Ano 21 - Semana 1.091

 

 

 
ARQUIVO de MÚSICA




1º de setembro, 2018


SÉRIE GRANDES CANTORAS DA MPB (1):

ELIS REGINA

 

Cândido Luiz de Lima Fernandes


O dia 19 de janeiro de 1982 foi um dos mais tristes da minha vida. Liguei a TV por volta do meio-dia e me deparei com a notícia da morte, aos 36 anos, daquela que, por sua competência vocal, musicalidade, sensibilidade e presença de palco, é considerada a maior cantora brasileira de todos os tempos, comparada a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday: Elis Regina de Carvalho Costa, ou simplesmente Elis. O impacto de sua morte prematura, no auge de uma carreira gloriosa, foi tão grande que passei anos sem conseguir escutar seus discos. Só voltei a fazê-lo muito tempo depois e ainda hoje me emociono com a beleza e a força de sua interpretação.

Como seu ardoso fã, tenho tudo que Elis gravou e tive oportunidade de assistir a todos os seus shows. A primeira vez que a vi na TV tinha apenas 14 anos e me emocionei com a sua interpretação arrebatadora de “Arrastão”, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo, no festival de MPB da TV Excelsior, em 1965. O título de melhor intérprete do festival lhe garantiria o convite para atuar na televisão, conquistando, pouco tempo depois, o status de primeira estrela da canção popular brasileira, quando passou a comandar, ao lado de Jair Rodrigues, o mais importante programa de música popular brasileira: “O Fino da Bossa”. Em Belo Horizonte este programa era transmitido às sextas à noite e eu passava a semana inteira aguardando-o. Não perdi nenhum e ficava extasiado ao vê-la cantar e apresentar grandes nomes de nossa música popular.

O primeiro disco de Elis que adquiri foi “Samba - eu canto assim” , de 1965 e me arrepiava ouvindo-a interpretar “Por um amor maior”, de Francis Hime e Ruy Guerra. Depois vieram os três álbuns “Dois na bossa “, com Jair Rodrigues e seus famosos pot-pourris. Um dos grandes sucessos dessa época e ao longo de toda a carreira de Elis Regina foi a canção “Upa neguinho”, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, que fez parte do musical “ Arena conta Zumbi”, dirigido por Augusto Boal, em 1965. Na década de 60 teve destaque o lançamento dos discos “ O Fino do Fino” (1965); “Elis” (1966), onde se pode ouvir a linda interpretação de “Carinhoso”, de Pixinguinha; “Elis como e porque” (1969), em que canta de modo bastante original “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso)/Nega do Cabelo Duro”(David Nasser e Rubens Soares); “Elis in London” (1969) e “Elis em Pleno Verão “ (1970), com a pungente interpretação de “As curvas da estrada de Santos”, de Roberto e Erasmo Carlos . Em 1967 obteve mais uma vitoriosa participação no III Festival de Música Popular Brasileira (TV Record), com “O cantador” (de Dori Caymmi e Nelson Motta), classificando-se para a finalíssima e reconhecida com o prêmio de Melhor Intérprete.

Em 1968, uma viagem à Europa lança a cantora no eixo musical internacional, tendo conquistado grande sucesso, principalmente no Olympia de Paris, onde se tornou a primeira artista a se apresentar duas vezes num mesmo ano, naquela que é a mais antiga sala de espetáculos musicais de Paris. Em 1969, gravou “Aquarela do Brasil” em Estocolmo, com o gaitista belga Toots Thielemans.

Na década de 70 Elis lançou 10 LPs, dentre os quais destaco “Elis” (1972), com a emocionante interpretação de “Atrás da porta”, de Francis Hime e Chico Buarque; “Elis e Tom” (1974), em que registrou as mais belas músicas daquele que é considerado o maior compositor brasileiro, Tom Jobim (este disco é considerado um dos melhores da história da música popular brasileira); “Falso Brilhante” (1976), em que revelou Belchior em “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida” e canta sublimemente “Gracias a la vida” (de Violeta Parra), “Fascinação” (versão da música de Féraudy e Marchetti) e “Tatuagem” (de Chico Buarque); “Elis” (1977), com as belíssimas ”Morro Velho” (de Milton Nascimento), “Romaria” e “Sentimental eu fico”, ambas de Renato Teixeira; “Transversal do tempo” (1978), em que interpreta “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa, “Construção”e “Deus lhe pague” (de Chico Buarque), “Sinal Fechado” (de Paulinho da Viola) e “Querelas do Brasil” (de Maurício Tapajós e Aldir Blanc). Na década de 70, destacaram-se seus grandiosos shows, como o espetáculo “Falso Brilhante”, de 1975 , que mais tarde originou um disco homônimo e atingiu enorme sucesso, ficando mais de um ano em cartaz, com quase 300 apresentações. Lendário, tornou-se um dos mais bem sucedidos espetáculos da história da música brasileira e um marco definitivo da carreira. Ainda teve grande êxito com o espetáculo “Transversal do Tempo”, em 1978, de um clima extremamente político e tenso; o “Essa Mulher” em 1979, direção de Oswaldo Mendes, que estreou no Anhembi em São Paulo e excursionou pelo Brasil no lançamento do disco homônimo; o “Saudades do Brasil”, apresentado no Canecão, no Rio de Janeiro em 1980, sucesso de crítica e público pela originalidade, tanto nas canções como “Canção da América” (de Milton Nascimento e Fernando Brant e “As Aparências Enganam” (de Tunai e Sérgio Natureza) quanto nos números com dançarinos amadores, direção de Ademar Guerra e coreografia de Márika Gidali (Ballet Stagium). Seu último show foi “Trem Azul”, de 1981, ao qual tive o privilégio de assistir no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.

Elis era engajada politicamente, tendo participado de uma série de movimentos de renovação política e cultural brasileira, com voz ativa da campanha pela volta de exilados brasileiros. O despertar de uma postura artística engajada e com excelente repercussão acompanharia a sua carreira, com interpretações consagradas, como a de “O bêbado e a equilibrista” (João Bosco e Aldir Blanc), que acabou se tornando o hino da Anistia.

Em 1980, gravou o disco “Elis”, onde se destaca a impressionante interpretação de “Se eu quiser falar com Deus”, de Gilberto Gil . Posteriormente à sua morte, foram lançados os discos “ Trem Azul”, em 1982; ”Luz das Estrelas (1984), “Elis ao Vivo” (1995) e “Elis Vive” (1998).

Elis teve um papel importantíssimo na divulgação da música popular brasileira e foi responsável pelo lançamento de grandes compositores até então desconhecidos, como Milton Nascimento, Renato Teixeira, Tim Maia, Gilberto Gil, João Bosco e Aldir Blanc e Sueli Costa.

A técnica e o domínio vocal aliados a uma enorme sensiblidade tornam insuperáveis as interpretações de Elis. Se vocês não têm seus discos e cds, ouçam-nas nas plataformas digitais. É algo indescritível. Fico triste ao constatar como atualmente as rádios brasileiras tocam muito pouco suas belíssimas gravações. Para quem quiser saber mais sobre sua vida e obra, indico os livros “Furacão Elis”, de Regina Echeverria, “Elis”, de Arthur de Faria e “Elis Regina – Nada será como antes “, de Júlio Maria.

Elis é hoje uma estrela de primeira grandeza a brilhar no céu e vive em nossos corações.

 

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email: candidofernandes@hotmail.com






 

Direção e Editoria
IRENE SERRA
irene@riototal.com.br