W.J. Solha
O Voo de Paulo Vieira
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A sensação de que acabara de sair de uma João Pessoa de quando
ainda se chamava Parahyba, foi a que tive ao terminar de ler o romance
O Voo da Borboleta Negra, de Paulo Vieira, obra que me parece marcar a
entrada de nosso caro dramaturgo e romancista na maturidade literária. E
logo ao ler seu primeiro parágrafo, vi que o tema abordado por ele era o
mesmo de que acabo de fazer o libreto de uma ópera, a pedido do maestro
Carlos Anísio: a tragédia dos estudantes Ágaba e Sadi, ocorrida na cidade,
em 1923. Claro que, por isso, tive uma experiência à parte da que o leitor
de Paulo vai ter. Minha narrativa e a dele foram feitas a partir do mesmo
material de pesquisa disponível, bastante reduzido, e me empolgou o fato
de que ele – ao se interessar pela história - viu o mesmo que eu: que o
caso enfocado se dá num momento histórico extraordinário, e seu romance –
soberbamente – o explorou. Para tanto, teve a sabedoria de não especificar
o ano em que o enredo se passa, obtendo, com isso, enorme liberdade, vasto
espaço para criar e preencher tanta lacuna que há sobre o assunto na
História. Assim, ele consegue incluir na sua narrativa – com naturalidade
absoluta - a Coluna Prestes, que iria acontecer ainda entre 1925 e 27, o
romance A Bagaceira, de José Américo, que iria ser lançado apenas
em 28, além de notícias de Salazar, que iria fazer seus desmantelos a
partir, apenas, de 33. A inclusão desses fatos posteriores a 23,
entretanto, foi necessária para a perfeita compreensão dos anteriores.
Paulo Vieira fez aí mais ou menos o mesmo que o pintor flamengo Roger van
der Weyden – do século XV – que pôs um inesperado crucifixo na sua
representação do presépio.
Quando falo em maturidade literária,
refiro-me à segurança com que ele tece a sua trama complexa e muito viva
em torno dos dois concretos personagens centrais – Ágaba e Sadi –
servindo-se de um elenco de apoio igualmente convincente, com figuras como
a do Monsenhor com seu poder, sua palavra persuasiva e fácil, sua batina
cheirando a azedo, ele todo bem numa linha retrógrada que contrasta
terrivelmente com seu momento histórico, e que seria aprovadíssima por
Bento XVI; figuras como a Madame Canot e seu elegante prostíbulo com
frequentadores à Lautrec; figuras como o delegado Tibúrcio, tipo popular
que é o elo de ligação entre o alto e o baixo mundo da cidade; o jovem
Mário (na verdade Zé Lins na pré-produção de Menino de Engenho); a Anayde
Beiriz (que também estudou na Escola Normal) e o João Dantas, ambos em
fase, ainda, de flerte; o Presidente do Estado e sua ansiosa solidão
palaciana, ansiosa por conta da inquietação nacional e internacional
vigente; os viçosos colegas de Sadi no Lyceu, e de Ágaba na Escola Normal;
seus tirânicos pais, patéticas mães, irmãos chatos; o Aristides, padre pai
d´egua do interior da Paraíba, etc, etc.
O macete de não mencionar
o ano, bem como o de manter o anonimato do Presidente, que na época era
Solon de Lucena - que no livro age como João Suassuna -, e do próprio
Monsenhor, na vida real Monsenhor João Batista Milanez, foi utilizado para
maior desenvoltura do romancista ao buscar as causas da lendária tragédia
parahybana, que a muitos evoca a de Romeu e Julieta.
O que senti,
ao escrever o libreto - e que Paulo Vieira também percebeu ao tramar seu
romance - foi que aquele caso particular não veio ex nihilo, do
nada. Como no muito mencionado ruflar de asas de borboleta nas Filipinas
gerando um crescendo que culminará num furacão nos Estados Unidos, mas em
sentido inverso, vemos que a desgraça de Sadi e Ágaba foi consequência da
Primeira Grande Guerra (de 14 a 18), que botou as mulheres americanas e
europeias em fábricas (porque os homens estavam lutando ), tirando-as de
junto dos fogões e bebês e pondo-as – como consequência - na luta pela
igualdade dos sexos; de Lênin (1917) e sua demonstração de que a Revolução
era viável; da Semana de Arte Moderna de 1922 e seu escândalo, num
conjunto que excitou a juventude do país, inclusive no Lyceu Paraibano com
seus rapazes e na Escola Normal com suas moças. Anayde e João Dantas – que
também muito se amaram - também acabariam mal, sete anos depois, no vácuo
dessa mudança dos tempos que teria de terminar, como terminou, na
Revolução de 30.
O Voo da Borboleta Negra é um romance
assumidamente século XIX. Esqueça Joyce, Goytisolo, Milorad Pavić,
Cortázar. Lá pelas tantas, um de seus personagens (Zé Lins antes da hora)
diz o que me parece transmitir a meta que o próprio Paulo Vieira buscou e
conseguiu alcançar:
- (...) a literatura que ele pretende criar:
algo que expresse de modo natural, como uma conversa embalada pelo
balançar da rede, a vida do povo na trama das personagens. Para chegar à
clareza dessa conclusão, algo que é simples, mas que por isso mesmo é
complicado.
Em pintura há uma expressão – “horizonte alto” – para
quadros em que o artista eleva seu ponto de vista a fim de obter visão
abrangente de uma batalha, da extensão significativa de uma lavoura, de
uma longa distância percorrida, de uma cena cheia de detalhes. Brueghel se
serviu do “horizonte alto”, por exemplo, para cobrir toda uma multidão que
vem da esquerda, acompanhando Cristo com sua cruz, passa pelo centro, em
baixo, onde ocorrem vários incidentes (ladrões em ação, etc) e, deixando o
grupo das três Marias com João de lado, sobe para a direita, até o
Calvário que se vê lá em cima, aguardando os condenados em meio a um
círculo de curiosos. O Voo da Borboleta Negra põe a velha cidade de
Parahyba no mapa do Brasil, acompanha de longe o modernismo que se
aproxima, a Coluna Prestes que chega, penetra nas casas de Ágaba e de
Sadi, entra nos cabarés, mostra a estudantada no centro da cidade, onde o
Palácio da Redenção, significativamente, está entre a Escola Normal, hoje
o fórum, e o Lyceu, hoje Faculdade de Direito, passa por dentro desse
palácio, acompanha pitorescos passeios (que acabam dramáticos) na então
longínqua praia de Tambaú, de um lado, no parque da Bica, do outro,
acompanha orações em casas-de-família, sermões na catedral de Nossa
Senhora das Neves, mostra pequenas naturezas-mortas com salgadinhos ou
peixes fritos, desemboca na tragédia.
Sem se preocupar com a velha
ortografia, francesismos e anglicismos, gírias da época, Paulo Vieira nos
coloca à vontade, como contemporâneos permanentes da ação, tirando-nos a
sensação de reconstituição histórica, museísmo, dando-nos, ao contrário, a
mesma impressão, cheia de frescor, que sempre nos passa uma revista
parahybana que marcou esse tempo: Era Nova.
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wjsolha@superig.com.br
(1º de
maio/2016)
CooJornal nº 982
Waldemar José Solha é escritor, poeta, dramaturgo,
roteirista, ator e artista plástico.
Recentemente, trabalhou no filme premiado internacionalmente ‘O SOM AO REDOR”,
de Kléber Mendonça Filho e em “Era uma vez eu, Verônica”.
wjsolha@superig.com.br
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