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Lílian Maial

SEXTA-FEIRA TREZE
debaixo da escada um gato preto me alisou as
coxas e me chamou de bruxa
não tinha mandinga nem galho de arruda
o danado cheirava a benjoim sua boca, um gosto de alho
me revirou
do avesso quebrou espelhos e eu sabia que teria sete sete, sim,
múltiplos, um a um
coruja piou, sapo coaxou e o gato me deu um banho
sete ervas, sete léguas sete línguas
azar? o seu...

CANTO DE AMOR nº XV
Dizer teu nome é evocar
calafrios e galopes no peito! Ó, filho abençoado! Criatura nascida de
campos floridos, Onde pequenos esquilos e coelhos se escondem na folhagem!
O que me cerca de mimos e iguarias, O que me chama para o leito de relva e
almíscar, Para que a noite seja suave e perfumada, Como seus cabelos de
sândalo! Ó, amado! O que tem mais de apascentar os rebanhos dos meus anseios,
De agitar o mar do meu ventre! Aquele dos braços de ciprestes, pernas de
cedro do Líbano, Rosto formoso, qual macieira num bosque harmonioso num dia
de sol! Deita-me em tua sombra! Dá-me de provar teu fruto! Eu, tua
prometida dentre todas as filhas do amor! A das palavras aladas, a que
recebeu a visitação divina, A que vislumbrou a perdição e o Parnaso em teus
olhos! Vem, amado, e dorme em meu colo, que adormeço a teu lado, mesmo que
meu coração não repouse! E que nenhum som ouse perturbar-te! Nem o vento,
nem o simples cair das folhas dos galhos! Silêncio! Silêncio, que meu amor
dorme em paz!

POEMA DE OUTONO
Eu vi um verso vadio vagando na várzea. Um verso de mais de metro,
soltando rimas ao vento. Fazia frio e o poema era de outono. Tinha um pôr
do sol nas bordas das dúvidas, um ocaso trêmulo de expectativas. Às vezes,
uma gaivota interrogava o entardecer. Vinha um bando de folhas atapetar o
caminho da noite, rastro da lua, milagre de ouro em prata.
Eu vi um
poeta pisar na poça. Parir quartetos inquietos e tercetos insones. Era
tarde e a madrugada suava de nervosa. Vez por outra, um bêbado tropeçava numa
letra vagabunda, pé quebrado atrapalhando a poesia, e seguia o bardo sem
teto e sem mantra, fazendo que não via a mula sem cabeça.
Eu vi um sol
nascer branquinho, cheirando a pão com manteiga, chamando o verso vadio
para o dia. Ainda havia neblina nas palavras e o poeta sentou-se à mesa,
entre hifens e vírgulas, se empanturrando de café com sonho. Lá adiante,
na linha do horizonte, uma andorinha alinhavava uma chave de ouro.

SONETO PARA BRADAR AO AMOR
Não seja
o amor um canto para a guerra, Um banho em sangue à clara flor do riso!
Que seja a paz, a cor que o peito espera! Que seja a luz, a seda em que
deslizo!
Não seja o amor a voz que dilacera, A mão que bate, o corte
mais preciso! Que seja a calma a ungir nós dois - quem dera - Pudesse
abrir caminhos de improviso!
Que seja o amor, então beleza augusta,
Canto de ave em plena arribação, Como o teu beijo, afago tão perfeito!
Que seja o amor a flor da causa justa, Seja o calor que atreve ser
perdão, Ou só nós dois, o enlace em nosso leito!

MEMÓRIA LÍQUIDA
O conforto das águas vem da
memória uterina: aconchego e silêncio. Como o mar, calmaria e medo,
envolvente e assustador.
Tenho essa atração pela água. O sangue, a
saliva, o suor.
Sangrar traz esse poder das águas e das marés.
Nascimento e morte. Líquido amniótico e putrilagem. Nascemos na água e,
na morte, liquefação.
A água escorre pela testa, nos dias quentes, se
insinua pelo corpo, no banho e na chuva, encharca de prazer.
Lembrança atávica, as águas me banham como aos ancestrais: levam o que
perdi, trazem o que não pedi, redimem, remexem, refluem.
Sou água,
sangue e suor. Chovo pelos olhos, pelas bocas Invado, derrubo barreiras,
escoo. Sangro por natureza, germino, paro em carmim e suor, mulher
líquida.
Por vezes, acordo tempestades e veemências, deixo o vendaval
arrastar desgostos. Brinco na água, que me acaricia indolente. Evaporo
dores. Placento-me.

DE LUA
Ela não é frágil dama, Tanto quanto não sou tão forte.
Ambas
contempladas,
Ela posa cheia de si, A cada vinte e oito dias,
E
eu sangro.

POR UNA CABEZA
Teu cheiro é tango Teus passos, planos Rosa entre os dentes Segredos
rentes se sou perita "la cumparsita"
Caio e me arrasto Perante
os pés
Sou teu brinquedo Morra de medo Dessa parceira Tão
inequívoca Eu sou carnívora Tua rameira
Teu gosto é tango Teu
olho, afronta És meu maestro Sou violino Me ordena puta me entrega a
conta me esfrega a ponta dessa batuta
Falta-me o ar Por essas
patas Corcel nos peitos Égua a voar
não tomo jeito sou picareta
na tua boca eu sou canção e no salão pura perfídia jogo a orquídea
na contramão
e o menestrel nos devaneios boca nos seios sugando
o mel
bolinei o traseiro de Gardel!

MARIA
Não me chamo Maria, mas gerei o escolhido, pois que
todos os filhos são escolhidos, com o peso da salvação sobre seus ombros.
Não me chamo Maria, mas senti a impotência da mãe, que vê seu filho
sangrar, sem conseguir estancar.
Não me chamo Maria, mas carrego a
cruz do amor indizível, a dor do peito pleno de maternidade e morte, do
jogo de gozo e lágrimas do caminho.
Não me chamo Maria, mas sei da
crucificação em via pública, da lança perfurando o futuro, do manto do
desespero a cobrir as chagas.
Não me chamo Maria, mas vejo a última
expiração do meu filho, de todos os filhos, dos escolhidos e esquecidos,
dos que nasceram puros e amaldiçoados, marcados pelo o fio da lâmina.
Não me chamo Maria, mas sou maria. Sou todas as marias que velam seus
frutos.
As que ficaram.

ADEJOS
Assim como as aves migram nas estações, O sono vem precoce na noite.
De nada adianta a prece das árvores, Ou a pressa dos rios, Ele traz seu
véu de penumbra, Uma tênue cortina de silêncios E cobre toda memória das
coisas.
É tempo de repousar senões, Talvez adormecer as dores, Sob
essa névoa de opacidade.
Não há olhos na escuridão.
Ah! Uma
pequenina estrela que fosse! A suave ilusão de luz!
Mas tudo é fosco
nesse sono indesejado.
A curva no contorno do minuto, Aquele segundo
sinuoso que nada significa, E, de pronto, chega o manto frio, O acalento
do desnecessário, A imobilidade do que não tem fim.

MAQUIAGEM
Olho roxo. Sombra cabisbaixa nas
pálpebras. O amor dissolvido em unguentos nas órbitas, azulando,
esverdeando, amarelando... Mas as entranhas sangram rubras e o vermelho
tinge a promessa. E dói. Mais que o olho, mais que o soco. Dói
tanto, que a voz some. Dói, que cala.
Nunca mais os olhos verdes de
horizontes. Nunca mais a criança acenaria nas pequenas coisas. O murro na
alegria, na entrega, nverdade.
O olho roxo se perpetuaria.
Repete-se na perplexidade. O amor mudou de cor. A cor mudou de dor. A
dor emudeceu. Amor doente. A morte.

HAIKAI DE INVERNO
seco chão dourado amendoeira sem folhas despede-se o
inverno


Lílian Maial é carioca, médica,
escritora e poeta. Publicou o livro de poemas “Enfim, renasci!”, em 2000, e
"Duetto", em 2019, numa homenagem póstuma ao poeta e amigo Nathan de Castro,
parceiro de versos. Participou de todas as “Antologias Poetrix”, desde 2002, e
organizou a Antologia Poetrix 8 - Infinito. Ocupa a cadeira nº 12 da Academia
Internacional Poetrix. Filiada à REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras),
participou de quatro antologias, lançadas em São Paulo, nas bienais do livro.
Filiada à APPERJ (Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de
Janeiro), publicou na Revista Plural. Publicou 3 livros infantis: “O Menino dos
Olhos de Lua”, “O Bico da Laura” e “A Dor da Morte”. Tem lançamento do livro de
bolsa “Realidade Fantástica” , de minicontos, no Vi Encontro Nacional do
coletivo feminista Mulherio das Letras, em outubro/2023. Tem lançamento do livro
de poemas “Canto dos Cantos de Amor”, também no mesmo evento, em outubro/2023.
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- No Instagram: @lilianmaial
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Direção e Editoria
Irene Serra
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