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A noite mais vasta Chico Lopes entrevistado por Irene Serra sobre seu mais recente livro
Em maio deste ano (2024), passeando pela
internet, descobri Chico Lopes. Sua linguagem poética, colorida, observando
mínimos detalhes, encantou-me à primeira vista. Trocamos mensagens e, em
pouco, vim a conhecê-lo amante da natureza, poeta, cronista, contista,
pintor... e muito mais.
Ao receber convite para o lançamento de A
noite mais vasta, a curiosidade em saber um pouco mais deste livro que reúne contos
de dois outros de seus livros, Hóspedes do vento e A passagem invisível,
surgiu.
E eu não podia deixar de lhe perguntar:
Irene Serra: O que inspirou a
escolha do título? Ele reflete algum tema predominante nos contos escolhidos?
Chico Lopes: Os contos, em maior parte, têm uma ambiência noturna, e o título
brotou de um deles, “Certo pássaro noturno”, em que narro o itinerário de um
homem que passa a sua vida intrigado pelo canto de um pássaro desconhecido,
que ele ouve em várias fases e mudanças da existência. É como uma jornada
poética com um fim imprevisível.
IS: Qual foi o maior desafio ao
escolher os contos desta coletânea?
CL: Não representaram
exatamente um desafio, porque é uma antologia, e eles provinham de dois livros
meus de contos já publicados: “Hóspedes do vento”, de 2010, e “A passagem
invisível”, de 2019, o primeiro pela Nankin e o segundo pela Laranja Original,
de São Paulo. Representaram uma escolha de contos não apenas minha, mas
baseada na preferência de leitores desses dois livros no passado.
IS: Eles seguem um tema central ou são registros de diferentes momentos?
CL: Não tenho bem um tema central, mas tenho uma preocupação
fundamental com personagens que, marginalizados, olham o mundo de longe, em
geral relegados à solidão, e se debatem com uma sociedade que os discrimina ou
não os compreende. A preocupação fundamental de minha ficção, seja em contos
ou em romances, é esse descompasso entre Humano e Mundo.
IS: Há algum
conto que seja particularmente especial para você? Se sim, qual o motivo?
CL: Creio que meu conto “especial”, nesse sentido, é “Episódio de
caça”, porque impressionou muita gente devido ao peso de seu mistério
ontológico: há um narrador perturbado por uma criatura meio humana meio
sobrenatural que o obceca e que ele não consegue desvendar. Ele, então, vive
em caça do sentido que essa criatura poderia ter, até que finalmente tem um
encontro face a face com ela. É um conto que me nasceu num jorro que quase não
sofreu correções. E acho que é particularmente forte.
IS: Como é o seu
processo criativo? Você começa com uma ideia clara ou deixa a inspiração
fluir?
CL: Tenho ideias vagas que vão ficando definidas à
medida que escrevo. Mas quase sempre rumo para um desfecho que já está
claro para mim. Mas o caminho que me leva a esse desfecho é um mistério que me
instiga e sobre o qual meu domínio é muito relativo. Estamos no comando, mas
algo nos escapa, e se esse algo não nos escapasse, não haveria encanto em
escrever.
IS: Algum acontecimento especial o impulsionou a escrever algo
que está no livro?
CL: Não, há pouca coisa derivada de minha
vida real, e acho que em geral procuramos escrever, criar ficção, exatamente
porque nossa vida real não é muito interessante ou não nos parece assim,
embora o Inconsciente possa fervilhar. A arte, a meu ver, nasce não como
imitação, mas como transfiguração, da realidade: pedaços de nossa vida real
podem estar ali, e é claro que estarão, só que sujeitos a uma transformação
que incluirá personagens e situações de imaginação livre. Entra também a
memória que, somada à imaginação, resulta num mundo autônomo. É curioso, esse
processo, e não é rigidamente um espelho, mas uma fantasia que nos leva a
verdades mais altas, dentro de um alcance mais coletivo.
IS: Como a
sua vivência no sítio e a relação com a natureza influenciam sua escrita?
Estar na varanda ouvindo o farfalhar das árvores e apreciando as flores
modificam sua emoção ao escrever?
CL: Tenho grande paixão pela
Natureza e sempre fui um ornitólogo amador, um apaixonado por pássaros. Entra
aí o meu lado pintor, minha relação sensitiva com árvores, com o vento, com os
fenômenos naturais. A chuva, por exemplo, sempre me inspira e comove, e nem
digo nada da Noite, da Grande Noite que habita meus livros. Para mim, sem essa
presença da Natureza, a poesia que pode existir em minha prosa nem existiria.
IS: Você gosta da boa música. O que ela acrescenta no seu universo de
escritor?
CL: Uma das frustrações de minha vida foi não ter me
tornado cantor, porque sonhava com isso. Cantava o tempo todo e aprendia todas
as letras, isso desde os anos 1950, desde a Bossa Nova. Fui um daqueles
meninos que não largavam o rádio, sempre ouvi muita música, e um pouco de tudo
– de Debussy a Caetano, dos Beatles a Stravinsky. Sem música creio que o mundo
não teria a menor graça. Por vezes uma canção me inspira um conto ou a tenho
como trilha-sonora interior no momento em que estou escrevendo.
IS: Qual
o papel do conto no mundo literário atual? Você acha que ele tem mais força
que os demais gêneros literários para captar leitores?
CL:
Acho que os gêneros literários todos sofrem com o escasso número de leitores
no Brasil e a aversão realmente melancólica que as massas têm ao conhecimento
através da Literatura. Conto, romance, poesia, ensaio, crônicas, eu já
publiquei livros em todos os gêneros, e para mim o juízo estético não precisa
se prender a algum gênero. O conto tem seus encantos porque pode ser um mundo
imenso num formato curto, mas o romance é também uma dilatação de narrativa
que propicia aventuras estéticas ousadas – alguém já comparou o conto a um
riacho e o romance a um ribeirão largo e caudaloso. Eu leio de tudo, e só
tenho um critério: o talento e o bem escrever tudo justificam.
IS:
Há autores que o inspiraram na criação dos contos deste livro?
CL: Como leio muito, é provável que tenha influências de todo tipo, num
hibridismo cujo ponto de partida é difícil de eu lembrar. Mas, em resumo, eu
diria que para mim a melhor Literatura é aquela em que se consegue fundir
realismo e poesia, mistério e objetividade. Sou um leitor constante de Proust
e acho Guimarães Rosa o máximo em literatura brasileira. O Cinema, o ritmo
cinematográfico, me inspira muito, e isso vai de Hitchcock e Fellini a David
Lynch e outros cineastas.
IS: Como você vê a recepção da literatura
brasileira fora dos grandes centros urbanos?
CL: Difícil, mas
não há nos centros urbanos um interesse pronunciado tampouco. Creio que livros
e leitores são parte de uma bolha cultural que a população em geral sequer
percebe. Não se pode tomar as vitrines de livrarias etc por modelos, porque
algumas não são nada além de comércio, indústria cultural massificadora,
povoadas por livros fúteis, romances estrangeiros ruins, livrecos
caça-níqueis, auto-ajuda ou livros meramente oportunistas a reboque de séries
e televisões. A verdadeira Literatura está às vezes muito longe delas e a
posição do escritor como criador é quase sempre solitária, quase antissocial.
Eu sempre vivi no interior, entre tribos de interessados compreensivelmente
limitadas.
IS: De que forma a sua trajetória como pintor, poeta
e crítico cultural enriquece sua visão como cronista e contista?
CL: Meu amor por essas artes, Cinema e Pintura, até precedeu meu interesse
pela Literatura. É claro que amá-las pesa significativamente em tudo que
escrevo.
IS: O que mudou no Chico Lopes escritor desde o início da
carreira até hoje?
CL: Eu estreei tarde (pelos padrões
atuais), pois tinha 48 anos ao publicar meu primeiro livro de contos, “Nó de
sombras”, pelo Instituto Moreira Salles de SP/Poços. Isso foi em 2000, e até
agora, 2024, publiquei dezenove livros em gêneros variados. Ao longo desses
anos, fui conhecendo bem o mundo literário e outros escritores, famosos ou
não, e compreendendo bem os seus (nossos) dilemas. Adquire-se, nesse processo,
uma lucidez que pode ser até paralisadora, mas não se deve nunca esquecer que
escrever é uma paixão e que, se financeiramente não é nada compensadora, é em
si mesma uma grande justificativa, tornando a vida muito mais intensa. O
melhor mesmo é cultivar um desprendimento lúcido, reduzir as ambições a
sucesso e riqueza. E, quanto a publicações, “uma vida literária não é
necessariamente uma vida de livros publicados”, como dizia Jorge Luis Borges
ao referir-se à (grande) poeta Emily Dickinson.
IS: A figura de um
homenzinho parece um elemento recorrente na sua obra de pintor. Inclusive,
está presente na capa deste livro. Ele tem um papel simbólico, um significado
especial, ou é uma forma de diálogo entre você e o espectador?
CL: Nas minhas telas surreais, geralmente esse homenzinho dá a dimensão do
que é o ser humano neste mundo: minúsculo diante dos mistérios e hostilidades
todos que nos cercam. Ele observa, e o que sente pouco sabemos, mas ele está
ali, como um transeunte entre escombros e maravilhas. Se está isolado, sempre
terá um pássaro como guardião e guia em primeiro plano.
IS: Você
gostaria de contar como se sente nesse momento em que vê mais uma obra
concluída e quais suas expectativas sobre ela?
CL: Tenho um
número limitado de leitores, creio, porque meus livros têm também tiragens
pequenas, mas são leitores fiéis, que seguem minha crítica literária, minha
crítica de cinema, apreciam o que escrevo, observam o que pinto e costumam ser
atenciosos e solidários comigo. Essa cumplicidade dos leitores é fundamental.
Para mim, a satisfação deles está acima de tudo e, se a obtenho, dou-me por
feliz. Os leitores são tudo.
IS: Agradecendo sua atenção e
disponibilidade, desejo-lhe muito sucesso e que outros livros venham para
nosso deleite.
Comentários sobre o texto podem ser enviados
a Chico Lopes.
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Revista Rio Total Direção e Editoria
Irene Serra
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