Viegas Fernandes da Costa
Enquanto Godot não chega...
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... cai-me à mesa uma edição antiga do caderno de Cultura do Zero Hora, de 21
de novembro de 2009. Na capa, Itálico Marcon. Nunca tinha ouvido falar!
Segundo Luiz Antônio Araujo, o autor da reportagem, Marcon é (ou era, haja
visto os últimos eventos) o segundo maior bibliófilo do Brasil. Perde
(perdia), apenas para Delfim Netto, este sim o maior juntador de livros
brasileiro. Claro, falamos aqui dos maiores bibliófilos considerando o número
de títulos que possuem sob sua guarda, e não a qualidade e raridade dos
mesmos. Não importa! Marcon virou meu herói dado seu desprendimento! Sua
biblioteca atulhava três apartamentos em Porto Alegre, livros adquiridos
durante seus setenta anos de vida. Apartamentos que agora estão esvaziados de
tanto papel e verbo. Itálico Marcon simplesmente resolveu doar 180 mil volumes
da sua coleção para um projeto chamado “Banco de Livros”, que tem o apoio de
Luis Fernando Veríssimo. O objetivo do “Banco de Livros” é montar acervos em
comunidades carentes.
Fico aqui pensando na dimensão do gesto. Todo
bibliogâmico sabe dos ciúmes que um livro (ou toda uma biblioteca) pode
provocar. Diria até que os livros nos chantageiam emocionalmente, atiçam-nos a
libido, oferecem-se às nossas mãos, olhos, bocas, e depois nos põem escravos
de si. Imploram cuidados, atenção permanente, frágeis e melindrosos que são.
Mas sem tergiversações, dizia do gesto, da dimensão do gesto de Itálico
Marcon.
“Não foi o primeiro a fazê-lo”, Pode argumentar alguém. “Está
aí José Mindlin, que doou sua rica biblioteca à USP”. “É diferente”,
responderei. Ainda que também bastante admirável a atitude de Mindlin, há uma
diferença substancial entre o gesto deste e o de Marcon. Mindlin doou sua
biblioteca a uma única instituição universitária, e o fez cercado de
exigências. Justo, claro. Bibliogâmico que é, quer ver seus livros bem
preservados, tratados com o zelo de que nunca se viram privados. Além disso,
Mindlin constitui um monumento à sua memória na medida em que entrega uma
coleção que preservará seu nome e ficará reunida em um único espaço. As
gerações futuras saberão que aqueles livros foram reunidos por uma figura
lendária, chamada José Mindlin, que dedicou boa parte da sua vida caçando pelo
mundo livros únicos. Não neguemos, a imortalidade é boa paga ao desprendimento
de Mindlin. Já no caso de Itálico Marcon, o desprendimento se dá em outro
nível.
Ao doar os 180 mil volumes da sua biblioteca particular ao
projeto “Banco de Livros”, Marcon pulveriza sua coleção e dissolve a
possibilidade de transformar seu gesto em ato monumental. Fica, claro, o
registro da doação na imprensa e nas comendas que certamente receberá, porém o
“lugar de memória” físico, acessível por corpos humanos não virtuais, este não
existirá. É como o sujeito cujo cadáver sepultamos no mar. A lápide de uma
sepultura é sempre a garantia de uma certa imortalidade, ainda que efêmera; de
um certo estar no mundo, ainda que ausente. E é justamente esse sepultamento
no mar, essa entrega de uma biblioteca, razão de ser de toda uma vida, para
que se pulverize e chegue, de fato, às mãos de leitores anônimos e espalhados
pela periferia portoalegrense, que torna a doação de Marcon tão significativa
e magnânima.
Que sejam lidos, entretanto, os livros doados, e não se
percam, nas obscuras prateleiras da burocracia ou em bibliotecas ora
suntuosamente inauguradas e futuramente abandonadas e esquecidas, os livros
mofados destinados à reciclagem. É isto o mínimo que podemos devolver a
Marcon.
(RT, 10 de julho/2014) CooJornal nº 899
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a
Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um
Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona
História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de
Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.
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