Viegas Fernandes da Costa
Enquanto Godot não chega...
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... estive passeando, tal qual um flaneur em Paris, pelos corredores
estreitos do depósito da biblioteca onde trabalho. Andar por esses corredores
lembra um pouco o andarilhar por entre as lápides de um cemitério antigo, em
tarde de domingo. Particularmente me aprazia, aqui em minha pequena aldeia, o
cemitério evangélico, onde repousavam registradas, no húmus e nas lápides,
algumas memórias do século XIX, dos tempos dos primeiros colonos europeus.
Digo repousavam, porque movidas, a maioria delas, de seu pouso original, e
outras escavadas em definitivo da terra para o éter, porque demasiados os
mortos e desnecessários os monumentos físicos em tempos de tanta memória
virtual. Pois bem, e aqui se encontram as duas pontas do novelo: das estantes
para as lápides... e Godot! Sim, porque a ilusão é sempre esta: tecemos a
história a fim de ocupar nosso tempo de espera, mas preferimos não perceber,
entretanto, que Godot já cá está, e é mesmo esta tela de Penélope que
costuramos a cada instante, esta coisa de criança de gravar as mãos no cimento
fresco da calçada para mais tarde poder dizer “existo, eis minha marca!” Godot
então nos abraça sorrateiro, cobre-nos a boca com a sua e infla-nos com seu
hálito; engana-nos, entretanto, dizendo que não está, que ainda chega, que
esperemos, e assim cosemos e descosemos, imprimimos nossos nomes na pedra, no
papel, no silício, nas ondas que de alguma forma percorrem o espaço e
encontram algures ouvido disposto a reconhecer-nos indivíduos dignos de
lembrança; e há, assim, tanta memória, que por fim não resta memória alguma.
Ocorreu-me a visita, o perambular, ao depósito da biblioteca onde
trabalho, nesta tarde de um dia ruim. Devo dizer, entretanto, não se tratar de
biblioteca vetusta. Nem bem chegou a meio século de existência, e boa parte do
seu acervo desconhece as marcas da linotipia. Por isso um depósito de obras
bastante recentes que ainda há pouco circulavam novas e vistosas nas bancas e
livrarias, mas que os tempos urgentes que vivemos relegaram à poeira e à
penumbra. Estão lá, e são milhares, como milhares os registros na
Conservatória de Saramago, nomes duplamente mortos: porque findos e porque
esquecidos. Milhares se considerarmos os volumes; somadas as páginas,
entretanto, alcançam cálculo absurdo do qual sequer ensaio aproximação,
impossível que é! Então driblo tudo isso e apenas sigo vagaroso, encolhendo-me
nos corredores estreitos, envolvido em tanta palavra, e deixo meus olhos –
marinheiros à deriva – vagando pelas lombadas, lendo os títulos, parando aqui
e ali, retirando um ou outro volume da prateleira, folheando-o, tornando-o
momentaneamente à planície da existência para depois devolvê-lo ao olvido. E
neste deambular de olhos e mãos, sigo lembrando de um fragmento de “Sobre a
leitura e os livros”, onde disse Arthur Schopenhauer que “segundo Heródoto,
Xerxes chorou ao contemplar seu exército inumerável, pensando que em cem anos
nenhum daqueles homens ainda estaria vivo. Quem não sentiria vontade de
chorar, à vista dos grossos catálogos editoriais, se pensasse que, de todos
aqueles livros, já em dez anos não haverá nenhum vivo”. Disse-o há aproximados
duzentos anos, de lá para cá a coisa só se fez aumentar. Mesmo Xerxes e
Heródoto anunciam-se como espectros apagados de um tempo que já quase não mais
está. Por isso posso afirmar, andar por esses corredores lembra um pouco o
andarilhar por entre as lápides de um cemitério antigo, em tarde de domingo.
O mundo pesando-me sobre os ombros, peito apertado, encontro o final do
corredor estreito e lá, adiante, agachado sobre seu próprio corpo, empilhando
livros e mais livros sobre o chão, está o sr. Milbratz. É dele a função de
guardador dos despojos de nossa civilização letrada. Está preocupado, o sr
Milbratz; já não sabe para que sítio encaminhar tantos mortos que chegam.
Concluo que bibliotecas são como grandes túmulos, o que não espanta, porque
tumular toda nossa sociedade. Mas nada disso importa, porque prosseguiremos,
eu, o sr. Milbratz, você. Prosseguiremos crendo em Godot, que chegará, que nos
revelerá ou trará algo importante, sei lá, porque é esta crença que nos torna
humanos; e qualquer dia, talvez, seremos uma foto ao relento que vento a vento
esvanecer-se-á e, depois... o depois só Godot dirá.
(RT, 10 de agosto/2014)
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a
Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um
Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona
História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de
Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.
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