Se as fake news (notícias falsas) são um fenômeno recente,
as fake histories (histórias falsas) se perdem no tempo. Isso
porque de todas as ciências humanas, a história é a mais
indefinida em seus intentos, a mais limitada em seus meios,
aquela que menos admite métodos rigorosos e a que tem mais
dificuldade em superar seus erros e enganos.
A frase do
historiador Pierre Daunou tem mais de 200 anos e reflete séculos
de narrações tidas como verdadeiras, mas que efetivamente não
passam de versões mentirosas dos fatos, falsos testemunhos,
documentos forjados e criações históricas.
A história
em xeque
Sobre essa coleção de erros humanos em que
se apoia a historiografia, o historiador François Dosse, autor
de “História em Migalhas”, reconhece que a história ainda é
frequentemente considerada fonte de corrupção. “As mentiras são
mais fascinantes do que a verdade”, dizia Umberto Eco. “E nem
todas as verdades são para todos os ouvidos”. Para o escritor
italiano, “os jornais mentem, os historiadores mentem, a
televisão hoje mente”.
Também George Orwell, autor de
“1984” e “A Revolução dos Bichos”, era um cético em relação à
ciência histórica. Considerava que “em tempos de embustes
universais, falar a verdade é um ato revolucionário”.
Mas, em se tratando de um historiador, a busca pela verdade deve
ser a sua primeira e única obrigação. Isso porque a partir de
suas narrativas, indivíduos e povos poderão ser assolados por
vicissitudes e barbáries, “igualmente cometidas pelos brutos e
pelos civilizados, ignorantes e instruídos, cínicos e devotos,
egoístas e heróicos”. Vasculhar os escaninhos da história e não
se render às narrativas oficiais já é uma forma de combater esse
tipo de mazela milenar.
Caso Dreyfus
O caso
do capitão Dreyfus, ocorrido em 1894, é emblemático. Envolvido
em uma trama que o levou à prisão e a ser expulso das Forças
Armadas francesas, o militar foi vítima de uma fake history que
arruinou a sua vida pessoal e profissional.
Acusado de
espionagem a favor da Alemanha, ele foi julgado sumariamente por
alta traição e condenado ao degredo perpétuo na Ilha do Diabo,
na Guiana Francesa. Anos depois, comprovou-se que as provas
secretas contra Dreyfus eram um embuste. Ele recebeu o indulto
em 1899, mas somente em 1906 o julgamento espúrio foi cancelado.
Entretanto, se passou um século para que a sua inocência
fosse oficialmente reconhecida pelo exército da França. Isso se
deu em 1995, quando o general Jean-Louis Mourrut, chefe do
“Service Historique de l`Armée de Terre” (atual ‘Service
historique de la Défense’ – SHD) classificou, publicamente, o
caso Dreyfus de “uma conspiração militar, fundada parcialmente
em documento falso que resultou na deportação de um homem
inocente”.
O falso como verdadeiro
Com o
intuito de mostrar os procedimentos ardilosos de pessoas sem
escrúpulos que movidas pelo ódio e ambições políticas inventam
mentiras e as transformam em supostas verdades, Umberto Eco
escreveu “O Cemitério de Praga”, publicado em 2010.
Tendo
como base fatos e personagens verídicos que participaram da
elaboração e da disseminação de “Os Protocolos dos Sábios de
Sião”, o autor reconstrói o século 19 através de uma narração
polêmica que recebeu críticas do Vaticano e do rabinato de Roma.
Eco narra o nascimento e a evolução desse abjeto complô, criado
com a finalidade de atribuir aos judeus uma fictícia conspiração
para dominar o mundo.
Os falsos documentos forjados pela
polícia secreta do Czar Nicolau II, em 1897, foram utilizados
por Hitler em sua política de extermínio, incluindo-os em “Mein
Kampf”, apesar de o jornal britânico The Times, em 1921, já ter
desmascarado a farsa.
Ainda assim, o magnata Henry Ford
levou os Protocolos, na tradução inglesa, para os EUA,
publicando-os em forma de livro. Por sua vez, o rei Faisal, da
Arábia Saudita, costumava oferecer os Protocolos, em sua versão
árabe, às autoridades que visitavam o país.
Em uma de
suas entrevistas aos jornais italianos, Umberto Eco ressaltou o
perigo que se esconde nas chamadas “conspirações falsas”, pelo
seu alto grau de manipulação e dada à dificuldade em
desmenti-las. ”A característica de uma conspiração verdadeira é
que ela é invariavelmente descoberta”, analisa. “Hitler e o
nazismo propagaram a falsa conspiração dos judeus como
verdadeira e tiraram proveito dos Protocolos.”
O poder
da mentira
Mas, por que as pessoas ainda consomem
essa farsa? Será por ignorância? Por curiosidade? Os Protocolos,
afinal, seguem sendo oferecidos e vendidos em uma dezena de
idiomas, em formato de livro, com circulação livre na internet.
Juíza em Israel por mais de 30 anos, Hadassa Ben-Itto
investigou o embuste durante seis anos e em 1998 publicou “A
Força da Mentira”, traduzido para o português no ano passado.
“Escrevi esse livro como um desafio a todos aqueles que
inadvertidamente permitem que essa e outras mentiras similares
sejam espalhadas e provoquem danos contínuos”, explica.
Em sua opinião o conceito de “liberdade de expressão” não
deveria acobertar mentiras. “Uma mentira deliberada não é uma
ideia”, reforça. “Ela pode facilmente se transformar em uma arma
perigosa e como tal deve ser banida, assim como outras armas que
têm o potencial de causar assassínios em massa e destruição.”
Uma perspectiva diferente daquela defendida pela filósofa
Hannah Arendt que questionava o fato de os pesquisadores
centrarem o foco, basicamente, no processo de falsificação. Na
sua percepção, o mais importante, nos tempos atuais, seria
descobrir o porquê do reiterado interesse das pessoas por uma
declarada mentira, já devidamente desmistificada, cujo poder de
perenidade surpreende e assusta.