Um CD imperdível: Edu, Dori & Marcos

Cândido Luiz de Lima Fernandes
Depois de mais de meio século
de amizade, os geniais compositores Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle se
reúnem no álbum Edu, Dori & Marcos, concebido e lançado pela gravadora Biscoito
Fino em CD e nas plataformas digitais. O álbum não traz os três cantando e
tocando juntos em nenhuma de suas doze faixas. Sua concepção foi a seguinte:
cada um escolheu quatro composições, sendo duas de cada colega, e se incumbiu
dos vocais e direção musical. Ou seja, nenhum cantou músicas de sua própria
autoria. A banda base que acompanhou os três traz os craques Cristóvão Bastos
(teclados), Jorge Helder (baixo), Jurim Moreira (bateria) e Jessé Sadoc (sax),
além de outros músicos de apoio.
Edu, Dori & Marcos não é um projeto
novo. Dori comenta que as escolhas das músicas foram espontâneas: “Eu, por
exemplo, não gosto de samba muito alegre, sou ruim da cabeça e doente do pé, e
fui nas mais lentas. Convivemos com Tom Jobim, Vinicius, João Gilberto, Dolores
Duran, uma influência que gerou uma música diversificada, e com ligação profunda
com o que é o Brasil. Somos os três virginianos, de estilos diferentes (Dori é
de 26 de agosto; Edu é de 29 de agosto; Marcos, de 14 de setembro). Três meninos
irreverentes, que vieram da mesma árvore.”
Os três músicos se conhecem
desde adolescentes. Edu e Marcos, ex-colegas no tradicional Colégio Santo
Inácio, no Rio de Janeiro, se esbarraram um dia num ônibus, na zona sul. Edu
levava um violão. Marcos logo contou que também tocava o instrumento e que
convivia com Dori, o filho do meio de Dorival Caymmi. Marcos se lembra até hoje
de detalhes do tal esbarrão no ônibus. Os rapazes se chamaram pelos sobrenomes,
como faziam na escola aos “onze ou doze anos”: ele era Kostenbader; Edu, Góes
Lobo. Formaram um trio de curta duração. Marcos brinca que o trio poderia ser
batizado de “Filhos de pais famosos”, uma vez que Edu e Dori eram filhos de
reconhecidos compositores, respectivamente Fernando Lobo e Dorival Caymmi.
Em 1961, os três se uniram pela primeira vez para cantar na televisão, no
calor da ascensão da bossa nova. O trio não prosperou, e os três cariocas Dori
(filho de baiano com mineira), Edu (filho de pernambucano) e Marcos (filho de
paraense) iniciaram histórias individuais na chamada “segunda dentição” da bossa
nova, inventada três anos antes pelo pianista Tom Jobim e pelo violonista João
Gilberto. A amizade e a admiração mútuas entre os três, porém, estavam seladas
para a posteridade.
Marcos conta que “por meio deles, entrei nas rodas
de música, fui conhecendo as pessoas. Íamos à casa do Lula Freire, do Caymmi,
Ary Barroso, Vinicius de Moraes. Assim, conheci Roberto Menescal, todo mundo da
bossa nova, e as coisas decolaram para mim. Era difícil entrar nas rodas. O
violão rodava e você tinha que tocar alguma coisa boa. Se não tivesse qualidade,
não era chamado na próxima vez”.
As diferenças entre os três
acentuaram-se ao longo do tempo, tendo cada um seguido sua própria trajetória.
”São três vidas completamente diferentes”, afirma Dori. Após o sucesso inicial,
os três participaram da diáspora musical brasileira dos anos 1960, na revoada de
artistas, primeiro devido ao sucesso internacional da bossa nova, depois no bojo
da repressão da ditadura militar.
Edu, filho do jornalista e compositor
Fernando Lobo (dos sambas-canção “Chuvas de Verão”, “Ninguém Me Ama” e
“Preconceito”), foi dos três o que mais se aproximou de um astro pop nos anos
1960, no contexto da chamada “canção de protesto”. Enquanto o jovem Dori se
dedicava a fazer arranjos e direções musicais para nomes emergentes como Nara
Leão (inclusive o mitológico show “Opinião”, de 1964) e os futuros tropicalistas
baianos, Edu brilhava e vencia festivais da canção com “Borandá” (1964),
“Arrastão” (1965) e “Ponteio” (1967). Com esta última música venceu Chico
Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os versos melancólicos “quem me dera
agora eu tivesse a viola pra cantar”.
Dori virou um excelente arranjador,
além de compositor, com uma rica parceria com brilhantes letristas como Paulo
César Pinheiro e Nelson Motta. No Festival Internacional da Canção de 1966, Dori
ganhou dos demais com “Saveiros”, defendida pela irmã, Nana. Neste mesmo
festival Marcos participou com “O Amor é Chama”; e Edu, com “Canto Triste”.
Passados 52 anos, as três faixas estão no CD. Em 1968, Dori foi convidado para
fazer o arranjo de “Viola Enluarada”, de Marcos e Paulo César Valle; em 2003,
ele gravou com Edu “Choro Bandido” (Edu Lobo/Chico Buarque) no CD
“Contemporâneos”, que tinha também a linda “Viola Enluarada”, dos irmãos Marcos
e Paulo César.
Marcos despontou como expoente da segunda geração da bossa
nova, com músicas como “Samba de Verão”, segundo lugar na hit parade dos EUA em
1964, com uma centena de gravações naquele país, incluindo os populares Andy
Williams, Connie Francis, B.J. Thomas e Johnny Mathis. Embora da década de 1960
para cá tenham ocorrido encontros esporádicos entre os três compositores, apenas
em 2016 eles dividiram um palco, num show que foi a semente do CD que lançam
agora. Neste show, Marcos comemorava os 50 anos de carreira com a cantora
norte-americana Stacey Kent, sua parceira em dois CDs. Para uma das
apresentações, ele chamou Edu e Dori para aparecerem como convidados. Edu então
sugeriu que deveriam fazer um CD em trio.
Segundo Edu, “nenhum canta
música própria, o que eu acho um grande barato. Gravamos as músicas dos outros
dois, dando a sua cara. Não pensamos em ‘música de trabalho”: a gente escolheu o
que gosta mais, o que acha mais bonito”. De fato, a escolha das canções em
repertório tão rico poderia ser problema, se o critério adotado não tornasse
tudo mais simples: levados pelo gosto pessoal, Marcos Valle, Edu Lobo e Dori
Caymmi escolheram algumas de suas favoritas na obra do outro para interpretá-las
à sua maneira. Embora a abordagem mantenha o estilo de cada um (é curioso ver
alguns clássicos “mudando de dono”), a unidade do resultado se realiza na alta
qualidade. Eles são da mesma geração musical, nasceram no mesmo ano (1943) e
ainda pertencem ao mesmo signo!
No CD, Edu relê de forma inspirada as
músicas “O Amor é Chama” e “Viola Enluarada”, da dupla Marcos e Paulo Sérgio
Valle. Tendo optado por não tocar violão em suas gravações, também se deu bem
nas duas canções pinçadas do repertório de Dori, as belas “Na Ribeira deste Rio”
(poema de Fernando Pessoa) e “Velho Piano” (em parceria com Paulo César
Pinheiro).
Por suar vez, Dori valeu-se de seu envolvente violão e voz
grave para recriar com categoria “Bloco do Eu Sozinho” (Marcos Valle/Ruy Guerra)
e “Passa por Mim” (Marcos/Paulo Sérgio Valle); de Marcos Valle; e as composições
de Edu Lobo “Na Ilha de Lia no Barco da Rosa” (Edu Lobo/Chico Buarque) e “Dos
Navegantes” (Edu Lobo/Paulo César Pinheiro).
Marcos Valle, cantando e
tocando piano, fecha o ciclo mandando bem nas canções “Saveiros” (Dori
Caymmi/Nelson Motta) e “Alegre Menina” (Dori Caymmi/Jorge Amado), de Dori
Caymmi; e “Canto Triste” (Edu Lobo/Vinicius de Moraes) e “Corrida de Jangada”
(Edu Lobo/Capinan), de Edu Lobo.
O clima do disco é centrado nas
melodias, com um acento doce e envolvente. A alternância dos vocalistas dá uma
diversidade bem acentuada à audição do álbum, enquanto os arranjos investem em
um clima intimista sem cair em algo introspectivo demais. Se fica a curiosidade
de saber como teria sido se eles participassem das faixas uns dos outros, o
resultado final da concepção de “Edu Dori & Marcos” nos proporcionou um CD
belíssimo, consistente e artisticamente impecável.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |