01/12/2024
Ano 27
Semana 1.393


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A noite mais vasta

Chico Lopes entrevistado por Irene Serra sobre seu mais recente livro

Em maio deste ano (2024), passeando pela internet, descobri Chico Lopes. Sua linguagem poética, colorida, observando mínimos detalhes, encantou-me à primeira vista. Trocamos mensagens e, em pouco, vim a conhecê-lo amante da natureza, poeta, cronista, contista, pintor... e muito mais.

Ao receber convite para o lançamento de A noite mais vasta, a curiosidade em saber um pouco mais deste livro que reúne contos de dois outros de seus livros, Hóspedes do vento e A passagem invisível, surgiu.

E eu não podia deixar de lhe perguntar:

Irene Serra: O que inspirou a escolha do título? Ele reflete algum tema predominante nos contos escolhidos?

Chico Lopes: Os contos, em maior parte, têm uma ambiência noturna, e o título brotou de um deles, “Certo pássaro noturno”, em que narro o itinerário de um homem que passa a sua vida intrigado pelo canto de um pássaro desconhecido, que ele ouve em várias fases e mudanças da existência. É como uma jornada poética com um fim imprevisível.

IS: Qual foi o maior desafio ao escolher os contos desta coletânea?

CL: Não representaram exatamente um desafio, porque é uma antologia, e eles provinham de dois livros meus de contos já publicados: “Hóspedes do vento”, de 2010, e “A passagem invisível”, de 2019, o primeiro pela Nankin e o segundo pela Laranja Original, de São Paulo. Representaram uma escolha de contos não apenas minha, mas baseada na preferência de leitores desses dois livros no passado.

IS: Eles seguem um tema central ou são registros de diferentes momentos?

CL: Não tenho bem um tema central, mas tenho uma preocupação fundamental com personagens que, marginalizados, olham o mundo de longe, em geral relegados à solidão, e se debatem com uma sociedade que os discrimina ou não os compreende. A preocupação fundamental de minha ficção, seja em contos ou em romances, é esse descompasso entre Humano e Mundo.

IS: Há algum conto que seja particularmente especial para você? Se sim, qual o motivo?

CL: Creio que meu conto “especial”, nesse sentido, é “Episódio de caça”, porque impressionou muita gente devido ao peso de seu mistério ontológico: há um narrador perturbado por uma criatura meio humana meio sobrenatural que o obceca e que ele não consegue desvendar. Ele, então, vive em caça do sentido que essa criatura poderia ter, até que finalmente tem um encontro face a face com ela. É um conto que me nasceu num jorro que quase não sofreu correções. E acho que é particularmente forte.

IS: Como é o seu processo criativo? Você começa com uma ideia clara ou deixa a inspiração fluir?

CL: Tenho ideias vagas que vão ficando definidas à medida que escrevo. Mas quase sempre rumo para um desfecho que já está claro para mim. Mas o caminho que me leva a esse desfecho é um mistério que me instiga e sobre o qual meu domínio é muito relativo. Estamos no comando, mas algo nos escapa, e se esse algo não nos escapasse, não haveria encanto em escrever.

IS: Algum acontecimento especial o impulsionou a escrever algo que está no livro?

CL: Não, há pouca coisa derivada de minha vida real, e acho que em geral procuramos escrever, criar ficção, exatamente porque nossa vida real não é muito interessante ou não nos parece assim, embora o Inconsciente possa fervilhar. A arte, a meu ver, nasce não como imitação, mas como transfiguração, da realidade: pedaços de nossa vida real podem estar ali, e é claro que estarão, só que sujeitos a uma transformação que incluirá personagens e situações de imaginação livre. Entra também a memória que, somada à imaginação, resulta num mundo autônomo. É curioso, esse processo, e não é rigidamente um espelho, mas uma fantasia que nos leva a verdades mais altas, dentro de um alcance mais coletivo.

IS: Como a sua vivência no sítio e a relação com a natureza influenciam sua escrita? Estar na varanda ouvindo o farfalhar das árvores e apreciando as flores modificam sua emoção ao escrever?

CL: Tenho grande paixão pela Natureza e sempre fui um ornitólogo amador, um apaixonado por pássaros. Entra aí o meu lado pintor, minha relação sensitiva com árvores, com o vento, com os fenômenos naturais. A chuva, por exemplo, sempre me inspira e comove, e nem digo nada da Noite, da Grande Noite que habita meus livros. Para mim, sem essa presença da Natureza, a poesia que pode existir em minha prosa nem existiria.

IS: Você gosta da boa música. O que ela acrescenta no seu universo de escritor?

CL: Uma das frustrações de minha vida foi não ter me tornado cantor, porque sonhava com isso. Cantava o tempo todo e aprendia todas as letras, isso desde os anos 1950, desde a Bossa Nova. Fui um daqueles meninos que não largavam o rádio, sempre ouvi muita música, e um pouco de tudo – de Debussy a Caetano, dos Beatles a Stravinsky. Sem música creio que o mundo não teria a menor graça. Por vezes uma canção me inspira um conto ou a tenho como trilha-sonora interior no momento em que estou escrevendo.

IS: Qual o papel do conto no mundo literário atual? Você acha que ele tem mais força que os demais gêneros literários para captar leitores?

CL: Acho que os gêneros literários todos sofrem com o escasso número de leitores no Brasil e a aversão realmente melancólica que as massas têm ao conhecimento através da Literatura. Conto, romance, poesia, ensaio, crônicas, eu já publiquei livros em todos os gêneros, e para mim o juízo estético não precisa se prender a algum gênero. O conto tem seus encantos porque pode ser um mundo imenso num formato curto, mas o romance é também uma dilatação de narrativa que propicia aventuras estéticas ousadas – alguém já comparou o conto a um riacho e o romance a um ribeirão largo e caudaloso. Eu leio de tudo, e só tenho um critério: o talento e o bem escrever tudo justificam.

IS: Há autores que o inspiraram na criação dos contos deste livro?

CL: Como leio muito, é provável que tenha influências de todo tipo, num hibridismo cujo ponto de partida é difícil de eu lembrar. Mas, em resumo, eu diria que para mim a melhor Literatura é aquela em que se consegue fundir realismo e poesia, mistério e objetividade. Sou um leitor constante de Proust e acho Guimarães Rosa o máximo em literatura brasileira. O Cinema, o ritmo cinematográfico, me inspira muito, e isso vai de Hitchcock e Fellini a David Lynch e outros cineastas.

IS: Como você vê a recepção da literatura brasileira fora dos grandes centros urbanos?

CL: Difícil, mas não há nos centros urbanos um interesse pronunciado tampouco. Creio que livros e leitores são parte de uma bolha cultural que a população em geral sequer percebe. Não se pode tomar as vitrines de livrarias etc por modelos, porque algumas não são nada além de comércio, indústria cultural massificadora, povoadas por livros fúteis, romances estrangeiros ruins, livrecos caça-níqueis, auto-ajuda ou livros meramente oportunistas a reboque de séries e televisões. A verdadeira Literatura está às vezes muito longe delas e a posição do escritor como criador é quase sempre solitária, quase antissocial. Eu sempre vivi no interior, entre tribos de interessados compreensivelmente limitadas.

IS: De que forma a sua trajetória como pintor, poeta e crítico cultural enriquece sua visão como cronista e contista?

CL: Meu amor por essas artes, Cinema e Pintura, até precedeu meu interesse pela Literatura. É claro que amá-las pesa significativamente em tudo que escrevo.

IS: O que mudou no Chico Lopes escritor desde o início da carreira até hoje?

CL: Eu estreei tarde (pelos padrões atuais), pois tinha 48 anos ao publicar meu primeiro livro de contos, “Nó de sombras”, pelo Instituto Moreira Salles de SP/Poços. Isso foi em 2000, e até agora, 2024, publiquei dezenove livros em gêneros variados. Ao longo desses anos, fui conhecendo bem o mundo literário e outros escritores, famosos ou não, e compreendendo bem os seus (nossos) dilemas. Adquire-se, nesse processo, uma lucidez que pode ser até paralisadora, mas não se deve nunca esquecer que escrever é uma paixão e que, se financeiramente não é nada compensadora, é em si mesma uma grande justificativa, tornando a vida muito mais intensa. O melhor mesmo é cultivar um desprendimento lúcido, reduzir as ambições a sucesso e riqueza. E, quanto a publicações, “uma vida literária não é necessariamente uma vida de livros publicados”, como dizia Jorge Luis Borges ao referir-se à (grande) poeta Emily Dickinson.

IS: A figura de um homenzinho parece um elemento recorrente na sua obra de pintor. Inclusive, está presente na capa deste livro. Ele tem um papel simbólico, um significado especial, ou é uma forma de diálogo entre você e o espectador?

CL: Nas minhas telas surreais, geralmente esse homenzinho dá a dimensão do que é o ser humano neste mundo: minúsculo diante dos mistérios e hostilidades todos que nos cercam. Ele observa, e o que sente pouco sabemos, mas ele está ali, como um transeunte entre escombros e maravilhas. Se está isolado, sempre terá um pássaro como guardião e guia em primeiro plano.

IS: Você gostaria de contar como se sente nesse momento em que vê mais uma obra concluída e quais suas expectativas sobre ela?

CL: Tenho um número limitado de leitores, creio, porque meus livros têm também tiragens pequenas, mas são leitores fiéis, que seguem minha crítica literária, minha crítica de cinema, apreciam o que escrevo, observam o que pinto e costumam ser atenciosos e solidários comigo. Essa cumplicidade dos leitores é fundamental. Para mim, a satisfação deles está acima de tudo e, se a obtenho, dou-me por feliz. Os leitores são tudo.

IS: Agradecendo sua atenção e disponibilidade, desejo-lhe muito sucesso e que outros livros venham para nosso deleite.

 

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Revista Rio Total
Direção e Editoria
Irene Serra