Viegas Fernandes da Costa
Recordações do Sótão
|
|
Quando menino, as horas investidas sobre os papéis. Não eram palavras, mas
traços, estradas que se desdobravam ao sabor da esferográfica, ato autômato,
caminhos que percorriam meus pés alados de criança ociosa. Brincar de Deus era
bacana, construtor de mundos. Começava com uma primeira folha de ofício, logo
pequena. A esta colava-se outra, e outra, e outra, um enorme mapa
desdobrando-se ante minha sanha criadora, tamanha sanha que não tardava
preenchiam-se as folhas coladas umas às outras. Via-as ocuparem todo espaço do
imenso sótão que habitava. Este era sempre meu limite, o sótão que habitava.
Então passava horas namorando aqueles traços, emaranhados caóticos que se
cruzavam, afastavam. E o mergulho naquela realidade virtual que minhas mãos
haviam criado, cada linha uma estrada, uma avenida, um beco. Seria capaz de
nominar todas, e eram centenas de milhares. Sim, centenas de milhares! Em meus
delírios de guri, perdia-me naqueles caminhos. Sabia a localização dos rios,
ribeirões, o rural e o urbano bem definidos. Eu realmente vivia aquele mundo,
esquecido deste aqui. Não à toa, meus boletins escolares eram sempre
desespero. Desenhar mundos foi meu escape, o esquecimento deste real
esquizofrênico e dolorido. Hoje, crescido, tenho consciência do sótão roubado,
dos gigantescos mapas lançados ao lixo, da vida que vivi intensa em meus
delírios de infância. Hoje, as horas investidas sobre papéis. A palavra
catarse que não é... não é! Que apenas devolve-me à consciência do absurdo que
é estar neste real pastiche. Pudera encontrar a palavra traço inventora de
mundos, passível de se desdobrar por todo sótão da minha memória, e seria
livre. Mas isto já não é mais possível.
RT, 25 de maio/2014
CooJornal nº 893
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a
Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um
Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona
História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de
Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.
Direitos Reservados
|