O
território foi comprado por conversos espanhóis, em 1474, para
fugir da Inquisição.
Mas, o sonho de liberdade só durou dois
anos.
Uma monografia inédita publicada em
abril de 1990 pela revista Almoraima, do Instituto de Estudios
Campogibraltareños (da comarca espanhola Campo de Gibraltar)
trouxe à tona um episódio tão surpreendente quanto desconhecido
sobre a compra do território de Gibraltar por conversos
espanhóis, no século 15. O autor, Diego Lamelas Oladán, já na
introdução, ressalta que o fato é “praticamente desconhecido” e
aconteceu 18 anos antes da expulsão dos judeus da Espanha, e 12
anos depois de Gibraltar se reconquistada dos mouros pelos
espanhóis.
Intitulado La compra de Gibraltar por los
conversos andaluces (1474-1476), o estudo de 30 páginas revela
que a região localizada no extremo sul da Península Ibérica –
oficializada território ultramarino britânico em 1713, pelo
Tratado de Utrecht – foi habitada e administrada por conversos
que erigiram casas, defenderam militarmente o local dos ataques
de piratas e constituíram uma comunidade civil organizada.
Lamelas ressalta que a versão repetida através dos séculos,
principalmente por historiadores espanhóis, é a de que os
conversos de Córdoba tentaram, sem êxito, comprar Gibraltar. A
exceção a essa historiografia oficiosa, segundo Lamelas, se
encontra na narração do cronista Alonso de Palencia (1423-1492),
que registra com detalhes as tratativas com os nobres e a Coroa
espanhola que resultaram na efetiva ocupação do local pelos
conversos por um período de dois anos.
Durantes esse tempo,
sob o reinado de Henrique IV (1454 a 1474), rei de Castela e
Leão, 4.350 conversos oriundos de Córdoba e Sevilha, liderados
por Pedro de Herrera, também um judeu converso, viveram como
cidadãos livres em Gibraltar, após negociarem a compra do
território com o duque de Medina Sidonia, nobre influente na
corte.
Ali estabeleceram uma guarnição de cavalaria para a
proteção do local. Porém, em 1476, tiveram que deixar Gibraltar
por ordem do mesmo duque, que se alinhou à Espanha católica.
Muitos conversos, sem alternativa, retornaram a Córdoba onde
foram acusados de hereges, perseguidos e sentenciados à morte
pelos tribunais da Inquisição.
Clima de medo
Um dos homens
mais ricos da Espanha à época, Don Enrique de Guzmán, que
ostentava os títulos de II Duque de Medina Sidonia e IV Conde de
Niebla, tinha uma situação destacada na cidade de Sevilha e
mantinha estreitas relações com banqueiros conversos que
arrecadavam impostos para a Coroa. Seu pai, o I Duque de Medina
Sidonia foi quem reconquistou Gibraltar dos mouros, em 1462, e,
após a sua morte, Guzmán pleiteou a concessão da terra a Enrique
IV, que autorizou a posse, porém sob o controle do reino.
Segundo Lamelas, anos antes, a ascensão econômica dos judeus e
sua influência no reino gerou um sentimento antissemita na
própria nobreza e no clero em geral, o que culminou no pogrom
(perseguição religiosa violenta com ataques físicos massivos) de
1391, em Sevilha, estendendo-se por outras cidades da Andaluzia
(em Córdaba houve o registro de duas mil mortes). Nos quinze
anos seguintes, um clima de medo dominou a comunidade, e mais de
cem mil judeus foram batizados pela Igreja e mencionados, a
partir daí, de conversos.
Localização estratégica
A opção
de povoar Gibraltar com os conversos (em 1473 o território tinha
em torno de mil habitantes que foram evacuados pela Coroa)
surgiu por sua localização estratégica, no extremo sul da
Península Ibérica. Com apenas 6,8 km², a cidade está situada aos
pés de uma rocha de calcária de mais de 400 metros, ladeada pelo
Mar Mediterrâneo, o Estreito de Gibraltar e o Oceano Atlântico.
Os conversos teriam a obrigação de indenizar os moradores
antigos e construir novas casas. Eles também seriam responsáveis
pelo custo da defesa militar de Gibraltar, com uma guarnição
composta de 800 homens.
A cessão do território para os
conversos é narrada por Palencia em sua Crônica sobre o reinado
de Henrique IV (escrita em latim), considerada uma das obras
mais importantes da memória histórica da Espanha. A concessão
não foi unanimidade para os conselheiros do Duque que
inicialmente dissuadiram o nobre de tal iniciativa, visto que
uma das exigências de Herrera era que os cristãos, antigos
moradores de Gibraltar, fossem embora do local.
Os
conselheiros também elencaram motivos militares, religiosos e
pessoais para a não cessão do território aos conversos.
Consideravam que eles não estavam preparados para defender
Gibraltar de ataques por terra e mar; que os conversos andaluzes
não eram cristãos fiéis e praticavam o judaísmo escondido,
principalmente os de Córdoba; e que residindo em Gibraltar
ficariam mais perto de Jerusalém e do Oriente, ganhando um porto
livre para possíveis traslados e fugas.
Mais impostos
Mas,
os conversos tinham um aliado na figura de Don Alfonso de
Aguilar, um nobre influente casado com uma descendente de
conversos. Na obra A History of the Marranos (1932), do
historiador britânico Cecil Roth (1899-1970), é dito que o nobre
mantinha laços comerciais importantes com os conversos de
Córdoba que, por sua vez, patrocinavam suas tropas. Em troca,
obtinham cargos públicos e a proteção contra acusações de
práticas judaicas secretas.
O principal conselheiro de Dom
Alfonso era justamente Pedro de Córdoba ou Pedro de Herrera, que
se tornou o mediador para a compra de Gibraltar pelos conversos,
já que o nobre mantinha, desde 1468, uma estreita amizade com
Don Enrique de Guzmán, II Duque de Medina Sidonia, detentor da
posse do território.
Pelo pacto liderado por Herrera, este
teria o comando da fortaleza de Gibraltar e o mando de todas as
funções militares e civis em nome do Duque. Teria que prover a
tropa, e os conversos pagariam elevadas quantias ao Duque,
apesar dos pesados impostos que já pagavam à Coroa.
De acordo
com o historiador Antonio Paz y Meliá (1842-1927) - em sua
introdução à Crônica de Palencio sobre Henrique IV, traduzida
por ele do latim para o espanhol -, levando em conta o peso da
moeda da época, “los fondos netos (líquidos) obtenidos por el
Duque de Medina Sidonia en 1474-1476 de los judíos asentados en
Gibraltar ascendieron a un total de 35,90 kilos de oro”.
Na
obra História social, política e religiosa dos judeus em Espanha
e Portugal, publicada em 1875, Amador de Los Ríos (1818-1878)
chega a listar os nomes dos conversos mais ricos e influentes de
Sevilha, a maioria deles atuantes no ramo de comércio e em
serviços de arrendamento, recolhimento de impostos e locação.
São citados: Juan Fernández Abolafio, Diego de Susán, Ayllón
Perote, os irmãos Sepúlveda y Cordobilla, Manuel Sauli,
Bartolomé de Torralba, Pedro Fernández Benedeva, Pedro Fernández
Cansino, Gabriel de Zamora e Juan Delmonte.
É importante
lembrar que até o século 13 os judeus podiam ter terras, eram
agricultores e cultivavam vinhedos. Mas, com a proibição de os
judeus possuírem terras a situação mudou e eles se voltaram para
as atividades econômicas, comerciais e financeiras.
Pérola de
Sefarad
Sobre a compra de Gibraltar, Los Ríos faz um paralelo
com a cidade de Lucena, conhecida como a pérola de Sefarad
(Espanha). Povoada por judeus, sob o regime do califado de
Córdoba (séculos 9 a 12) tornou-se um dos mais importantes
centros do reino, nos aspectos econômico, cultural, filosófico e
científico. O nome Lucena se origina do hebraico Eli Hoshana -
הושענא אלי (que D’us nos salve). O autor considera que o
exemplo bem sucedido de Lucena pode ter influenciado a adoção
dessa iniciativa para salvar os conversos alvos da animosidade e
perseguição dos chamados cristãos velhos de Sevilha, incitados
pelo Marqués de Villena (Don Juan Pacheco), também descendente
de judeus e Mestre da Ordem Militar de Santiago, uma ordem
religiosa militar chancelada por bula papal em 1175.
Fontes
históricas como a do cronista Fernão Lopes (1385-1460), em sua
Crônica de Fernando IV (1289-1312), rei de Castela, também narra
que em 1310, por ocasião da primeira conquista de Gibraltar
pelos castelhanos, cogitou-se o assentamento de judeus, cristãos
e mouros no local, todos com os mesmos direitos. Porém o tema
não aparece em crônicas posteriores e, em 1333, os mouros
reconquistam Gibraltar e lá permanecem até 1462.
Lembrando
que Gibraltar (da expressão árabe Jabal al-Tariq, que significa
montanha do Tariq) era dominada pelos mouros desde 711, e seu
nome se reporta ao militar muçulmano que conquistou o local dos
visigodos, Táriq ibn Ziade.
Dificuldades em Gibraltar
Citando o relato da Crônica de Palencio como fonte, Diego
Lamelas conta que o translado para Gibraltar por mar se
apresentou muito perigoso para os conversos por causas dos
ataques dos piratas que raptavam as mulheres e roubavam os bens.
A travessia por terra era mais segura e em 14 de agosto de 1474
cerca de 4.350 conversos de Córdoba e Sevilha chegaram ao
território. Herrera, então, dividiu a administração de Gibraltar
entre os conversos, mas houve discordância entre eles e os
originários de Sevilha regressaram as suas antigas moradas.
A
mesma fonte registra que devido à posição geográfica de
Gibraltar, situada no extremo sul da Península Ibérica e longe
das principais cidades da Espanha, houve dificuldade para a
construção das novas moradias, devido a falta de material. Os
alimentos também chegavam com dificuldade e por altos preços,
além do território ser constantemente assolado por investidas de
corsários.
Trato desfeito
Dois anos depois da chegada dos
conversos, os conselheiros do Duque continuavam a insistir para
que o trato com os conversos fosse anulado devido à fragilidade
de defesa do território. Igualmente reafirmavam que os conversos
em Gibraltar estavam livres para retornar às práticas judaicas.
Também crescia em todo o reino a suspeita de que a rainha
(Isabel de Castela, a católica) era protetora de judeus e filha
de uma judia (Isabel de Portugal). Assim, o trato foi desfeito
em agosto de 1476 e os conversos de Córdoba se viram obrigados a
retornar, agora em penúria, para enfrentar as perseguições das
quais haviam fugido.
Sobre o destino desses conversos, pouco
se sabe, mas segundo Palencia, com a instalação da Inquisição,
em 1 de janeiro de 1483, foi ordenado que todos os judeus de
Sevilha, Córdoba e Cádiz abandonassem as residências e se
mudassem para outras partes do reino. Isabel de Castela e
Fernando de Aragão deram um prazo de 30 dias para o cumprimento
da sentença, que foi prorrogado para seis meses pelos próprios
inquisidores. Muitos fugiram para o reino muçulmano de Granada,
que tinha sob a sua guarda províncias como Málaga e partes das
provinciais de Córdoba e Sevilha.
Em 1487, com a tomada de
Granada pelos reis católicos Isabel e Fernando, conversos de
Córdoba e Sevilha, retornados de Gibraltar, foram encontrados no
Castelo de Gibralfaro, em Málaga, uma das fortificações mais
imponentes e inexpugnáveis da Península Ibérica. O cerco ao
castelo durou três meses e com a vitória da Espanha os reis
mandaram queimar imediatamente os conversos, sem o julgamento do
Santo Ofício, de acordo com o cronista oficial do reino de
Aragão, Jerónimo Zurita (1512-1580), em sua obra Anais do Reino
de Aragão.
Porém, somente em 2 de janeiro de 1492 o último
rei mouro de Granada, Boabdil, entrega as chaves da cidade para
os reis católicos, após meses de guerra e cerco à cidade. No
livro Judíos españoles en la Edad Media, o historiador espanhol
Luis Suárez Fernández registra que em 1488, com Tomás de
Torquemada já nomeado Inquisidor-geral da Espanha, os conversos
de Córdoba propuseram aos reis católicos ajudar com recursos na
guerra contra o reino de Granada com a condição de que lá não
fosse instalado o Santo Ofício. Porém, Torquemada influenciou os
reis a não aceitar o trato e, pior, durante os próximos anos, a
maioria dos conversos queimados na região de Andaluzia foram
justamente os conversos oriundos de Córdoba e Sevilha.
Verdade histórica
Cinco séculos depois desse episódio que
Lamelas classifica de “desconhecido e penoso da história da
Espanha”, o importante a considerar, em sua opinião, é que
Gibraltar, um ponto estratégico para a coroa espanhola, foi
habitado exclusivamente durante dois anos por judeus espanhóis
conversos e um deles detentor de toda autoridade civil e militar
sobre o território.
Em um pequeno histórico sobre a vida de
Palencia, Lamelas chama a atenção para o fato que o cronista foi
educado no palácio do bispo de Burgos, Alfonso de Santa María,
membro de uma importante família judaica conversa. Nomeado por
Henrique IV cronista da Corte e seu secretário de Latim,
Palencia trabalhou para o rei de 1456 a 1465. Também prestou
serviços para o Duque de Medina Sidonia e foi reconhecido por
seu colega renascentista, o jurista e cronista Galíndez de
Carvajal (1472-1528), como “o historiador mais verdadeiro da
Espanha”. O historiador contemporâneo Paz Y Meliá vai mais além
e homenageia Palencia como “a única fonte autêntica para o
conhecimento daquela época”.
Finalizando, Lamelas avalia que
a partir desse episódio, que efetivamente aconteceu e se
perpetuou na memória dos conversos, Gibraltar funcionou como um
ímã para os judeus espanhóis (sefarditas) e também para os
judeus mizrahim (provenientes do Oriente e da África). Em 1704,
após a conquista do território pelos ingleses, para lá acorreram
principalmente os judeus de Marrocos, descendentes diretos
daqueles expulsos da Espanha pela força do Decreto de Alhambra
(1492), além de judeus sefarditas de Portugal, Itália e Holanda.
Em 1724 é fundada a Sinagoga Sha'ar Hashamayim (Porta do Céu)
por Isaac Nieto, de Londres, o primeiro rabino do território. O
templo se torna também o primeiro a funcionar na Península
Ibérica após a expulsão dos judeus da Espanha e Portugal, em
1492 e 1497, respectivamente.
Sob a proteção da Rocha
A
monografia de Lamelas foi traduzida para o inglês por Sam
Benady, de 85 anos, judeu nascido em Gibraltar, oriundo de uma
família que habita o território desde 1735. Impressionado com o
episódio, publicou em 2005 o romance histórico The Keys of the
City: An Episode in the History of Gibraltar, baseado nessa
ocorrência. Em 2015, o livro foi traduzido para o espanhol sob o
título Las llaves de Gibraltar.
Atualmente, Gibraltar, também
conhecida como The Rock (A Rocha), em alusão ao rochedo de
calcário que guarnece o território, abriga uma comunidade
judaica pequena, mas atuante (perto de mil membros) de judeus
sefarditas que representa mais de dois por cento da população
local de 33 mil habitantes. Tem uma infraestrutura religiosa
considerável, com quatro sinagogas, todas ortodoxas e em
funcionamento, cemitério, escolas judaicas, micvê (para banhos
rituais), lojas e restaurantes kosher.
Na história política
moderna de Gibraltar destaca-se a figura de Sir Joshua A. Hassan
(1915-1997), nascido no território e descendente de judeus de
Marrocos, que foi o primeiro prefeito do território, e depois,
por duas vezes, primeiro ministro-chefe. A comunidade sempre
lembra que em 1964, quando Hassan assumiu o cargo, Gibraltar e
Israel eram as duas únicas nações onde os chefes de Estado eram
judeus.
Em 25.10.2022