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É dando que se recebe

Era uma tarde de reunião. Senhoras fazendo crochê para uma obra social,
reuniam-se uma vez por semana. As conversas, naquele dia, eram reminiscentes:
cada uma se lembrava de algo de seu tempo de jovem, da mocidade, dos filhos
quando pequenos... a conversa corria alegre e leve no grupo. Boas estas reuniões
descompromissadas, mas com objetivo definido. Bom trocar ideias com gente da
mesma idade - umas mais, outras menos - mas um grupo homogêneo...
E foi
então que uma se lembrou de seu tempo de professorinha de cegos, num educandário
baiano. Recordou, com simplicidade, o esforço feito anos a fio até levar um
grupo de 6 cegos ao exame de admissão. Contou da confiança que eles depositavam
nela, da cordialidade entre eles, das alegres brincadeiras apesar de cegos, do
esforço para estudar, das leituras feitas... E eles se dispersaram, ela deixou
de ser professorinha, casou-se, mudou-se... e passados anos, ela - que
continuava tendo contato com alguns cegos já colocados na vida, trabalhando,
superando sua deficiência física - foi convidada por um casal de cegos para ir à
casa deles porque um de seus antigos alunos lá iria também.
- Vamos ver o
que acontece - disse o dono da casa - vamos apresentá-la com outro nome.
O rapaz cego, recém-chegado, cumprimentou a visita que lhe foi apresentada e, ao
simples "muito prazer" dito por ela, o rapaz parou e encarou no escuro dizendo:
- Engraçado! sua voz me lembra alguém, alguém que estimo... alguém que não
encontro há muitos anos!
Ela calou-se e os donos da casa desviaram o
assunto. Mas o rapaz visitante continuou calado, atento, interrogativo. À
primeira palavra da professora, ele interrompeu:
- Já sei! sua voz me
lembra a professorinha Arlena... meus 14 anos!...
E ela, ainda
disfarçando, apesar de comovida:
- Impressão sua!
O rapaz, cada
vez mais tenso explodiu:
- Ai! Não me faça isto! É a professorinha mesmo!
Sua voz... sua voz... nunca poderia esquecer pelo bem que me fez!
Ela não
aguentou e o abraçou a chorar:
- Sou eu, sim, meu filho! Como vai?!
E os quatro - passado o primeiro momento de emoção - conversaram muito num
reencontro feliz!
A senhora que contava o episódio estava com os olhos
marejados.
Todas nós seguíamos, interessadas, sua narrativa, mas nesta
altura o grupo entrou em cena, cada uma dando sua opinião sobre a recuperação
dos cegos, o valor da educação, o muito que ainda se tem a fazer, etc... e a
história da professorinha se dissolveu ali.
Entretanto, enquanto fazia
meu crochê, pensava na minha companheira ali defronte a mim, também fazendo o
seu casaquinho de bebê: hoje, uma senhora encanecida, foi aquela mocinha que
soube partilhar, dar, oferecer, ajudar e que agora, na sua terceira idade, tem o
que recordar, comovidamente, sempre num reviver! Ah! se a gente compreendesse
bem o altruísmo que nos enriquece sem limite de tempo nem espaço! Se a gente se
capacitasse que o que se semeia ao amanhecer, vem de volta ao entardecer!... Vi
ali à minha frente a jovem generosa, interessada em ajudar, dedicada a uma
tarefa difícil, espinhosa, sem pensar em recompensa!...
Mas a recompensa
vem de tantas maneiras, depois que o tempo passa! Como é bom a gente poder
chegar à terceira idade tendo doces reminiscências da vida que se escoou sem ser
em vão! A voz é sempre reconhecida por alguém, como aquele rapaz que soube
enxergar com os olhos da gratidão! Não esquecera a voz de sua professorinha
dedicada, apesar dos anos terem se passado, das circunstâncias os terem
separado...
Realmente, o que fica desta vida é exatamente o que se dá e o que se recebe com reconhecimento!
Fonte: H.M. (O.F.S. do Brasil, 1996/3)n
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Direção e Editoria
Irene Serra
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