SÉRIE "ENCONTROS HISTÓRICOS NA MPB":
Elis & Tom

Cândido de Lima Fernandes
Inaugurando uma nova série
de artigos sobre música popular brasileira, vamos tratar neste número do álbum
“Elis & Tom”, de 1974, que reuniu Elis Regina (17 de março de 1945 – 19 de
janeiro de 1982) – uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo – com Antonio
Carlos Jobim (25 de janeiro de 1927 – 8 de dezembro de 1994), um dos maiores
compositores do Brasil e do mundo. O repertório inclui 14 faixas, todas de
autoria de Tom Jobim, nove em parceria com outros compositores. O lançamento
marcou os dez anos de Elis na Philips, tendo resultado de uma oferta da
gravadora para celebrar a data.
As gravações do disco foram
realizadas no MGM Studios em Los Angeles (EUA), nos Estados Unidos, de 22 de
fevereiro a 9 de março de 1974. Essas gravações foram marcadas, inicialmente,
por um clima de tensão. Elis e César Camargo Mariano (marido da cantora, à
época) ficaram apreensivos com a receptividade de Tom Jobim, que estava
incomodado com vários aspectos do projeto: a escolha de César como arranjador, a
participação dos músicos que acompanhavam Elis à época e o uso de instrumentos
elétricos (guitarra, baixo e piano). Entre os músicos, além de César como
pianista, participavam o baixista Luizão Maia, o baterista Paulinho Braga, o
percussionista Chico Batera e o guitarrista Hélio Delmiro. Tom Jobim tinha clara
preferência pelos produtores com quem trabalhava no período, como o alemão Claus
Ogerman e o norte-americano Dave Grusin. Com a intermediação do produtor Aloysio
de Oliveira, Tom aceitou as condições de gravação sugeridas por Elis e César,
convencido de que o disco era um projeto da carreira de Elis e que César era o
produtor dela desde 1970. César Camargo Mariano foi nome fundamental na
formatação deste álbum. Ao pianista foi confiada a missão de fazer os arranjos
do disco, com exceção das faixas “Modinha” e “Soneto da separação” (ambas de
Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), arranjadas por Tom.
Dissipada
a tensão inicial, o disco foi gravado em dois dias. No primeiro, foram gravados
a voz de Elis, o piano de Tom e um naipe de cordas e flautas regido pelo
norte-americano Bill Hitchcock. No seguinte, foram gravados o violão, tocado por
Oscar Castro Neves, a bateria e a parte elétrica por Tom, guitarra, baixo e
piano.
O resultado final de “Elis & Tom” mostra uma Elis sorridente na
fotografia que ilustra a capa. Tanto a cantora como o compositor mostram-se
descontraídos na primeira faixa, “Águas de Março” (Antônio Carlos Jobim),
cantada em dueto, contrapondo a interpretação precisa de Elis Regina com o
timbre grave e sem grande extensão de Tom. No fim da gravação, os dois cantam os
versos da letra com improvisos e sílabas cortadas. Apesar de essa canção ter
sido regravada pelos dois em discos solos antes de 1974, a versão desse disco
tornou-se a mais famosa de todas e é, por muitos, considerada como a versão
definitiva. “Águas de Março” é apontada por estudiosos, jornalistas e críticos
de música como uma das maiores canções de todo o cancioneiro brasileiro.
Os momentos mais emocionantes do disco são “Pois é” (Antonio Carlos Jobim e
Chico Buarque de Hollanda), “Modinha” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de
Moraes), “O que tinha de ser” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “Por
toda a minha vida” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “Corcovado”
(Antonio Carlos Jobim) e o belo poema, “Soneto da separação”, de Vinicius de
Moraes, musicado por Tom. O compositor, além de tocar em todas as faixas, assina
os arranjos de “Soneto da separação” e “Modinha”. A gravação de "Por toda a
minha vida" conta apenas com a orquestra e o vocal de Elis. Cabe mencionar que
Elis canta sozinha a maioria das faixas, excetuando-se “Inútil paisagem”
(Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira), “Soneto da separação” e
“Corcovado”. Tom Jobim tocou piano e violão na faixa "Chovendo na roseira"
(Antônio Carlos Jobim), que Elis interpreta de modo suave, esmerando-se nos
agudos, e também adicionou um vocal abafado aos refrões da cantora em
"Corcovado", onde o arranjo de flautas cadenciadas e de cordas em segundo plano
garantem um clima sensual e triste. Aliás, esta faixa registra um momento mais
versátil de Tom como compositor, que vai além da bossa nova. Também não se
enquadram no rótulo de bossa nova as canções “Soneto da separação” e “Chovendo
na roseira”.
As faixas mais próximas da bossa nova, "Triste" (Antônio
Carlos Jobim), "Brigas, nunca mais" (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)
e "Fotografia" (Antonio Carlos Jobim) possuem uma sonoridade leve, com o vocal
de Elis relaxado, a bateria sincopada, o violão reproduzindo acordes de bossa
nova, sem o peso das cordas do regente Bill Hitchcock.
Nas faixas
"Retrato em branco e preto" (Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda) e
"Modinha", o maestro participa apenas com o seu piano. O resultado dessas
canções garante uma sonoridade diferente das outras faixas bossanovistas: tanto
o vocal quanto o clima orquestrado são mais dramáticos. A faixa “Só tinha de ser
com você" (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira) representa um belo
exemplo de samba jazz, combinando bateria sincopada com violão tocando acordes
de bossa nova. "Inútil paisagem" fecha o disco, sendo considerada uma canção
difícil de ser cantada, porque exige equilíbrio entre técnica e emoção e e aqui
Elis canta apenas acompanhada pelo piano de Jobim, que também sussurra algumas
partes da letra - o mesmo ocorre com "O que tinha de ser".
“Elis & Tom”
foi um sucesso de vendas e atendeu a todas as expectativas de Elis, Jobim e da
gravadora. Segundo a revista Billboard, tornou-se um dos álbuns brasileiros mais
vendidos de todos os tempos. Grande parte da reputação internacional de Elis
Regina como intérprete se deve à gravação desse álbum. Em agosto de 2004, a
Trama, coordenada por João Marcelo Bôscoli, filho de Elis, em parceria com a
Universal Music, lançou uma edição especial de comemoração dos 30 anos do disco,
com supervisão de César Camargo Mariano. Esta edição especial conta com diálogos
de bastidores entre os músicos e duas faixas bônus: uma versão alternativa de
"Fotografia" e a canção "Bonita" (Antonio Carlos Jobim), que tinha sido retirada
do repertório porque Elis não havia gostado de sua pronúncia em inglês. A nova
versão, segundo Mariano, seria como se o ouvinte "estivesse dentro do estúdio: é
possível escutar barulhos do estúdio e pés batendo no chão contando os tempos
musicais. Foi o primeiro álbum da história da MPB a utilizar esse recurso
tecnológico, até então novo e inédito.
O álbum “Elis & Tom” é histórico
porque reúne o mais musical dos compositores brasileiros e, tecnicamente, a mais
bem dotada das nossas intérpretes, de todos os tempos. Quem ouve Elis cantar,
ainda que só pelas gravações que ela deixou, não tem como manter-se em desacordo
com os que a consideram a melhor intérprete da Música Popular Brasileira. Elis
reuniu – e desenvolveu – todas as qualidades que fazem uma cantora marcar época.
Senhora da técnica e dona de uma emoção insuperável, exalava excelência em
música por todos os poros O disco é maravilhoso, o repertório é irretocável e as
leituras são definitivas. Foi gravado em 1974, mas ainda hoje, quando o
escutamos, sabemos que é um disco feito para ficar, que queremos ouvir sempre.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com

Direção e Editoria
IRENE SERRA
irene@riototal.com.br
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