01/06/2018
Ano 23

Semana 1.079







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




De Santo Amaro a Xerém”: a turnê de

Maria Bethânia e Zeca Pagodinho



Cândido Luiz de Lima Fernandes

Sou fã de carteirinha de Maria Bethânia. Acompanho sua carreira desde que ficou conhecida, em 1965, cantando “Carcará” no show “Opinião” e assisti a todos os seus shows, desde “Brasileiro: Profissão Esperança”, em que dividiu o palco com o ator Ítalo Rossi, em 1970. Bethânia é mais que uma cantora, é uma atriz que nos contagia com sua magia no palco, é uma diva. Casa poesia com canção de uma forma única na música popular brasileira, desde o antológico show “Rosa dos Ventos”, de 1971, em que interpretou lindas canções entremeadas por textos de Fernando Pessoa e Clarice Lispector.

Bethânia raramente divide o palco com outros artistas. Vi-a fazê-lo com Chico Buarque, em 1975, e no show “Doces Bárbaros”, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, em 1976. Em 2015 Bethânia foi a grande homenageada da 26ª edição do Prêmio da Música Brasileira, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Numa noite de gala, algumas das maiores vozes da MPB subiram ao palco para mostrarem, através de canções, sua admiração pela cantora, entre eles Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Alcione, Chico César, Lenine, Zélia Duncan, Mônica Salmaso e Nana Caymmi.

Em 2018, um encontro que parecia improvável aconteceu: Maria Bethânia, a baiana criada no samba-de-roda do Recôncavo sobe ao palco com Zeca Pagodinho, o carioca que carrega o pagode no nome. A filha de Santo Amaro da Purificação (BA) e o símbolo de Xerém (RJ).

A dupla estreou em Olinda, no dia 7 de abril, a turnê conjunta “De Santo Amaro a Xerém”, cujo título faz referência às origens da cantora baiana e do sambista carioca. A ideia do projeto surgiu a partir de um bem-sucedido encontro que os dois tiveram em 2016. Zeca convidou Bethânia para participar de seu CD/DVD, “O Quintal do Pagodinho”, no qual fizeram um festivo dueto de “Sonho Meu”, famoso samba de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho. Depois de Olinda, a dupla se apresentou em Salvador (dia 14 de abril), Rio de Janeiro (21 de abril), Belo Horizonte (6 de maio), o qual assisti, São Paulo (18 e 19 de maio) e Brasília (30 de maio).

A banda que os acompanha é formada por músicos que trabalham com Zeca e com Bethânia (cada um apresenta os seus), com direção dividida entre Paulão Sete Cordas (dele) e Jaime Alem (dela). A formação inclui, além dos dois diretores (violões), Rômulo Gomes (baixo), Paulo Dafilin (violão e viola), Marcelo Costa (bateria e percussão), Jaguara (percussão), Esguleba (percussão), Paulo Galeto (cavaquinho) e Vitor Mota (sax e flauta). O batuque é o núcleo, atravessando diferentes vertentes do samba, com a presença dos outros instrumentos — como a viola que remete às variações rurais do gênero e a flauta que evoca a tradição do choro.

Bethânia pediu ao irmão Caetano uma composição inédita para o show. “Amaro Xerém” foi composta especialmente para esse encontro e é classificada pelo crítico Mauro Ferreira como um "samba de roda à moda baiana, mas que dialoga com o samba do Brasil, em sintonia com os versos de Caetano". Outra canção que assume essa função no roteiro é a inédita "De Santo Amaro a Xerém", de Leandro Fregonesi.

Entre clássicos do samba e do pagode, músicas inéditas e homenagens às escolas de samba carioca Mangueira e Portela, a dupla canta no palco 40 canções, sendo 13 delas em dueto. No palco, o clima que se estabelece é de afeto e de celebração da amizade - as declarações de carinho mútuas vistas provam isso. Se o samba os une, a dupla tem consciência de que seus estilos no palco são praticamente antagônicos: Bethânia é toda planejamento, rigor, controle cênico e musical; Zeca é a encarnação do despojamento das rodas de subúrbio.

No primeiro bloco, em que cantam juntos, Maria Bethânia e Zeca Pagodinho interpretam, além de “Amaro Xerém”, “Sonho Meu” (de Dona Ivone Lara e Délcio de Carvalho), “Você não Entende Nada” (de Caetano Veloso) e “Cotidiano” (de Chico Buarque).

No segundo bloco, já sem a companhia de Bethânia, Zeca reafirma o samba como assunto central da noite com a mítica "A voz do morro" (de Zé Kéti); oferece "Verdade" (de Nelson Rufino e Carlinhos Santana) à Bethânia (a letra diz "descobri que te amo demais"...) e "Saudade louca" (de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Franco) a um dos seus compositores, Arlindo Cruz, e dá uma aula de interpretação em "Maneiras" (de Sílvio da Silva). Depois de saudar a Bahia com "Samba pras moças" (de Roque Ferreira e Grazielle) e seu sabor de Recôncavo, Zeca puxa "Ogum" (de Marquinhos PQD e Claudemir).

No terceiro bloco Bethânia volta ao palco e declama sobre a canção a Oração de São Jorge — levando para outros terrenos dramáticos o belo samba. É a vez de a Bethânia estar sozinha. E ela chega afirmando sua baianidade legítima com "Falsa baiana" (em base quase samba-reggae), de Geraldo Pereira. A densidade de "Marginália II", de Gilberto Gil, (o verso "Aqui é o fim do mundo", repetido várias vezes) desagua na declamação da belíssima "Estação derradeira", de Chico Buarque — o samba como a utopia possível de superação da violência. Também têm lugar o samba das grã-finas ("Pano legal", de Billy Branco) e o que remete aos salões da alta sociedade carioca ("Café soçaite", de Miguel Gustavo) — ambos, assim como "Marginália II", extraídos do repertório do clássico disco "Recital na Boite Barroco", da cantora. Em seguida, a urbanidade de "Ronda" (de Paulo Vanzolin), "Negue" (de Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos) e “Reconvexo” (de Caetano Veloso) contrastam e dialogam com o caráter interiorano de "Pertinho de Salvador” e “De Santo Amaro a Xerém”, de Leandro Fregonesi.

No quarto e no quinto blocos fazem homenagens às escolas de samba do coração de cada um. Portelense, Zeca Pagodinho interpreta no quarto bloco três sambas históricos da agremiação carioca: “Portela na Avenida” (de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro), “Lendas e Mistérios da Amazônia” (de Catoni, Jabolô e Valtenir) e “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, clássico de Paulinho da Viola.

No quinto bloco Bethânia homenageia a sua escola preferida, a Mangueira. Sozinha, ela interpreta no palco canções ligadas à história da escola carioca, como “Exaltação à Mangueira” (de Enéias Brites da Silva e Aloísio Augusto de Carvalho), “Chico Buarque de Mangueira” (de Nelson Dalla Rosa, Vilas Boas, Nelson Csipai e Carlinhos das Camisas) e “Atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu” (de David Corrêa, Paulinho Carvalho, Carlos Senna e Bira do Ponto). O destaque fica por conta de “A Surdo 1”, presente de Adriana Calcanhotto, que compôs o samba em 2016 depois de a Mangueira ser campeã celebrando a trajetória de Bethânia.

Um dos momentos mais bonitos do show se dá no sexto bloco, quando os dois se juntam novamente no palco. É aí que a intimidade entre eles aparece de forma mais evidente, num passeio por um repertório de clássicos da MPB: "Diz que fui por aí" (de Zé Kéti e Hortênsio Rocha), “Desde Que o Samba é Samba” (de Caetano Veloso), "Naquela mesa" (de Sérgio Bittencourt) e "Chão de estrelas" (de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa). Fecham o show com a música do início, “Amaro Xerém” (de Caetano Veloso).
No bis, os dois, abraçados, cantam "Deixa a vida me levar" (de Serginho Meriti e Eri do Cais), terminam com a empolgante "O que é o que é" (de Gonzaguinha) e saem do palco de braços dados.

 

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com



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Direção e Editoria
Irene Serra