De Santo Amaro a Xerém”: a turnê de
Maria Bethânia e Zeca Pagodinho

Cândido Luiz de Lima Fernandes
Sou fã de carteirinha de Maria
Bethânia. Acompanho sua carreira desde que ficou conhecida, em 1965, cantando
“Carcará” no show “Opinião” e assisti a todos os seus shows, desde “Brasileiro:
Profissão Esperança”, em que dividiu o palco com o ator Ítalo Rossi, em 1970.
Bethânia é mais que uma cantora, é uma atriz que nos contagia com sua magia no
palco, é uma diva. Casa poesia com canção de uma forma única na música popular
brasileira, desde o antológico show “Rosa dos Ventos”, de 1971, em que
interpretou lindas canções entremeadas por textos de Fernando Pessoa e Clarice
Lispector.
Bethânia raramente divide o palco com outros artistas. Vi-a
fazê-lo com Chico Buarque, em 1975, e no show “Doces Bárbaros”, com Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, em 1976. Em 2015 Bethânia foi a grande
homenageada da 26ª edição do Prêmio da Música Brasileira, no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro. Numa noite de gala, algumas das maiores vozes da MPB subiram ao
palco para mostrarem, através de canções, sua admiração pela cantora, entre eles
Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Alcione, Chico César,
Lenine, Zélia Duncan, Mônica Salmaso e Nana Caymmi.
Em 2018, um encontro
que parecia improvável aconteceu: Maria Bethânia, a baiana criada no
samba-de-roda do Recôncavo sobe ao palco com Zeca Pagodinho, o carioca que
carrega o pagode no nome. A filha de Santo Amaro da Purificação (BA) e o símbolo
de Xerém (RJ).
A dupla estreou em Olinda, no dia 7 de abril, a turnê
conjunta “De Santo Amaro a Xerém”, cujo título faz referência às origens da
cantora baiana e do sambista carioca. A ideia do projeto surgiu a partir de um
bem-sucedido encontro que os dois tiveram em 2016. Zeca convidou Bethânia para
participar de seu CD/DVD, “O Quintal do Pagodinho”, no qual fizeram um festivo
dueto de “Sonho Meu”, famoso samba de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho. Depois
de Olinda, a dupla se apresentou em Salvador (dia 14 de abril), Rio de Janeiro
(21 de abril), Belo Horizonte (6 de maio), o qual assisti, São Paulo (18 e 19 de
maio) e Brasília (30 de maio).
A banda que os acompanha é formada por
músicos que trabalham com Zeca e com Bethânia (cada um apresenta os seus), com
direção dividida entre Paulão Sete Cordas (dele) e Jaime Alem (dela). A formação
inclui, além dos dois diretores (violões), Rômulo Gomes (baixo), Paulo Dafilin
(violão e viola), Marcelo Costa (bateria e percussão), Jaguara (percussão),
Esguleba (percussão), Paulo Galeto (cavaquinho) e Vitor Mota (sax e flauta). O
batuque é o núcleo, atravessando diferentes vertentes do samba, com a presença
dos outros instrumentos — como a viola que remete às variações rurais do gênero
e a flauta que evoca a tradição do choro.
Bethânia pediu ao irmão Caetano
uma composição inédita para o show. “Amaro Xerém” foi composta especialmente
para esse encontro e é classificada pelo crítico Mauro Ferreira como um "samba
de roda à moda baiana, mas que dialoga com o samba do Brasil, em sintonia com os
versos de Caetano". Outra canção que assume essa função no roteiro é a inédita
"De Santo Amaro a Xerém", de Leandro Fregonesi.
Entre clássicos do samba
e do pagode, músicas inéditas e homenagens às escolas de samba carioca Mangueira
e Portela, a dupla canta no palco 40 canções, sendo 13 delas em dueto. No palco,
o clima que se estabelece é de afeto e de celebração da amizade - as declarações
de carinho mútuas vistas provam isso. Se o samba os une, a dupla tem consciência
de que seus estilos no palco são praticamente antagônicos: Bethânia é toda
planejamento, rigor, controle cênico e musical; Zeca é a encarnação do
despojamento das rodas de subúrbio.
No primeiro bloco, em que cantam
juntos, Maria Bethânia e Zeca Pagodinho interpretam, além de “Amaro Xerém”,
“Sonho Meu” (de Dona Ivone Lara e Délcio de Carvalho), “Você não Entende Nada”
(de Caetano Veloso) e “Cotidiano” (de Chico Buarque).
No segundo bloco,
já sem a companhia de Bethânia, Zeca reafirma o samba como assunto central da
noite com a mítica "A voz do morro" (de Zé Kéti); oferece "Verdade" (de Nelson
Rufino e Carlinhos Santana) à Bethânia (a letra diz "descobri que te amo
demais"...) e "Saudade louca" (de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Franco) a um dos
seus compositores, Arlindo Cruz, e dá uma aula de interpretação em "Maneiras"
(de Sílvio da Silva). Depois de saudar a Bahia com "Samba pras moças" (de Roque
Ferreira e Grazielle) e seu sabor de Recôncavo, Zeca puxa "Ogum" (de Marquinhos
PQD e Claudemir).
No terceiro bloco Bethânia volta ao palco e declama
sobre a canção a Oração de São Jorge — levando para outros terrenos dramáticos o
belo samba. É a vez de a Bethânia estar sozinha. E ela chega afirmando sua
baianidade legítima com "Falsa baiana" (em base quase samba-reggae), de Geraldo
Pereira. A densidade de "Marginália II", de Gilberto Gil, (o verso "Aqui é o fim
do mundo", repetido várias vezes) desagua na declamação da belíssima "Estação
derradeira", de Chico Buarque — o samba como a utopia possível de superação da
violência. Também têm lugar o samba das grã-finas ("Pano legal", de Billy
Branco) e o que remete aos salões da alta sociedade carioca ("Café soçaite", de
Miguel Gustavo) — ambos, assim como "Marginália II", extraídos do repertório do
clássico disco "Recital na Boite Barroco", da cantora. Em seguida, a urbanidade
de "Ronda" (de Paulo Vanzolin), "Negue" (de Adelino Moreira e Enzo Almeida
Passos) e “Reconvexo” (de Caetano Veloso) contrastam e dialogam com o caráter
interiorano de "Pertinho de Salvador” e “De Santo Amaro a Xerém”, de Leandro
Fregonesi.
No quarto e no quinto blocos fazem homenagens às escolas de
samba do coração de cada um. Portelense, Zeca Pagodinho interpreta no quarto
bloco três sambas históricos da agremiação carioca: “Portela na Avenida” (de
Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro), “Lendas e Mistérios da Amazônia” (de
Catoni, Jabolô e Valtenir) e “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, clássico de
Paulinho da Viola.
No quinto bloco Bethânia homenageia a sua escola
preferida, a Mangueira. Sozinha, ela interpreta no palco canções ligadas à
história da escola carioca, como “Exaltação à Mangueira” (de Enéias Brites da
Silva e Aloísio Augusto de Carvalho), “Chico Buarque de Mangueira” (de Nelson
Dalla Rosa, Vilas Boas, Nelson Csipai e Carlinhos das Camisas) e “Atrás da
verde-e-rosa só não vai quem já morreu” (de David Corrêa, Paulinho Carvalho,
Carlos Senna e Bira do Ponto). O destaque fica por conta de “A Surdo 1”,
presente de Adriana Calcanhotto, que compôs o samba em 2016 depois de a
Mangueira ser campeã celebrando a trajetória de Bethânia.
Um dos momentos
mais bonitos do show se dá no sexto bloco, quando os dois se juntam novamente no
palco. É aí que a intimidade entre eles aparece de forma mais evidente, num
passeio por um repertório de clássicos da MPB: "Diz que fui por aí" (de Zé Kéti
e Hortênsio Rocha), “Desde Que o Samba é Samba” (de Caetano Veloso), "Naquela
mesa" (de Sérgio Bittencourt) e "Chão de estrelas" (de Sílvio Caldas e Orestes
Barbosa). Fecham o show com a música do início, “Amaro Xerém” (de Caetano
Veloso). No bis, os dois, abraçados, cantam "Deixa a vida me levar" (de
Serginho Meriti e Eri do Cais), terminam com a empolgante "O que é o que é" (de
Gonzaguinha) e saem do palco de braços dados.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |