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O Yom Kipur e a Guerra dos 365 dias
Sheila Sacks
 Naquele ano de 1967, três meses antes das
celebrações do Rosh Hashaná e Yom Kipur, os judeus de todo o mundo foram
brindados com uma série de imagens que varou o planeta como um luminoso cometa,
provocando uma explosão de emoções poucas vezes sentida com tamanha
intensidade.
A impressionante foto do rabino Slomo Goren, capitão das
forças armadas israelenses, abraçado aos rolos da Torá e ecoando o som do shofar
aos quatro cantos do planeta, anunciando a libertação de Jerusalém - a partir
daquele instante uma cidade aberta a todos os credos e raças - , assumia ares de
profecia, tornando-se um divisor de águas entre o velho e os novos tempos que
assomavam porta adentro como emissários há muito aguardados.

Igualmente
a visão de soldados israelenses rezando ao pé do muro sagrado, no coração de
Jerusalém, mexeu com os brios de uma geração de jovens, talvez em dúvida quanto
aos caminhos a seguir. Revelou-se também como uma preciosa dádiva para aqueles
veteranos que vinham lutando, por décadas, pelo direito de pisar o solo milenar
da cidade santa. E converteu-se, certamente, em um sinal celestial incontestável
para milhões de judeus que sobreviveram à perseguição e à matança da era
nazista, símbolo raro de que, afinal, o sofrimento, os reveses e as incontáveis
almas sacrificadas na pira da intolerância estavam sendo redimidos naquele
momento histórico. DAVID E GOLIAS
Passados quarenta e um anos,
nunca é demais rememorar a Guerra dos Seis Dias, que permanece como uma
lembrança forte e inspiradora, merecedora de inúmeras resenhas, considerações e
análises apuradas. Se por um lado, a luta e a perseverança de um povo acossado
que não se acovardou diante das forças majoritárias que o ameaçavam, repetindo o
exemplo bíblico de David e Golias, revigoram nossos sentimentos de auto-estima,
por outro provocam uma saudade doída de um instante único de fé e coragem,
eternizado em tantos corações.

Isso porque à profética mensagem de
consolidação da nação judaica registrada ao término dos seis dias de guerra,
foram incorporados, na Diáspora, novos discursos, hábitos, conceitos,
significados e interpretações que, ao longo do tempo, criaram uma esquisita
miscelânea, difícil de ser contabilizada como ganho à identidade cultural de um
povo. A chamada “flexibilização” cultural e religiosa que avança em passos
largos sobre as comunidades judaicas é hoje o nosso novo Golias a ser
enfrentado.
O massacre diário de informações volúveis, a difusão
incontrolável de modismos, a ditadura do consumismo e a imposição de uma
indústria tecnológica de circulação de mensagens e desejos artificiais são
tentáculos de uma rede malévola que preenche e ocupa as poucas e qualitativas
brechas de tempo que dispõem o ser humano ativo, contribuindo para minar os
alicerces básicos das minorias e diluir, paulatinamente, as suas identidades
originais. Alvos sensíveis desta guerra subterrânea e subliminar que se estende
por todos os 365 dias do ano, os judeus da Diáspora labutam em meio a uma
batalha crucial que implica em atenção e resistência redobradas, no sentido de
preservar a sua imensa e preciosa herança milenar.
CANTO DAS SEREIAS
Incansáveis, as comunidades judaicas se empenham para não serem encobertas pelas
ondas desse mar de mesmice que as espertas ditaduras de costumes têm imposto às
sociedades modernas. Enquanto para as gerações mais antigas, remanescentes da
imigração e cerceadas pelas grades culturais do passado, é mais fácil preservar
os rituais, os símbolos e o calendário de eventos, para os seus filhos e netos a
situação se mostra mais desconfortável e, muitos desistem, às vezes
inconscientemente, de remar contra a maré de um mundo fermentado por idéias
monolíticas e preconceituosas que roem e esgarçam as nem sempre sólidas
convicções religiosas da juventude,
Hoje, grande parte dos líderes
comunitários, de poderosos empresários, de ativistas dedicados e de senhoras
voluntárias que investem seu tempo e seu entusiasmo em prol das causas judaicas,
convive com um paradoxo pessoal em função do alto grau de assimilação presente
no seio de suas próprias famílias. É cada vez mais difícil afinar o discurso
público da preservação dos valores judaicos com a realidade que enfrentam no
âmbito familiar. Respirar em casa um ambiente 100% judaico, estudar em escola
judaica ou participar de movimentos sionistas não são mais os indutores capazes
de conduzir os jovens a uma via de fidelização às suas raízes ancestrais. O
“canto das sereias” das mensagens cativantes e sedutoras que propagam as
vantagens de uma vivência integrada e harmoniosa com a comunidade maior, a qual
cada judeu da Diáspora está ligado pelos fortes laços da nacionalidade, tem sido
interpretado de uma forma literal, ao pé da letra, seja por conveniência,
preguiça ou uma decisão particular. Daí que a tênue linha que demarca o que é
uma convivência integrada e o que se constitui em uma entrega adesista precisa
ser acentuada antes que a mesma seja irremediavelmente varrida do mapa.
PRAZER IMEDIATO
Outro fator condicionante favorável ao ambiente de similitude
observado nos jovens – tanto no que se refere ao modismo de bens de consumo, ao
comportamento social e as expectativas de vida – é a tal busca da felicidade,
muitas vezes mal compreendida ou confundida com o prazer imediato. Nas
décadas de 1980 e 90, a conversão religiosa de um dos pares do casal era a
rotina convencional necessária para a aceitação pela família de um casamento
precedido, na maioria das vezes, de terríveis dúvidas e de um mal-estar
generalizado de ambas as partes. Diante da argumentação emocional de um filho
sobre a importância do amor e da felicidade a dois, os pais sucumbiam, mesmo a
contragosto, sofrendo calados ou reclamando até o final de suas vidas.
Muitos procuravam ficar de bem com a sua consciência, matriculando os netos em
escolas judaicas na esperança de que o processo inicial de assimilação
revertesse milagrosamente. Hoje a situação se enveredou por outra vertente mais
perigosa. Agora são os pais que justificam as escolhas dos filhos fora do
judaísmo, bradando que a felicidade da garotada está em primeiro lugar. O
sentir-se feliz virou uma espécie de passaporte especial que garante imunidade
ao seu portador, oferecendo uma travessia aparentemente sem problemas ou
cobranças pelas fronteiras da assimilação.
ARTE X JUDAÍSMO
Também a arte,
em todas as suas variantes, transformou-se em uma das mais poderosas redes de
pescaria que arrasta os jovens para fora de seu habitat ancestral. Aqui no
Brasil, a grande maioria dos atores, atrizes, diretores e apresentadores de TV,
compositores, músicos, escritores, intelectuais, pintores e demais artistas de
sucesso, com ascendência judaica, já estão casados ou vivem com pessoas de outro
credo religioso. Seus descendentes diretos não mantêm o menor resquício de
religiosidade judaica, fato absorvido como um detalhe folclórico de sua árvore
genealógica.
Curiosamente, cabe a mídia judaica a iniciativa de lembrar o
(perdido) elo judaico desses cidadãos, festejados pelo sucesso de suas
empreitadas. Por sua vez, magnatas judeus que contribuem generosamente para a
sustentação de sinagogas e escolas ortodoxas amargam, na vida familiar,
deserções inexplicáveis de entes queridos, passageiros privilegiados da
sociedade transnacional dos ricos e milionários, onde as tentações e as
transgressões acabam se diluindo na benemerência que alivia os corações.
ASSUMINDO O YOM KIPUR
Apesar desse quadro inquietante, anualmente, nas
celebrações de Rosh Hashaná e Yom Kipur, as sinagogas brasileiras ainda ficam
lotadas de fiéis. Na Administração Pública, pelo menos no Estado do Rio de
Janeiro, existem leis municipais e estaduais que liberam o funcionário público
de trabalhar nestes dias. Uma das leis que abrange a cidade do Rio foi elaborada
pelo então vereador Ronaldo Gomlevsky e sancionada pelo prefeito à época,
Marcello Alencar (lei nº 1410 de 21 de junho de 1989). Já no âmbito estadual, a
lei foi aprovada em 19 de dezembro de 1997 (lei nº 2874). Entretanto, o que
se observa é que muitos judeus que trabalham no Serviço Público preferem não
expor esse lado, muitas vezes resguardado, de suas identidades, comparecendo
normalmente nas repartições. É fato comprovado que quando as festas recebem uma
ajudazinha do calendário e são celebradas no fim de semana, a ida às sinagogas é
maior. Foi o que aconteceu em 2007, mas não se repetirá neste ano de 2008
(5769), quando o Rosh Hashaná se inicia ao anoitecer do dia 29 de setembro (2ª
feira) e o Yom Kipur, do anoitecer do dia 8 a 9 de outubro (4ª e 5ª feiras).
Neste período de 25 horas, o mundo com seus absurdos e inconveniências ficará
para trás. Os judeus de todo o mundo, irmanados em suas orações, não darão
ouvidos aos reclamos do corpo acostumado ao prazer da alimentação diária.
Enlaçados pelo poderoso abraço espiritual de nossos profetas, estes autênticos
heróis de nossa história, estaremos travando uma guerra silenciosa com os nossos
sentidos mais primitivos, como a gula, a paixão, a dissimulação, a inveja, a
raiva e a ambição. Enfim, com todas as transgressões cometidas, conscientemente
ou não, ao longo do ano. TODOS OS DIAS DO ANO
Por certo a aspiração e a
vontade decisivas de domar esses inimigos do caminho da retidão, não serão
tarefas a serem cumpridas em único dia dedicado ao perdão. O trabalho mais
difícil e árduo irá se desenrolar ao longo dos 365 dias, no campo de batalha
onde acontecem os embates das idéias, das provocações e da geração das falsas
expectativas. Ou seja, na rotina diária de cada um.
Responder com coragem,
audácia e inteligência, através de atos coordenados, decisões acertadas e,
principalmente, de exemplos pessoais é talvez exigir demais de um grupo
minoritário, do qual espera-se, até nas piores situações, momentos de grandeza e
superação. Mas, o passado é a nossa verdade e nele aprendemos que as grandes
conquistas coletivas do povo judeu nasceram da fé inabalável de vontades
individuais que assumiram um papel decisivo na hora precisa. Que continue assim!
08.09.2008 Sheila Sacks é jornalista
Direção e Editoria
Irene Serra
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