Alegria e Reflexão Combinam?
Sucot e Shemini Atseret
Jane
Bichmacher de Glasman
SUCOT - Acampando!
A Festa das
Cabanas ou Tabernáculos, em hebraico Sucot, é parte do ciclo de
festividades que começa com Rosh haShaná.
Sucot, prescrita em
Levítico 23:33-44 e em Deuteronômio 16:13-15, distingue-se por dois
ritos especiais: a sucá, onde se deve, durante uma semana, morar, fazer
as refeições (bem, façamos um guisheft: no mínimo um kidush), para
lembrar as moradas dos israelitas acampando no deserto; e o lulav, um
feixe formado de uma palma de tamareira (lulav), 3 ramos de mirta
(hadás), 2 de salgueiro (aravá) e uma cidra (etrog). Durante as orações
matutinas agita-se este feixe, que lembra ser Sucot também a festa da
colheita - Hag Assif.
Deve-se começar a construir a Sucá
imediatamente após Iom Kipur, para com entusiasmo, começar o ano novo
com um ato positivo. (O que, ampliando o sentido, já é no mínimo uma boa
sugestão...)
Tempo de Reflexão (Religião e Cabatão)
A
festa de Sucot dura sete dias (fora de Israel, oito), dos quais os dois
primeiros são festas solenes (em brasileirês = feriados).
O
sétimo dia de Sucot, Hoshana Rabá, inclui no serviço sete voltas ao
redor da Tevá (altar), como se fazia na época do Templo em Jerusalém,
rememorando as sete voltas do povo de Israel em redor das muralhas de
Jericó; também poderíamos pensar nas sete bênçãos e voltas ao redor do
noivo, no casamento judaico (afinal estamos falando de alegria e
reflexão...) Sem dúvidas, o número 7 tem um profundo significado
místico, ou pelo menos simbólico, como do mais sério estudioso ao mais
convicto cabatão (cabalista+charlatão) sabe.
Por falar em
misticismo, este dia é considerado um dos mais sagrados do ano: para os
cabalistas (a sério), este é o dia no qual o selo final é colocado no
"Livro da Vida", determinando o destino para o próximo ano. Muitas
comunidades sefaraditas fazem um Tikun, ou longa noite de estudos, em
honra a este dia sagrado (sem dúvida, outra ótima sugestão para começar
o ano positivamente).
Outras leituras: unidade na biodiversidade
Por que esperar? Comecemos um repensar desde já...
Quando a
Torá diz: "Alegre-se... você, seu filho, sua filha, seus empregados, o
levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que estiverem dentro de seus
portões", enfatiza o conceito de unidade: pedindo que todo mundo se
alegre junto, ensina que a verdadeira alegria só é alcançada quando
estamos unidos e nela incluímos os que são menos afortunados, como
empregados, estrangeiro, órfão e viúva.
Por outro lado,
aprende-se que a unidade se forma a partir da diversidade... Afinal, a
piada do judeu náufrago que constrói duas sinagogas: uma é a que ele
frequenta; na outra, ele nem entra, já devia estar no papiro dentro da
mão de alguma múmia descoberta...
Um teste judaico de
personalidade
As quatro espécies de Sucot são comparadas, num
Midrash, simbolicamente, a quatro tipos de pessoas:
· Etrog - tem
sabor e aroma - simboliza os conhecedores (da Torá e das mitsvót) e
praticantes (de boas ações), ou seja, os que sabem e fazem, unem teoria
e prática;
· Lulav - tem sabor mas não tem aroma - simboliza os
que conhecem mas não praticam, isto é, quem sabe muito, mas na hora de
fazer...;
· Hadas - possui aroma mas não tem sabor - simboliza os
que praticam (boas ações) mas não conhecem (Torá nem mitsvót); boas
pessoas sem cultura ou conteúdo ;
· Aravá - não possui sabor nem
aroma - simboliza os que não conhecem nem praticam – o tipo: não sei,
nem quero saber...
Faça um teste, consigo mesmo (e seus amigos):
qual é a sua?
Por outro lado, fica reforçada a mensagem da
unidade: assim como as quatro espécies, tão diferentes, são sacudidas
juntas, representando a unidade na diversidade, deveríamos fazer o
mesmo... (na verdade, às vezes precisamos de umas boas sacudidelas para
nos lembrarmos disso... é lamentável que elas nos apareçam na História
como tragédias ou perigos eminentes, como, por exemplo, a situação atual
de Israel e outras, mais pessoais, em que as pessoas acabam se
esquecendo de suas diferenças e se unindo frente a um "inimigo
comum"...)
Sucá e Diáspora
A razão básica para a sucá
(explicitada no primeiro trecho bíblico citado) é a de reviver o mesmo
tipo de vivenda passageira em que moraram os judeus ao vagarem através
do deserto durante 40 anos. Quando deixamos nossas casas e habitamos
durante uma semana na cabana, recordamos também a história do povo
judeu.
A sucá simboliza também as perseguições, as diásporas que
foram impostas por outros povos através da história judaica. Não lhes
deram a possibilidade de habitar em sua casa. Foram coagidos a fugir de
um lugar para outro, de um país para outro, de diáspora a diáspora.
Você já tinha pensado nisto?
Sucot e os Sem-Teto
Sucot
é um exemplo de como o judaísmo pede mais que pensamentos e
verbalizações: requer ação.
Ao se deixar as casas e transferir a
vida para a sucá, tem-se a possibilidade de, sentindo na pele, entender
(pelo menos um pouco) o que sente quem vive assim, exposto aos elementos
naturais. E, sem dúvida, temos uma oportunidade para apreciar mais as
bênçãos de Deus, que nos permitiu ter uma casa, um teto. Não seria a
hora certa de se pensar nos que não têm? Lembremos que Sucot vem logo
após Iom Kipur: rezamos, pedimos perdão a Deus (ao próximo/distante, nem
pensar – temos que resolver o assunto com o(a) próprio(a)...), fazemos
tsedaká... Que, em hebraico, significa tanto caridade quanto justiça, ou
seja, é a chance que temos de restabelecer a justiça social (proposta
divina), diminuindo um pouco a injustiça social com a qual convivemos,
quase "anestesiados", em Pindorama, onde plantando tudo dá... Não
adianta só reclamar dos políticos, dizer que já pagamos impostos... cada
um poderia plantar sua sementinha de justiça: se não chega a ser um mar
de rosas, despolui um pouco o mar de lama!
Voltando ao tema da
alegria e da unidade, poderíamos talvez relacionar às gotas de vinho que
tiramos do cálice em Pessah, para lembrar que nossa alegria
(representada pelo vinho e pela refeição festiva) não pode ser completa,
já que muitos sofreram para que a usufruíssemos... No caso de Pessah, os
egípcios; no caso de Sucot, principalmente para nós, brasileiros, ao
verificarmos que os sem-teto não são referências metafóricas: são a
desolada paisagem humana da realidade... Nos dois casos, um elemento
comum: faraó, ministros, presidentes, enfim, políticos em geral,
historicamente tomam suas decisões e quem paga a conta, seja a Deus ou
ao FMI, é o povo...
ALEGRIA, ALEGRIA: SHEMINI ATSERET
Onde
é que entra?
Encerramos esta temporada festiva celebrando Shemini
Atseret e Sim’hat Torá. Em Israel, as duas se celebram juntas, num só
dia; na diáspora, em dois. Na Torá, Shemini Atseret é chamado de a festa
do oitavo dia (Números 29:35); no Talmud, é uma festividade a parte,
desconectada dos dias anteriores de Sucot (Sucá 48 a).
O preceito
(mitsvá) mais difícil do Judaísmo...
Três vezes a Torá, ao se
referir a Sucot, nos manda ficarmos alegres durante a festa. Isto
explica por que se chama Sucot de Z'man Sim’hateinu = tempo da nossa
alegria.
Ainda que Sucot e Shemini Atseret se festejem juntas,
existem diferenças. Enquanto que em Sucot há muitas mitsvot, a única
mitsvá de Shemini Atseret é a de regozijar-se, alegrar-se, ficar feliz!
Esta é, na minha opinião, o preceito mais difícil de todo o judaísmo.
A maioria das pessoas e correntes religiosas discutem desde o
motivo de certas mitsvót até como praticar (ou não), quem pode, quem
deve, como adaptar aos dias de hoje, etc. Mas aqui não se está
discutindo filosofia, teologia ou prática religiosa: temos um
sentimento, uma emoção a encarar e que envolve atitude interna!
Como cumprir esta mitsvá???
Universalismo e particularidade
Enquanto que em Sucot a celebração tem lugar fora de casa, isto é,
na Sucá, Shemini Atseret é festejada em casa, e, assim como em Sucot o
aspecto universal da festividade está determinado através da oferenda de
70 cordeiros recordando as nações do mundo, Shemini Atseret só concerne
a Israel (oferenda de um só cordeiro). A oferenda de 1 X 70, também nos
faz voltar ao tema da unidade na diversidade...
Ecologia
Durante cada um dos dias de Sucot recitam-se preces especiais para que o
novo ano traga prosperidade para a terra e saúde aos homens. Hoshá-na
(daí o Hosanah cristão)= salva-nos: no sétimo dia da festa, Hoshaná
Rabá, agitam-se, durante a oração da manhã, ramos de salgueiros, árvore
que cresce à margem dos rios e que simboliza a água que corre em
abundância. São renovados os pedidos a Deus que lave as faltas, que
ajude no ano que começou. Quando o templo existia celebrava-se a festa
da água (Sim’hat Beit Há-Shoevá). Hoje, em Israel, são feitas festas
populares e campestres.
Um aspecto particular de Shemini Atseret
é a oração por chuva, porque nesta época o mundo é julgado em relação à
água. Nas orações se introduz a frase, que será recitada até Pessah:
meshiv há-ru’ah u morid há-gueshem (faz com que o vento sopre e a chuva
caia). Esta reza dá expressão à natural ansiedade que se sente em Israel
durante a estação das chuvas, já que a ausência delas significa fome,
sede e enfermidade. Esta oração é feita para o dia final da festividade,
para não invocar a chuva justamente quando se necessita de um bom tempo
para habitar a Sucá.
Depois de todas estas considerações (ou
devaneios) o que você me diz: reflexão e alegria não combinam bem?
Afinal, que maior alegria pode haver do que quando encontramos, dentro
de nós mesmos a unidade, a integridade? Shalom (hebraico) e Salam
(árabe), que todos sabem que significa paz (embora não tenhamos ainda
conseguido aprender como fazê-la), significa em sua raiz, inteiro,
completo. E se conseguirmos ficar inteiros, podemos encontrar a paz
(interior); se conseguíssemos ficar inteiros, unidos na diversidade, não
teríamos encontrado a paz? E esta não seria o maior motivo de alegria –
o melhor modo de festejarmos zman sim’hatenu?
Jane Bichmacher
de Glassman é Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica,
Professora, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos
UERJ, Professora e Coordenadora do Setor de Hebraico UFRJ
(aposentada), escritora.
Publicado na Revista Rio Total em 22 de
outubro, 2005
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