violão num banco do palco e o atirou em cima da multidão em
polvorosa. Além das vaias e da impossibilidade de tocar sua música, outros
fatores explicam a ira do cantor. Ligado às ideias de esquerda e considerado um
dos inauguradores da música de protesto no Brasil, Sérgio Ricardo vinha sofrendo
com a censura da ditadura militar, num período em que o regime estava
intensificando a perseguição aos artistas.
Tachado por muitos de "comunista",
ele não abandonou suas convicções. Seguiu crítico ao regime militar e produziu
ao longo da carreira, com suas canções e filmes, importantes reflexões sobre
questões sociais brasileiras, como a desigualdade social e a vida nas favelas.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |