Adeus, João Gilberto
(1931-2019)
Cândido Luiz de Lima Fernandes
No dia 6 de julho calou-se uma das vozes mais
marcantes da música popular brasileira: o pai da bossa nova, João Gilberto Prado
Pereira de Oliveira. Embora alguns brasileiros não o reconheçam, a UNESCO acaba
de proclamar, após um minuto de silêncio, que “a morte de João Gilberto é perda
para o patrimônio cultural da humanidade”. O genial João Gilberto mudou o jeito
de cantar e de tocar violão de vários artistas ao criar a bossa nova, que, sem
dúvida, conquistou o mundo. Antônio Carlos Jobim talvez exagerasse ao dizer que
João Gilberto, antes mesmo de gravar “Chega de saudade”, já tinha influenciado
“toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores.” Mas logo o
exagero se transformou em profecia plenamente confirmada: a partir justamente de
seu primeiro disco, com “Chega de saudade”, de um lado” e “Bim bom,” do outro, o
baiano de Juazeiro fez, aos 27 anos, seguidores não só na sua, mas em outras
gerações.
O caminho que João Gilberto percorreu até chegar ao estrelato
foi cheio de idas e voltas. Em 1942, viajou para Aracaju (Sergipe), onde estudou
durante quatro anos. De volta a Juazeiro, recebeu de seu pai um violão e formou
o conjunto vocal “Enamorados do Ritmo”. Em 1947, mudou-se para Salvador. Decidiu
abandonar os estudos para dedicar-se exclusivamente à música. Chegou ao Rio na
década de 50 para tentar a sorte. Ali fez alguns trabalhos, alguns amigos, mas
não fez sucesso. Mudou-se em 1955 para Porto Alegre. Alguns meses depois foi
parar em Minas Gerais, onde foi passar uma temporada na casa da irmã, em
Diamantina. Contam que ele então resolveu se isolar. Passava os dias trancado no
banheiro tocando violão. A acústica dos azulejos oferecia um tom mais encorpado
e ele descobriu um jeito diferente de tocar e de cantar. E, depois de João
Gilberto, a maneira de tocar e cantar dos compositores, cantores e violonistas
brasileiros nunca mais foi a mesma.
Quando voltou ao Rio em 1957, João
procurou um turma de jovens músicos que costumava se reunir na Zona Sul da
cidade. Ele morava num apartamento em Copacabana, pertinho de Roberto Menescal.
Este o introduziu nas reuniões de música da Zona Sul, onde foi apresentado a Tom
Jobim e Vinicius de Moraes.
Em 1958, acompanhou ao violão a cantora
Elizeth Cardoso na gravação de "Chega de saudade" (Tom Jobim e Vinicius de
Moraes) e "Outra vez", faixas incluídas no LP "Canção do amor demais". Também
nesse ano, gravou um 78 rpm contendo "Chega de saudade" e "Bim bom", de sua
autoria. O histórico disco, citado mais tarde como referência por muitos
artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso, apresentava uma interpretação
vocal intimista e uma nova batida de violão, tornando-se um marco para a bossa
nova. O que ninguém sabia era que as notas que saíam daquele violão eram o
anúncio de uma revolução. “Chega de saudade”, que era para ser tocada como um
choro, acabou virando, no violão de João Gilberto, uma coisa que ninguém sabia
dizer o que era. Nunca se tinha tocado daquele jeito. A voz era contida, quase
um sussurro. Sua mão direita tocava os acordes e marcava o ritmo como se o
violão fosse um tamborim. Era o máximo!. Parecia que ele fazia sucesso sem fazer
esforço. Que nova bossa seria aquela? Aquela era a bossa nova.
Desde o
histórico “Chega de saudade” (1958), João Gilberto esteve presente em
praticamente tudo que dizia respeito ao movimento da bossa nova, das famosas
reuniões no apartamento de Nara Leão ao espetáculo no Carnegie Hall, em 1962,
dos shows universitários ao lançamento de “Garota de Ipanema” no Au Bon Gourmet
(também em 1962), única vez em que atuou ao lado de Tom Jobim e Vinicius de
Moraes.
Foram fundamentais foram seus três primeiros LPs, lançados pelo
selo Odeon. Nesses discos, João Gilberto estabeleceu o que seria, para sempre,
sua relação com a música: só cantar, só tocar, só se acompanhar no que gosta,
sempre no seu estilo, independentemente de autor, data, gênero, popularidade,
apelo comercial.

Foi o único intérprete brasileiro a gravar discos ou
fazer shows reunindo canções tão desiguais como inéditas de Jobim & Newton
Mendonça e clássicos de Ary Barroso e Dorival Caymmi; as novidades de Carlos
Lyra, Menescal & Bôscoli e velhas versões de Nilo Sérgio e Haroldo Barbosa;
antigos como Herivelto Martins, Janet de Almeida, Noel Rosa, Bororó e sambistas
como Geraldo Pereira, Zé-com-Fome, Bide & Marçal. Como é extensa a sua
discografia, vamos apresentar aqui apenas os discos mais importantes.
Seu
primeiro LP foi “Chega de saudade” (1959), no qual, além das canções lançadas
nos dois 78 rpm, faz a releitura de antigos sucessos como "Morena boca de ouro"
(Ary Barroso e Luís Peixoto), "Rosa morena" (Dorival Caymmi) e "Aos pés da santa
cruz" (Marino Pinto e Zé da Zilda), e "Lobo bobo", faixa que lançava uma nova
dupla de compositores, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. . Antes de gravar
o segundo LP, “O amor, o sorriso e a flor”, João Gilberto casou-se com Astrud
Evangelina Weinert, uma jovem baiana moradora de Copacabana. João a conheceu-a
na casa de Nara Leão e com ela participou do histórico show de bossa nova na
Faculdade de Arquitetura. O casamento durou quatro anos e dele nasceu, em 1960,
João Marcelo, futuro contrabaixista. Nesse período, João Gilberto participou de
shows e programas de TV, gravou jingles, trabalhou no que pôde, enquanto
preparava o novo LP. “O amor, o sorriso e a flor” foi lançado em 1960 , nos
moldes do primeiro LP. Neste se destacam gravações destinadas a virar clássicos,
como “Samba de uma nota só”, “Meditação” e “Corcovado”, e o solo de violão em
“Um abraço no Bonfá”, no qual João reproduz, com surpreendente técnica, o estilo
do homenageado.
No terceiro LP gravado pela Odeon, “João Gilberto”
(1961), o artista contou com acompanhamento do conjunto de Walter Wanderley,
destacando-se "O barquinho" (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), ao lado da
releitura de sucessos como "Samba da minha terra" e "Saudade da Bahia", ambas de
Dorival Caymmi.
“Getz/Gilberto”(1964) marca a estreía de João Gilberto
nos Estados Unidos, em que ele revela a bela voz de sua mulher, Astrud Gilberto.
Com Jobim no piano e Stan Getz no sax, João cantando em português e Astrud em
inglês, a canção “Garota de Ipanema” começa a ganhar o mundo. “Getz/Gilberto”
fez um retumbante sucesso. Recordes de venda, quatro Grammys, saudado pelos
músicos de jazz (Miles Davis teria dito que “até lendo jornal, João Gilberto soa
bonito”), o disco universalizou de vez a bossa nova. Já separada de João
Gilberto e envolvida com Getz, Astrud se tornaria tão famosa quanto o ex-marido.
Nunca mais voltaria ao Brasil.
Na década de 1960, João Gilberto
excursionou pela Europa. Em sucessivas viagens de ida e volta aos Estados
Unidos, e uma ou outra visita profissional ao Brasil, cantou na Inglaterra,
Holanda, França, Portugal, Espanha, Alemanha, Bélgica e Itália.
Em
Paris, já separado de Astrud, conheceu Heloisa Buarque de Holanda, a Miúcha.
Casaram-se, formaram uma parceria musical, viveram nos Estados Unidos e lá, em
1966, tiveram uma filha, Isabel, a Bebel, cantora com carreira e residência
dividida entre os dois países. Em 1966. João lança “João Gilberto Prado Pereira
de Oliveira” e convida Rita Lee para inesquecível interpretação de “Joujoux e
Balangandãs”.
Em 1969, viajou para o México, onde residiu durante dois
anos. Participou de festivais de jazz em Guadalajara, Guanahuapi, Cidade do
México e Puebla, e apresentou-se na boate Forum e no Museu da Cidade do México,
onde recebeu o Troféu Chimal. Lançou, em 1970, o LP "João Gilberto en Mexico",
com destaque para o bolero "Farolito", de Agustin Lara, além de "O sapo" (João
Donato) e "De conversa em conversa" (Lúcio Alves), entre outras canções que
receberam arranjos de Oscar Castro Neves.
Em 1973 foi a vez de “João
Gilberto”, com duas composições suas, além de "Águas de março" (Tom Jobim), da
regravação de "Isaura" (Herivelto Martins e Roberto Roberti), de "Na baixa do
sapateiro" (Ary Barroso) e de "Falsa baiana" (Geraldo Pereira), entre outras.
Em 1976 reencontra Stan Getz em no LP “The best of the two worlds”, no
qual Miúcha canta em inglês “Chovendo na roseira”, “Águas de março” e “Isaura”.
João apresenta sua primeira gravação de “Retrato em branco e preto” e é o
primeiro a cantar a letra original de Jobim para “Lígia”.
“Amoroso”
(1977), com arranjos de Claus Ogerman, foi, dos seus discos americanos, o mais
elogiado. Destaca-se nele a melhor interpretação de “Retrato em branco e preto”
e a italiana “Estate”, transformada em sucesso internacional.
Em 1979
João Gilberto retorna definitivamente ao Brasil. A partir de então fez poucos
shows e apresentou algumas poucas novidades musicais, em forma de disco. Um dos
discos lançados após sua volta foi “Brasil” (1981), em que homenageia os baianos
que brilhantemente o seguiram: Caetano Veloso, Gilberto Gil e, numa das faixas,
Maria Bethãnia. São apenas seis canções, cinco bem brasileiras, a começar por
“Aquarela do Brasil”, e uma de fora, “All of me”, vertida por Haroldo Barbosa.
Seu show ao vivo no Festival de Jazz de Montreux em 1986 foi lançado no CD
duplo "Live at the 19th Montreux Festival", em que apresenta uma variedade de
canções, de Ary Barroso, Geraldo Pereira, Wilson Batista a Tom & Vinicius e
Caetano Veloso.
Em 1991 lançou “João”, acompanhado por grande orquestra,
com destaque para "Ave-Maria no morro" (Herivelto Martins), "Sampa" (Caetano
Veloso) e "You do something to me" (Cole Porter), além de canções em espanhol,
italiano e francês.
Em 1994 foi a vez de “Eu sei que vou te amar”,
gravado ao vivo no Palace, em São Paulo, tendo sua filha Bebel Gilberto como
convidada. Nele apresentou um repertório típico de seus shows solos: clássicos
alternando-se com música tradicional (Caymmi, Ary Barroso, Custódio Mesquita) e
sempre uma surpresa mais antiga, como é o caso de “Guacira”, de 1933.
Em
2000, lançou o disco "João, voz e violão", pela Universal Music, com produção
musical de Caetano Veloso. O disco incluiu regravações de "Chega de saudade" e
"Desafinado", além de clássicos do samba que o cantor já apresentava há algum
tempo em seus shows, como "Da cor do pecado" (Bororó), "Não vou pra casa"
(Antônio Almeida e Roberto Roberti) e "Segredo" (Herivelto Martins e Marino
Pinto). Destacam-se também no repertório, sambas de Caetano Veloso como "Desde
que o samba é samba" e "Coração vagabundo", e de Gilberto Gil, como "Eu vim da
Bahia", além do bolero "Eclipse", do cubano Ernesto Lecuona, e de "Você vai ver"
(Tom Jobim).
Em 2003, apresentou-se (voz e violão) no Tokyo
International Forum Hall A, no Japão. Em 2004, foi lançado o CD “João Gilberto
in Tokyo”, gravado ao vivo no Tokyo International Forum Hall A, no Japão, no dia
12 de setembro do ano anterior. No repertório, “Corcovado”, “Este seu olhar”,
“Wave” e “Ligia”, todas de Tom Jobim, “Acontece que eu sou baiano” e “Rosa
Morena”, ambas de Dorival Caymmi, “Meditação” (Tom Jobim e Newton Mendonça),
“Doralice” (Dorival Caymmi e Antônio Almeida), “Isto aqui o que é” (Ary
Barroso), “Pra que discutir com Madame” (Haroldo Barbosa e Janet de Almeida),
“Louco (Ela é seu mundo)” (Wilson Batista e Henrique de Almeida), “Bolinha de
papel” (Geraldo Pereira), “Adeus América” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa),
“Preconceito” (Wilson Batista e Marino Pinto) e “Aos pés da Cruz” (Marino Pinto
e Zé da Zilda).
Após 14 anos de ausência dos palcos cariocas,
apresentou-se, em 2008, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, celebrando os 50
anos da bossa nova, sendo acompanhado pela platéia em coro, ao final do
espetáculo, na canção "Chega de saudade".
Seus problemas começaram a
acontecer quando completou 80 anos em 2011, ano em que foi anunciada uma turnê
com shows em diversos lugares do país. No entanto, a turnê fora cancelada,
devido a problemas de saúde do cantor.
Absolutamente recluso e em meio a
problemas sérios de saúde, João Gilberto faleceu em 6 de julho de 2019, aos 88
anos, deixando um legado que formou gerações e jamais será esquecido. Conhecido
por seu temperamento difícil, perfeccionista e peculiar, coisa de quem é genial,
João colecionou histórias. Como escreveu Arthur Xexeo: “São muitas as lendas e
os mistérios que cercam a música e a figura de João Gilberto. Mas até onde se
sabe a história do homem que mudou a história da nossa música, ele não se gabava
do seu imenso talento. Costumava dizer num versinho, quase sussurrando: eu
possuo apenas o que Deus me deu”.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com

Direção e Editoria
IRENE SERRA
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