Viegas Fernandes da Costa
NECROLÓGICO DA BIBLIOTECA
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"Durante décadas meu pai viveu trancado na biblioteca que toma todos os
cômodos da casa. Por causa dos livros nos abandonou, como se um monte de papel
mal cheiroso pudesse substituir o mais irrelevante afeto de uma família. O
velho arredio que jamais me fez um carinho era cheio de cuidados com livros em
frangalhos, numa perversão que me repugnava.” É assim que Miguel Sanches Neto
dá início ao conto “A segunda morte de meu pai”, no qual narra a investida de
um filho contra a biblioteca paterna de vinte e cinco mil exemplares por ele
herdada.
Outro dia a repórter de um jornal diário perguntou-me se
acaso eu saberia lhe indicar duas ou três pessoas que abrigassem em suas casas
uma biblioteca modesta. Não me ocorreu ninguém. Daqueles que lembrei,
constatei estarem mortos. Percebi então, claro, que os tempos são outros,
diferentes daqueles em que ostentar estantes abarrotadas de cartapácios era
sinal de distinção social e intelectual. Na década de 1970, por exemplo,
diretores de pornochanchadas recorriam às estantes com livros para figurarem
em seus filmes, estrategicamente posicionadas ao lado do bar doméstico com
suas garrafas de whiskies, absintos e vinhos exóticos, outro elemento
distintivo. Tratava-se, claro, de tentar burlar os vigilantes da moral.
Afinal, sacanagem regada a Camões e um legítimo Porto não podia receber o
destrato de uma censura acostumada com Carlos Zéfiro e Caninha 51. De qualquer
modo, não é mais assim. Nem as pornochanchadas seriam censuradas hoje, nem as
bibliotecas particulares encantam as novas gerações. Na pretensa assepsia dos
dias que correm, o papel cheira mal, abriga toda sorte de pragas e fungos e
ocupa espaço imenso. Uma biblioteca particular entoa os ecos de um limbo para
seus prováveis futuros herdeiros (filhos, netos ou sobrinhos de algum vetusto
bibliófilo). Está lá para ser destruída tão logo morto seu proprietário, e até
a maior parte dos bibliotecários teme ante o anúncio da chegada de uma grande
doação de livros pertencentes a alguma coleção particular, isto quando não a
rejeitam, impiedosamente. Falta espaço, pessoal especializado para triagem e
higienização, e os materiais para o restauro são caros. Enfim, bibliotecas
particulares, apesar de cada vez mais raras, transformaram-se em enormes
elefantes brancos.
No conto de Miguel Sanches Neto lemos o ódio de um
filho aos livros do pai morto. Eliminar a biblioteca herdada equivale a uma
espécie de acerto de contas. Afinal, se toda biblioteca particular carrega
consigo uma personalidade, destrui-la corresponde a algo como que um
assassinato. Entretanto, o ato extremo do personagem do conto em questão não
se constitui em regra, e a maioria das pessoas procura dar destino mais nobre
aos livros órfãos do seu bibliófilo e descabidos na nova realidade. Quando não
conseguem vendê-los a algum sebo que os compra a quilo, procuram a biblioteca
mais próxima para então doá-los, cercados de memória e pompa. Nestes casos,
tomamos os doadores com certa compaixão, pois estes tentam preservar o tênue
legado de uma vida dedicada aos livros. Acorrem às bibliotecas transbordando
entusiasmo e alívio. Entusiasmo porque acreditam sinceramente na importância
inesgotável e no valor inestimável do material que disponibilizam, e alívio
porque poderão usufruir do espaço desocupado da maneira que julgarem mais
adequado, sem ofender a memória do falecido (o que certamente aconteceria se
destinassem tudo para usinas de reciclagem de papel). É assim que chegam às
prateleiras públicas alguns volumes dedicados com ternura, como se
espalhássemos ao vento os sussurros de uma noite de amor. Páginas vincadas e
rascunhadas, números de telefone cuidadosamente anotados a um canto da margem,
uma nódoa de história particular. Isto, claro, quando aceitos assim impuros
por algum bibliotecário excepcional zeloso de seu ofício. Na maioria das
vezes, porém, estes livros sofrem duplo assassinato: indesejados pelos
herdeiros e descartados pelo pragmatismo das bibliotecas contemporâneas, são
transformados em tiras de papel picado ou, na melhor das hipóteses, são limpos
do seu passado, brutalmente devolvidos a uma espécie de virgindade inócua.
Penso, às vezes, que o espírito de Filippo Marinetti habita as intenções da
maioria dos bibliotecários que conheço, e que a biblioteconomia contemporânea
é a sucessora legítima dos futuristas do início do século XX. Isto, claro, não
se trata de um elogio, já que Marinetti e os demais futuristas propunham
apagar o passado destruindo suas marcas.
O personagem de Miguel
Sanches Neto compreende como um ato de perversão a relação que o pai mantinha
com seus livros. O próprio pai, em outra passagem do conto, confessa sua
promiscuidade com os livros já experimentados, encontrados nas livrarias de
obras usadas, aos quais cheirava, tocava, invadia as intimidades. De fato,
para se manter uma biblioteca particular, há de se amar os livros, há de se
construir uma relação bibliogâmica. Afinal, os livros de uma biblioteca
particular não são apenas livros, no sentido daquilo que são capazes de dizer
os textos e imagens impressos em suas páginas, mas objeto de fetiche. O
praticante da bibliogamia, por exemplo, passa horas diante das estantes,
imóvel, namorando os volumes em diálogo mudo, intenso, como que se um sentido
obscuro emanasse das capas fechadas. Por isso, toda destruição de uma
biblioteca particular corresponde à destruição de uma relação de amor.
Sim, na pretensa assepsia dos dias que correm, o papel cheira mal, abriga
toda sorte de pragas e fungos e ocupa espaço imenso. O mesmo ocorre com o
amor, este amor de namorados que desfecham tiros no peito, como na poesia de
Carlos Drummond de Andrade. Amor que também ocupa espaço e muitas vezes pode
cheirar mal. Na assepsia do mundo moderno não há mais espaço para o amor,
muito menos para uma biblioteca particular que representa o amor distribuído
pelas estantes.
(15 de outubro/2014) CooJornal nº 911
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a
Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um
Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona
História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de
Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.
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