Políticos, intelectuais e formadores de opinião mal
intencionados têm se apropriado do termo “genocídio” para
qualificar as mais de 550 mil mortes por Covid-19 ocorridas no
país. Mas, o real entendimento sobre o que é genocídio pode ser
sentido no que vem ocorrendo na região de Xinjiang, na China, em
relação à etnia dos uigures. Uma política de estado há anos vem
massacrando esse grupo étnico, por meio de perseguição
religiosa, instalação de campos de confinamento, prisões
arbitrárias, tortura, estupros e desaparecimento de civis.
O estado de Israel, para onde acorreu a maioria dos
sobreviventes do regime nazista que dizimou um terço da
população judaica na Segunda Grande Guerra (1939-1945), votou em
junho último contra a China no Conselho de Direitos Humanos da
ONU. Ainda que ambos os países mantenham um forte comércio
bilateral e a China seja o segundo maior investidor em Israel,
depois dos Estados Unidos, o que está acontecendo com os
uigures, classificado por estudiosos de vários países como
genocídio, acendeu o sinal de alerta para a diplomacia
israelense.
Voto contra a China
Deixando à parte o
lado comercial, que em 2020 cresceu 20% entre os dois países e
atingiu 17,5 bilhões de dólares, Israel seguiu os Estados Unidos
em seu voto no Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC, na
sigla em inglês) que condenou a China por abusos contra
muçulmanos que vivem na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no
noroeste do país.
A região, anexada pela China em 1949,
abriga os uigures, de origem turcomana, maior grupo étnico
local, que professa o islamismo. De acordo com o Departamento de
Estado dos EUA, acredita-se que até dois milhões de uigures e
outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de
centros de detenção em toda a região. Ex-prisioneiros relatam
que foram sujeitos à doutrinação, tortura e até esterilização.
Recentemente, em 9 de julho, milhares de uigures exilados se
reuniram em várias capitais para protestar contra a manutenção
desses campos, as prisões arbitrárias, a repressão e
perseguições violentas, a internação em massa e o
desaparecimento de cidadãos civis. Eles também lembraram o
conflito ocorrido há doze anos, em Xinjiang, que resultou em
centenas de mortos e feridos.
Em Londres, além de clamar
por justiça e pela ajuda das nações ocidentais, a manifestação
foi liderada por Rahima Mahmut, diretora do Congresso Mundial
Uigur, e Sheldon Storne, conselheiro da mesma organização que
luta pelos direitos humanos e pela liberdade religiosa em
Xinjiang (ou Turquestão Oriental para os uigures). Storne é um
médico britânico de origem judaica que dirige a campanha STOPUYGHURGENOCIDE, em Londres.
Crime de genocídio
Relatório independente divulgado em março pela ONG Newlines
Institute for Strategy and Policy, sediada em Washington, também
traz graves acusações à China e afirma que “o governo chinês tem
a responsabilidade de estado por um genocídio em curso contra os
uigures em violação à Convenção da ONU para a Prevenção e a
Repressão do Crime do Genocídio”.
De acordo com a
plataforma digital da rede de notícias americana CNN (9/3/2021),
o documento contou com a participação de uma equipe de 50
especialistas em direitos humanos que analisou milhares de
depoimentos de testemunhas oculares de exilados uigures e
documentos oficiais do governo chinês.
A assessora
jurídica do Raoul Wallenberg Center for Human Rights, Yonah
Diamond, que também contribuiu com o relatório, alerta para o
real entendimento sobre o que é genocídio. Ela explica que não é
preciso ter provas de assassinato em massa ou extermínio físico
de um povo, sendo suficiente ter evidências claras e
convincentes de que há uma intenção deliberada de destruir um
grupo tal como ele é. A ONG, sediada em Montreal, no Canadá,
leva o nome do diplomata sueco que salvou do genocídio nazista
cerca de 100 mil judeus na Hungria.
Instituída pela
Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1948, a convenção
destaca em seu artigo 2, como crime de genocídio, a intenção
deliberada, por parte do Estado, de eliminar grupos étnicos,
religiosos, nacionais ou raciais. Por sua vez, a China nega as
acusações de violação de direitos humanos e afirma “que os
centros são necessários para prevenir o extremismo religioso e o
terrorismo”. Intitulados por Pequim de “centros de treinamento
vocacional”, esses campos são descritos pelo governo como locais
de reeducação, visando a desradicalização em massa e com ensino
obrigatório de mandarim.
Desde 2014, mais de 1.400
centros foram instalados em Xinjiang e segundo relatos de
ex-presos uigures os detidos são submetidos à tortura
psicológica, lavagem cerebral e cultural, agressões sexuais,
privação de comida por longos períodos e confinamento solitário.
Em documentos oficiais pesquisados, o relatório aponta que os
uigures e outras minorias muçulmanas são chamados de “ervas
daninhas” e “tumores”.
Essa política estatal se
consolidou a partir de um ataque extremista praticado por
separatistas uigures, em 2014. Naquela ocasião, o presidente
chinês Xi Jinping visitou a região e, segundo documentos
revelados pelo jornal New York Times, determinou às autoridades
locais que combatessem o radicalismo “sem misericórdia”. A
região faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão e
autoridades chinesas alegam que os uigures têm ligações com o
grupo terrorista Al-Qaeda.
A reportagem da CNN informa
ainda que no penúltimo dia na presidência dos Estados Unidos, em
19 de janeiro, o governo de Donald Trump declarou que o governo
chinês estava cometendo genocídio em Xinjiang. Um mês depois, os
parlamentos da Holanda e do Canadá aprovaram moções contra
China. Também a União Europeia (UE) após ser criticada pelos
Estados Unidos por ser manter em silêncio em relação ao caso,
impôs sanções a quatro autoridades chinesas por envolvimento em
violações de direitos humanos na região. As medidas incluem
proibições de viagens a países da UE e o congelamento de ativos.
Relatos brutais
Majoritariamente muçulmanos, os
uigures chegam a 11 milhões em Xinjiang, região vizinha ao
Cazaquistão, berço das etnias cazaques. A rede britânica de
notícias BBC News ouviu o relato de mulheres uigures que foram
presas e passaram meses detidas nos chamados campos de
“reeducação”.
Já no início da reportagem, um aviso
incomum aos leitores: “Alerta: você pode considerar
perturbadores alguns dos detalhes desta reportagem.” Isso porque
são narradas histórias brutais de estupros, choques elétricos,
ingestão acentuada de remédios, tortura, confissões forçadas e
esterilização massiva. As ex-detentas, que atualmente residem em
outros países, também revelam que tiveram seus cabelos cortados
e eram obrigadas a cantar canções patrióticas e assistir
programas doutrinários da TV estatal (‘Uigures em campos de
reeducação na China relatam estupros sistemáticos’, em
5/2/2021).
Uma das presas, Tursunay Ziawudun, ficou nove
meses detida e depois de libertada fugiu para os Estados Unidos.
Ela conta que devidos aos abusos sexuais muitas mulheres se
tornam alcoólatras e têm problemas mentais. "Dizem que as
pessoas são libertadas, mas na minha opinião todos os que deixam
os campos estão acabados”, afirma. Devido à sucessão de
estupros, Ziawudun teve que retirar o útero.
Outros tipos
de violência contra os uigures também têm sido denunciados por
estudiosos e ativistas na mídia ocidental. O sociólogo italiano
Massimo Introvigne, autor de um livro sobre as perseguições
religiosas na China (‘Il libro nero della persecuzione religiosa
in Cina’), de 2019, denuncia que cópias do Alcorão têm sido
confiscadas e queimadas pela polícia em Xinjiang. Para fugir da
ação dos agentes policiais, livros de rezas são enterrados ou
mesmo colocados nos rios pelas vítimas, embrulhados em plástico,
na tentativa de evitar que sejam profanados.
Fundador do
Centro de Estudos sobre Novas Religiões (CESNUR, na sigla em
inglês), Introvigne lembra que em dezembro do ano passado (2020)
entrou em vigor um novo regulamento que limita com rigor a
peregrinação anual dos muçulmanos à Meca, com o estabelecimento
de cotas e a avaliação investigativa dos proponentes à
peregrinação. O documento editado pela “Administração Estatal de
Assuntos Religiosos” impõe um controle mais rígido às viagens.
Peregrinações “não oficiais”, sem o aval do governo chinês, são
consideradas atitudes criminosas e severamente punidas.