Viegas Fernandes da Costa
Trabalho, paraíso e cadernos de caligrafia
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Desde que a sociedade do controle começou a ocupar
espaços cada vez maiores, em detrimento da sociedade disciplinar, um dos
discursos mais recorrentes no mundo do trabalho é o tal "home office", ou
seja, o já conhecidíssimo "trabalhar em casa".
Diferente do "levar
trabalho para casa", que significava horas-extras não pagas e, principalmente
por isso, carregava-se sempre de pesos e lamentações, o "home office"
apresenta-se carregado de positividades, tais como "você pode fazer o horário
que te parecer melhor", ou "é mais confortável e evita ter que enfrentar o
trânsito", além de, claro, garantir que a cara do patrão não te aborreça todos
os dias.
Trabalhar em casa não constitui novidade. Antes da sociedade
fabril-disciplinar, a oficina, escritório ou gabinete muitas vezes estendia-se
a partir da casa. Nos núcleos urbanos brasileiros, sobrados eram construídos
para abrigar os negócios no térreo e o privado do lar no andar superior. A
roça espalhava-se pelos fundos da casa do agricultor familiar. Profissionais
liberais tinham seus escritórios ou consultórios anexados à própria moradia.
Automóveis não existiam e distâncias eram, efetivamente, distantes! Havia uma
organização do tempo diferente desta que temos hoje e, claro, os hábitos de
consumo ainda não estavam regulados pelo fetiche da mercadoria, tão bem
compreendido por Karl Marx.
A instauração do modelo fabril para a
sociedade provocou este rompimento entre trabalho e vida, negócio e casa.
Artesãos precisavam ser alienados e transformados em operários fragmentados,
extensões das máquinas, instrumentos de produtividade. Qualquer trabalhador
que dominasse a totalidade do processo de produção da mercadoria, representava
um risco para a sobrevivência deste modelo total, fabril, disciplinador,
preocupado em concentrar renda para ampliar negócios. A fragmentação do
conhecimento só foi possível por meio de uma severa estrutura disciplinar,
autoritária, que submetia pessoas ao olhar vigilante e ao ritmo de uma
esteira, cuja velocidade aumentou na proporção em que aumentava a velocidade
dos cavalos, primeiro movidos a carvão, depois a petróleo. E isto só foi
possível por meio do sequestro. Sim, sequestraram-se pessoas para o chão da
fábrica, para as repartições burocráticas, para as linhas de produção
agrícola. Família e casa passaram a ser secundárias. A "realização"
profissional em primeiro lugar, o operário padrão-nação a quem se prometia o
paraíso (sugiro aqui o filme dirigido por Élio Petri, de 1971) era o ideal a
ser reconhecido. Homens e mulheres virando suco, como no filme de João Batista
Andrade, de 1981.
Mas a sociedade fabril se transformou. Novas
tecnologias de comunicação reduziram o mundo e ampliaram contrastes. Um mundo
cada vez mais technicolor e lisérgico. Da sociedade disciplinar caminhamos
para a sociedade do controle. Michel Foucault talvez tenha sido o primeiro a
perceber isto. "Sorria, você está sendo filmado", pois não é? O "Big Brother"
que era o "outro" de Orwell, passou a ser este "nós". Nossos olhos, nossas
iniciativas, nossas capacidades. Este mundo novo das câmeras, chips, senhas
rastreáveis e livros de autoajuda. O sujeito que se crê indivíduo, mas é Coca
Cola. Sim, se na década de 1980 ainda podíamos virar suco, hoje somos os
homens e mulheres que viramos Coca-Cola, esta bebida-empresa, esta marca que
bebemos. Desnacionalizada, sem suco, sem nada. Não falo da Coca Cola como
símbolo do imperialismo yankee. Isto já foi. Falo desta Coca Cola símbolo da
sociedade do controle, de um poder rede, de um império sem imperador. Da
fetichização do próprio fetiche. Daquilo que Marcelo Masagão explorou em um
filme intitulado "1,99, um supermercado que vende palavras" (2004). A palavra
mercadoria "felicidade", que nos vende Paulo Coelho, que nos vende a Coca
Cola, que nos vende o "home office", e aqui retornamos àquilo que era nosso
propósito, pensar a respeito do trabalhar em casa.
Levar trabalho para
casa sempre foi uma espécie de paradoxo. Ao mesmo tempo em que demonstrava a
incapacidade produtiva do trabalhador, já que este não era capaz de cumprir
com suas obrigações no tempo que lhe fora determinado, por outro, conferia
comprometimento, responsabilidade, na medida em que assumia executava a tarefa
que lhe fora delegada, ainda que no tempo reservado ao lazer ou à família.
Aliás, prejudicar o tempo do privado em benefício do profissional, na maioria
dos casos, era visto como virtude. Mas o que temos agora, entretanto, é a
apologia ao trabalhar em casa, o que é muito mais radical.
Primeiro, é
preciso dizer que trabalhar em casa torna-se novamente possível porque
aprimoramos os mecanismos de controle. Pouco a pouco automatizamos o feitor, o
encarregado, o panóptico físico de Jeremy Bentham, por outros. A cada
indivíduo um número, um registro, uma senha, um acesso. O que faz, o que
pensa, o que compra, por onde anda. Há milhões de olhos nos espiando em
silêncio, zilhões de terrabytes disponíveis para armazenar cada passo de cada
pessoa em cada lugar, ainda que estes lugares sejam virtuais, ou melhor,
principalmente se estes lugares forem virtuais. Porque é mais fácil controlar
alguém no espaço virtual, do que discipliná-lo no espaço físico. E esta é a
principal questão que nos leva a perguntar o que significa, efetivamente, o
"home office".
Não há dúvidas de que para muitos trabalhar em casa é
muito mais cômodo e seguro do que trabalhar em um espaço físico específico,
distante "x" quilômetros de onde se mora. Eu mesmo desenvolvo muitas das
minhas atividades de modo remoto. Por outro lado, precisamos considerar que os
mecanismos de controle sobre o trabalhador já existem, e estão bastante
aprimorados. Porém, quais os controles que o trabalhador possui sobre seu
controlador?
Em uma realidade na qual o discurso da flexibilização dos
direitos trabalhistas ocupa cada vez mais espaço, como garantir que o "home
office" não seja um novo sequestro do sujeito, agora para dentro da sua
própria casa, limitando seus movimentos em nome da produtividade? Até que
ponto o "home office" não é a cocacolarização do mundo do trabalho, onde a
marca substitui a empresa, distribuindo ônus e concentrando bônus?
Por
muito tempo acreditamos que a tecnologia nos traria tempo livre e nos
devolveria a humanidade. Hoje sabemos que isto não é verdade. Vivemos
plugados, conectados, dando resposta a tudo e a todos em qualquer momento do
dia e da madrugada. A sensação é de sufocamento, como se estivéssemos vivendo
a condição do homem bicentenário do conto de Isaac Assimov, o androide que não
aceita mais sua condição de máquina e quer ser humano. Cresci em Blumenau, uma
cidade que durante a década de 1990 começou a substituir a fábrica têxtil
pelas facções, sob o discurso do empreendedorismo. “Seja dono do seu negócio”,
“seja seu próprio patrão”. Operários passaram a comprar suas máquinas e
produzir o que produziam na fábrica, em casa, na garagem, na sala de
televisão, que foi desalojada para receber um tear, uma máquina de costura.
Nunca se transformaram em artesãos, porém. Nunca deixaram de ser operários. A
alienação do conhecimento estava dada. Passaram, entretanto, a trabalhar mais.
Se antes tinham salário fixo e recebiam horas-extras, agora passam à condição
de empreendedores que produzem para a fábrica da qual eram funcionários,
recebendo por produtividade, algo como os jornaleiros do século XIX. A renda
média dos trabalhadores da cidade diminuiu, o tempo de lazer foi se tornando
mais escasso. Sabemos que o “home office” não é necessariamente uma
terceirização da produção, mas pode vir a ser (e em muitas situações já o é),
e se precisa estar atento a isto. Afinal, a promessa da felicidade e da
liberdade é a mesma.
Assim como a digitação substituiu a caligrafia, o
controle substitui a disciplina. Esta talvez seja a metáfora para o "home
office". Do caderno de caligrafia, com suas linhas estreitas a nos provocar
câimbras nos dedos, à limitação do teclado que nos atrofia as mãos. Da fábrica
para casa, sob a promessa da felicidade, esta palavra fetiche que nos tange,
talvez não mais tanto como gado, mas como moscas, certamente.
(RT, 01/09/2015 - Ano 19)
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a
Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um
Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona
História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de
Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.
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