Adeus, Aldir Blanc (1946-2020)

Cândido de Lima Fernandes
Autor de versos memoráveis da música
brasileira, cronista das desventuras e alegrias do país, Aldir Blanc morreu no
dia 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo
coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro
Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril.
Em mais de cinco
décadas de atividade, Aldir construiu uma obra de mais de 600 letras, marcada
pela capacidade de fundir os contrários: humor e fossa, devaneio e realidade,
lirismo e desilusão.
Dor e alegria já estavam embaralhadas na infância
de Aldir Blanc Mendes. Ele nasceu em 2 de setembro de 1946, no bairro do
Estácio, berço do samba urbano carioca. Sua mãe nunca se recuperou totalmente de
uma depressão pós-parto. Seu pai, que se tornaria um grande amigo, era pouco
afetuoso. O filho único foi ser feliz com os avós em Vila Isabel, bairro de um
seus ídolos, Noel Rosa - e, triste coincidência, do hospital onde morreu.
Curioso e observador, logo se embrenhou pelos encantamentos das ruas, dos
tipos humanos e das manifestações culturais de sua cidade, cultivando suas
principais paixões desde cedo: o futebol do Club de Regatas Vasco da Gama, o
samba da Acadêmicos do Salgueiro, a vida boêmia, as pequenas e deliciosas
histórias do cotidiano, a visão crítica e ácida sobre política e desigualdades
sociais, e a poesia, que começou a escrever aos 16 anos.
Em 1966, Aldir
ingressou na faculdade de Medicina, especializando-se na área de psiquiatria.
Mas foi a música que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Em meados dos anos
1960, enquanto praticava letras e poemas, atuava como baterista em conjuntos
semiprofissionais. Chegou a ser contratado para tocar em um programa infantil da
TV Globo.
As primeiras letras a chamar a atenção apareceram em festivais
do final da década. O sucesso veio com “Amigo é pra essas coisas”, parceria com
Silvio da Silva Jr., que ficou em segundo lugar no Festival Universitário de
1970. Foi o período em que ele integrou o MAU (Movimento Artístico
Universitário), ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.
No ano
seguinte, um rapaz chamado Pedro Lourenço se impressionou em Ouro Preto, em
Minas Gerais, com um estudante de engenharia tocando violão. Disse a ele, João
Bosco, mineiro de Ponte Nova, que tinha um amigo no Rio de Janeiro capaz de pôr
palavras naquelas melodias. Nascia ali um dos encontros mais importantes da
música brasileira.
Em 1973, Aldir Blanc abandonaria de vez a carreira de
médico, passando a se dedicar exclusivamente à música, um ano depois do
lançamento em disco de “Agnus sei”, sua primeira parceria com João Bosco.
O encontro com Bosco representou um casamento perfeito: de um lado, o rico
lirismo do letrista; do outro, a sofisticação rítmica e harmônica do violão e
das melodias do então desconhecido músico mineiro. Ao lado dele, Aldir
construiria uma das mais prolíficas e contundentes parcerias da história da
música popular em todo o mundo. Juntos, escreveram clássicos como “Bala com
bala” (sucesso na voz de Elis Regina), “Caça à raposa”, “Linha de passe”,
“Cabaré”, “Kid Cavaquinho”, “O mestre-sala dos mares”, “Incompatibilidade de
gênios”, “Corsário”, “Falso brilhante", “O ronco da cuíca”, “Comadre”,
“Transversal do tempo” e “De frente pro crime” (sucesso na voz de Simone).
Uma das canções mais conhecidas, em parceria com João Bosco, é "O Bêbado e a
Equilibrista", celebrizada na voz de Elis Regina. É interessante a história
desta canção. No Natal de 1977, inspirado na morte de Charlie Chaplin naquele
dia, João Bosco fez uma melodia citando “Smile”, composição do cineasta. Aldir
Blanc achou que valeria associar a figura de Carlitos a outros deslocados na
história, como os exilados pela ditadura militar. Em um de seus versos, "sonha
com a volta do irmão do Henfil", fazendo referência ao cartunista Henrique de
Sousa Filho, o qual, na época, tinha um irmão, o sociólogo Betinho, em exílio
político no exterior. Lançada em 1979 no álbum “Essa Mulher”, de Elis Regina, “O
Bêbado e a Equilibrista” foi adotada pelos brasileiros como o Hino da Anistia,
em referência à lei que concedeu perdão aos perseguidos políticos e abriu
caminho para o retorno da democracia no país.
Nos anos seguintes, além de
Elis, a dupla João Bosco & Aldir Blanc ganharia vários registros com outras
vozes femininas, como Clara Nunes, Simone, Alcione, Zizi Possi e Nana Caymmi,
além das próprias gravações de João em seus discos. No início da década de 1980,
contudo, a parceria arrefeceu, assim como o contato quase diário entre os dois.
Nenhum dos dois jamais citou uma justificativa factual para o "tempo", que durou
duas décadas, nas quais, diziam, a amizade nunca ficou em xeque. Os dois amigos
inseparáveis começaram a se distanciar em 1982. A separação foi gradual e, de
acordo com eles, sem brigas. As melodias de um e as letras do outro passaram a
não se encaixar. Talvez por influência de terceiros, mágoas surgiram. O
reencontro (imprevisto) aconteceu apenas em 2002, numa gravação de “O Bêbado e a
Equilibrista” por Aldir Blanc para o songbook de João Bosco. Desde então,
voltaram a se falar por telefone diariamente, além de compor às vezes, sem a
urgência dos anos de juventude.
Com o afastamento de João Bosco,
surgiram, a partir dos anos 80, novos parceiros, como Guinga (com quem fez,
dentre oitenta músicas, "Catavento e Girassol", "Nítido e Obscuro" e "Baião de
Lacan"), Maurício Tapajós (com quem compôs “Querelas do Brasil”), Sueli Costa,
César Costa Filho (com quem compôs “Ela”, gravada por Elis), Jayme Vignolli,
Hélio Delmiro, Djavan, Ivan Lins, Cristóvão Bastos (com quem fez o clássico
"Resposta ao tempo", sucesso na voz de Nana Caymmi), Edu Lobo, Carlos Lyra, Ivan
Lins, Raphael Rabello, Ed Motta e outros.
Mas foi Moacyr Luz quem
complementou sua poesia como apenas Bosco havia sido capaz. Juntos, eles
escreveram cerca de sessenta canções, entre elas, crônicas apaixonadas e
agridoces sobre a cidade. Da obra de Aldir, aliás, o Rio emerge em canções como
“Centro do coração”, “Só dói quando Rio”, “Do um ao seis” e “Saudades da
Guanabara” (com Paulo César Pinheiro), lançada por Beth Carvalho em seu disco
homônimo de 1989, que viria a se tornar um standard em rodas de samba cariocas.
Com um apetite voraz pela palavra, tanto a cantada quanto a escrita, em mais de
50 anos de carreira, todos dedicados às letras — seja como compositor, escritor
ou cronista—, Aldir Blanc escreveu centenas de canções, lançou discos como
“Rios, ruas e paraísos” (1984, com Maurício Tapajós), “Aldir Blanc — 50 anos”
(1996) e “Vida noturna” (2005), publicou livros — “Rua dos Artistas e arredores”
(1978), “Porta de tinturaria” (1981) e “Vila Isabel, inventário da infância”
(1996), entre outros — e escreveu crônicas, críticas e artigos para veículos de
imprensa como O GLOBO, "O Pasquim", "Jornal do Brasil", “O Dia” e a revista
"Bundas". Autor do livro “Aldir Blanc: resposta ao tempo”, o jornalista Luiz
Fernando Vianna falou ao GLOBO em 2013 sobre a dualidade entre doçura e tristeza
presente em toda a obra do compositor: — “É esse paraíso da infância, mas com a
doença da mãe pairando, o inferno da adolescência, o novo paraíso da primeira
juventude, o inferno da perda das filhas gêmeas (em 1974, as meninas prematuras
morreram ao nascer)... Emoções intensas na vida de um cara sensível e obcecado
por leituras. Deu o caldo que deu”.
Em 2005, na época do lançamento de "Vida
noturna", primeiro disco solo de Aldir como cantor, João Bosco resumiu o porquê
das grandezas de seus versos: — “Ele observa o mundo que está em volta dele, a
vida que está acontecendo e nada escapa ao Aldir. Ele faz isso com um
brilhantismo de quem não teme a morte. Canta a vida o tempo todo e só utiliza a
morte quando precisa dela para fazer um verso. A morte para ele é o trecho de
uma calçada onde ele cai. A morte coincide com o paralelepípedo e é apenas um
detalhe do cenário. Ninguém mais consegue escrever com essa total liberdade de
alguém que não teme nada”.
Nos últimos anos, Aldir vivia recluso em seu
apartamento, na Tijuca. Desenvolveu uma fobia social que se converteu em
reclusão quase permanente. Contribuiu para isso um grave acidente de carro
acontecido em 1991 e que lhe dificultou para sempre o movimento da perna
esquerda. Também tinha diabetes. Havia mais de dez anos que, salvo dias de
exceção, não fumava nem bebia. Distante da bebida e do cigarro que lhe fizeram
companhia em tantos momentos, ele se dedicava a filhas e netos com vigor.
Passava a maior parte do tempo em seu escritório cultivando a obsessão por
livros. Lia sem parar, de tudo: mitologia grega, Segunda Guerra Mundial,
psicanálise, muitos romances policiais etc. Nunca saiu do Brasil, mas viajava
com os livros.
Adorava falar pelo telefone com os amigos. Comentava o
noticiário - com humor e indignação – e compartilhava informações sobre a
família. No primeiro casamento teve duas filhas, Mariana e Isabel. Tristeza
maior de sua vida, perdeu gêmeas no dia do parto prematuro, em 1974. Dizia que
ali se foi o ânimo para exercer a medicina profissionalmente. Quando se casou
com a professora Mari Lucia, ela já tinha duas filhas, Tatiana e Patrícia.
Viraram suas também. Das quatro vieram cinco netos e um bisneto. . Nos
dias anteriores à internação, falava sempre da Covid-19, com medo de que alguém
amado fosse atingido. Não demonstrava preocupação consigo mesmo. Tudo aconteceu
muito rápido. Numa quinta-feira estava bem, na sexta foi levado de ambulância
para o hospital.
Por Aldir Blanc chora a nossa Pátria, mãe gentil. Deixa,
além da família, um sentimento de orfandade em muitas Marias e Clarices, que
choram, ao lado de incontáveis amigos e admiradores, no solo do Brasil.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com

Direção e Editoria
IRENE SERRA
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