SÉRIE "ENCONTROS HISTÓRICOS NA MPB" (4):
Chico e Bethânia

Cândido de Lima Fernandes
Na edição de 15 de março
discorremos sobre o primeiro encontro histórico na carreira de Maria Bethânia, o
seu álbum com Edu Lobo. Bethânia estava em início de carreira. Edu já era um
músico consagrado. Na edição de hoje o assunto é o segundo grande encontro de
Bethânia, desta vez com Chico Buarque. Bethânia já completava dez anos na
estrada da música, assim como Chico Buarque (embora seu primeiro LP seja de
1966, ano que o consagrou com a vitória de “A Banda” no Festival da Record).
Da união de seus talentos o Brasil ganhou um dos discos mais incríveis já
gravados ao vivo. “Chico Buarque & Maria Bethânia – Ao Vivo” tem lugar cativo na
lista de maiores momentos da música brasileira. Gravado no Canecão em 1975, o
disco era uma espécie de presente da gravadora Philips para Bethânia, nos seus
10 anos de carreira.
Ambos nascidos em junho (ela do dia 18, ele do
dia 19), Chico e Bethânia parecem ambos regidos pelo aspecto comunicacional do
signo de Gêmeos, o que transparece em suas carreiras. Ambos são enfeitiçados
pelas palavras, sejam elas lidas, declamadas ou cantadas. Chico consolidou sua
reputação enquanto compositor por músicas que priorizam o duplo sentido, o jogo
lingüístico do que se esconde e se mostra, dizendo muito no dizer e no não
dizer. Já Bethânia escolheu a dedo tudo a que emprestaria sua voz, enchendo de
vida as palavras de seu canto. Não por acaso, seus shows sempre mesclaram a
música e a poesia, compreendendo que a força daquilo que diz não se reduz a uma
única linguagem. Nem em um único sentido, já que “música é perfume”, como já
dizia o documentário sobre a cantora.
Em entrevista ao Jornal Hoje, em
1978, Maria Bethânia contava porque interpretava mais canções de Chico Buarque
do que de seu irmão, Caetano Veloso: “Eu canto muito mais Chico do que Caetano.
Eu posso explicar. Porque Chico tem uma poesia, um modo de escrever letras com
uma alma feminina muito à mostra, muito aparente, e como eu sou uma intérprete,
eu gosto muito de cantar as coisas dele; me identifico mais com as letras do
Chico. E eu acho que eu sou uma das melhores intérpretes de Chico”.
De
fato, no álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia – Ao Vivo”, das 18 músicas, 12
são de autoria do Chico. E, em pelo menos cinco delas, a alma feminina se
revela. A primeira é “Com Açúcar e com Afeto”, consagrada na voz de Nara Leão.
Chico não a havia gravado ainda, porque sua letra é toda no feminino (embora
faça parte do álbum “Chico Buarque de Hollanda – Volume 2”, na voz de Jane,
integrante do trio Os Três Morais). No show, ele canta-a sozinho. Para
contrapor, Bethânia canta, em seguida, “Sem Açúcar”, com acordes ao fundo de
“Cotidiano” (de Chico Buarque): “dia ímpar, tem chocolate, dia par, eu vivo de
brisa; dia útil, ele me bate, dia santo, ele me alisa”. “Sem açúcar” foi feita
especialmente para Bethânia lançar no show.
A terceira música sobre a
alma feminina é a linda “Sem fantasia”, da peça “Roda Viva”, muito pouco tocada
nos tempos atuais e uma das minhas preferidas da obra de Chico. Essa canção era
uma das 12 do LP “Chico Buarque de Hollanda – Volume 3”, de 1968, um dos
primeiros discos que comprei nas Lojas Gomes (que já não mais existe), à Avenida
Afonso Pena, em Belo Horizonte, e certamente um dos que mais ouvi em minha
vitrola Philips. Na versão original, a de 1968, Chico, então com 24 anos,
cantava com uma de suas irmãs, Christina, seis anos mais nova que ele. Por
sinal, Christina só se tornou conhecida do grande público em 1974, quando gravou
o seu maior sucesso, “Quantas Lágrimas”, um samba de Manacéia, compositor da
velha Guarda da Portela.
A quarta música sobre a alma feminina é a
impactante “Gota d’Água”, da peça em dois atos de mesmo nome, que espelha uma
tragédia urbana, banal nos grandes centros, nas favelas do Rio de Janeiro, onde
está ambientada. A peça retrata as dificuldades vividas por moradores de um
conjunto habitacional, a Vila do Meio-Dia, que, na verdade, são o pano-de-fundo
para o drama vivido por Joana e Jasão, que larga a mulher para casar-se com
Alma, filha do rico Creonte. Sem suportar o abandono, e para vingar-se, Joana,
tal qual na tragédia grega “Medéia”, mata os dois filhos e suicida-se. Na cena
final, os corpos são depositados aos pés de Jasão, durante a festa do seu
casamento. É curioso observar que, antes de cantar “Gota d’Água” (“deixa em paz
meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa; e qualquer desatenção, faça
não, pode ser a gota d’água”), Chico interpreta “Notícia de Jornal”, de Haroldo
Barbosa e Luís Reis, que retrata a história de outra Joana, uma mulher pobre que
tentou sem sucesso se matar por causa de uma desilusão amorosa.
O tema
da desilusão amorosa está presente em outras canções do disco, como “Camisola do
Dia”, de David Nasser e Herivelto Martins, “Foi Assim”, de Lupiscínio Rodrigues
e “Cobras e Lagartos”, de Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho. Também em
"Bem Querer", Chico entra primeiro, com voz sóbria, narrando uma história de
amor trágica. Bethânia vem em seguida, com os mesmos versos, mas num tom mais
dramático. O ouvinte fica meio zonzo, sem saber o que abala mais, se a calma de
um ou o tom ameaçador da outra.
Outra canção da peça “Gota d’Água”,
interpretada por Chico, seu autor, e por Bethânia, é a bela “Flor da Idade”. A
parte final de “Flor da Idade” retrata uma vertiginosa ciranda de amores,
fazendo diálogo/referência com/ao poema “Quadrilha”, do grande poeta Carlos
Drummond de Andrade (“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que
amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”). Tem-se em sua letra uma
verdadeira intertextualidade.
Entre as músicas que têm por tema o
carnaval, destaca–se a marcha "Noite dos Mascarados", sobre o encontro entre
dois foliões sem nada em comum. Esta canção foi gravada por Chico em outras
ocasiões, em dueto com Nara Leão e com Elis Regina. Um samba composto por Chico
e cantado pelos dois é o clássico “Quem te viu e quem te vê”, que faz parte do
álbum “Chico Buarque de Hollanda – Volume 2”, no qual se encontra também a
gravação de “Noite dos mascarados”, com Chico e Os Três Morais.
Outro
interessante dueto apresentado no disco é “Vai levando” (Chico Buarque e Caetano
Veloso), que mais tarde foi gravada por Miúcha, irmã do Chico. Um belo diálogo é
“Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, em que duas pessoas conversam
apressadamente de dentro de seus carros enquanto o semáforo não abre. Não
poderia deixar de registrar a arrebatadora interpretação que Bethânia faz de
“Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho.
Uma curiosidade deste álbum é que
sua edição portuguesa, também lançada em 1975, contém a versão original de
"Tanto Mar" (Chico Buarque e Ruy Guerra), com letra (“foi bonita a sua festa,
pá, fiquei contente”). No Brasil esta letra foi censurada, tendo sido
apresentada no show só a parte instrumental.
Finalmente, gostaria de
destacar dois belos momentos do show e do álbum, que são um bálsamo para estes
tempos tão difíceis que estamos vivendo. O primeiro deles é “Olê Olá”, uma das
primeiras composições de Chico, que termina com um alento de esperança: “Não
chore ainda não, que eu tenho a impressão que o samba vem aí; é um samba tão
imenso, que eu às vezes penso que o próprio tempo vai parar pra ouvir”. O outro
é a belíssima "Sonho Impossível", versão de Chico Buarque e Ruy Guerra para a
música "The Impossible Dream", de Joe Darion e Mitch Leigh. Apesar de ter sido
composta em 1972, só foi lançada em 1975 no disco "Chico Buarque e Maria
Bethânia - Ao Vivo" e ficou consagrada na voz da cantora. Os versos finais são:
“E assim, seja lá como for, vai ter fim a infinita aflição e o mundo vai ver uma
flor brotar do impossível chão”. Assim espero.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com

Direção e Editoria
IRENE SERRA
irene@riototal.com.br
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