01/05/2015
Ano 19 - Número 938
ARQUIVO
SHEILA SACKS
Venha nos
visitar no Facebook
|
Sheila Sacks
Memórias de
horror: as imagens que o mundo não viu |
|
Forças aliadas arquivaram
filme de 1945 que documentou as atrocidades nazistas
Para o jornalista Elio Gaspari o mundo só começou a encarar
o Holocausto a partir dos anos 1960, com o julgamento público de Adolf
Eichman em Tel-Aviv. De fato, a captura do oficial nazista em Buenos
Aires por um comando israelense, seu transporte clandestino para a Terra
Santa, as audiências na Suprema Corte e a sentença por enforcamento, em
1962, renderam milhares de reportagens, centenas de livros e ensaios,
questionamentos políticos, filmes e documentários.
Entretanto,
essa revelação histórica - a do mais brutal massacre institucional de
cidadãos promovido por um governo em solo europeu – poderia ter sido
antecipada e exibida ao mundo, ainda em 1945, caso as autoridades
britânicas e americanas não tivessem arquivado em uma repartição pública
militar os cinco cilindros de filme que registraram em tempo real o
horror dos campos de concentração alemães.
Cenário macabro
A filmagem feita por cinegrafistas do exército aliado acompanha a
libertação de 11 campos de concentração nazistas – de um total de 1.094
já documentados - a partir de abril de 1945. Entre eles os campos de
Bergen-Belsen, com 70 mil mortos (onde Anne Frank morreu), Majdanek (80
mil), Dachau (30 mil) Buchenwald (56 mil), Ebensee (20 mil), Matthausen
(150 mil) e Auschwitz-Birkenau (1,1 milhão). As imagens aéreas mostram
vastas planícies ocupadas por fileiras de barracões cercadas por arame
farpado e guaritas. No solo, cadáveres sem roupa se misturam aos doentes
e moribundos que agonizam sob a indiferença daqueles que ainda reúnem
forças para disputar algum resto de comida. Um cenário macabro onde
proliferam a imundície, as epidemias e a fome.
O filme também
mostra as equipes nazistas – homens e mulheres - que atuavam nos campos
da morte. Sob a ordem do exército aliado, esses soldados alemães cavam
imensos buracos onde são jogados os milhares de cadáveres que jazem
insepultos. Todos esquálidos e desnudos. O material catalogado sob a
inscrição F3080 permaneceu abandonado nas prateleiras de um departamento
do antigo ministério da Guerra (hoje, ministério da Defesa) e em 1952
foi transferido para o “Imperial War Museum” – IWM (Museu Imperial da
Guerra) que o registrou sob o título de “Memory of the Camps” (Memória
dos Campos). Ali ficou enterrado e esquecido por décadas.
Culpa
coletiva
Planejado para ser um documento histórico e didático que
funcionaria como uma prova real da existência dos campos e das práticas
abomináveis exercidas pelo regime nazista, o projeto do comando aliado
ficou sob a responsabilidade de Sidney Bernstein (1899-1993), chefe da
seção de cinema da divisão de Informação britânica, que chamou Richard
Crossman para ajudá-lo no roteiro. Crossman foi um dos primeiros
oficiais britânicos a pisarem no campo de Dachau e posteriormente entrou
para a política, tornando-se líder do Partido Trabalhista e ministro do
Trabalho. Com apoio dos colegas do serviço americano de informação,
Bernstein recrutou ainda o diretor de cinema Alfred Hitchcock
(1899-1980), que trabalhava em Hollywood, para supervisionar o
documentário.
Mas, em 9 de julho de 1945, menos de três meses
após o início efetivo do projeto, os americanos retiram a sua
participação no filme. Em setembro de 1945, com o documentário
inacabado, as autoridades britânicas resolvem interromper o trabalho. O
comando militar, àquela altura, estava empenhado em melhorar as relações
anglo-germânicas, conter uma possível expansão soviética e não dar
publicidade à vitimização dos judeus que lutavam por uma pátria na terra
de Israel sob mandato britânico. A exibição do filme iria incutir uma
culpa coletiva sobre a população alemã, o que segundo as autoridades
aliadas aumentaria ainda mais o caos e a desmoralização de uma nação
derrotada.
Nas imagens engavetadas, moradores das cidades e vilas
próximas aos campos, convocados pelo exército aliado, visitam esses
locais em plena efervescência de uma indescritível e absurda tragédia
humana. As câmeras registram o constrangimento e a aparente vergonha dos
alemães diante daquela multidão de seres desfigurados, reduzidos ao
nível mais baixo de miséria e humilhação. Um pesadelo inimaginável que
se sucedia a poucos quilômetros de suas casas, sem que ninguém soltasse
um suspiro de misericórdia. Vizinhos das indústrias da morte, os
moradores são forçados a encarar, naquela primavera de 1945, a máquina
genocida que amparada na indiferença e pouco caso de seus cidadãos
exterminou milhões de crianças, idosos e cidadãos civis inocentes.
O historiador Geoffrey Megargee, do Museu do Holocausto de
Washington, afirma que, de 1933 a 1945, o regime nazista implantou uma
rede de trabalho escravo que funcionou em 42.500 locais na Alemanha e
nos países ocupados. Foram 1.094 campos de concentração e 1.150 guetos,
além de milhares de fábricas e outros centros de trabalho forçado, de
tortura e de morte.
O mapeamento e o censo completo desses
locais irão compor uma enciclopédia que deverá estar concluída nos
próximos anos. “A existência de campos de concentração não era segredo e
dada a dimensão dos números é quase impossível acreditar que os alemães
não tinham conhecimento do sistema de matança de Hitler”, pondera o
pesquisador. “Quando você tem dezenas de milhares de acampamentos e
milhões de trabalhadores forçados, prisioneiros de guerra e prisioneiros
de campos de concentração em todos os lugares, todos fazendo todo o tipo
de trabalho que se possa imaginar, é muito difícil dizer que você não
sabia de nada desse sistema”, completa.
Exibição na TV
Em
7 de maio de 1985, após 40 anos de um esquecimento premeditado e
moralmente injustificável, o documentário em estado bruto é apresentado
na TV americana. Pesquisadores do premiado programa de jornalismo
investigativo “Frontline” - focado em temas políticos e internacionais -
haviam encontrado em um cofre do IWM, em Londres, os cinco cilindros de
filme e mais um rolo sem data, com imagens não editadas, um roteiro
datilografado para narração e uma lista de termos que corresponderia às
imagens editadas (um sexto carretel de filme que mostrava a libertação
dos campos de Auschwitz e Majdanek teria sido levado para Moscou por
cinegrafistas soviéticos).
O ator britânico Trevor Howard
(1913-1988) é escalado para a narração das imagens que se mantém fiel ao
roteiro original. Com o mesmo título registrado pelo museu, “Memory of
the Camps” é exibido pelo canal aberto PBS (Public Broadcasting
Service), dos Estados Unidos, uma emissora pública voltada para
programas culturais e educativos.
Acerca do filme, um dos
cinegrafistas responsáveis pelas imagens chocantes registradas no campo
de Bergen-Belsen foi o sargento do exército britânico, Mike Lewis, que
não tinha ideia do que iria encontrar naquela tarde de 15 de abril de
1945, ao cruzar os portões do campo recém- libertado. Tinham dito que
ele iria filmar um acampamento de prisioneiros, de criminosos. Anos
depois, sua filha, Helen, conta a saga do pai: “Ele entrou pelos portões
de arame farpado e se deparou com um terreno baldio cheio de corpos de
pessoas mortas, em sua maioria nuas, ao lado de outras morrendo de fome.
Eram em torno de 10 mil pessoas que jaziam insepultas e outras 13 mil
que morriam de desnutrição e doenças.”
Helen Lewis diz que seu
pai permaneceu por 10 dias filmando as atrocidades nazistas em Belsen,
apesar da epidemia de tifo que assustava a todos. “Foi um trabalho de
registro histórico que inclusive foi usado em um dos primeiros
julgamentos de crimes de guerra.” De fato, cenas do documentário foram
apresentadas como prova documental no julgamento de Josef Kramer, o
chefe do campo de Bergen-Belsen, cuja imagem está presente no filme.
Conhecido como a besta de Belsen, Kramer também foi responsável pelo
controle das câmaras de gás de Auschwitz. Ele foi condenado por uma
corte militar britânica e enforcado em 13 de dezembro de 1945.
Em
Berlim
Um ano antes, em 1984, por ocasião do 34º Festival de
Cinema de Berlim, as imagens de “Memory of the Camps” foram mostradas à
parte da competição oficial. O documentário sem som foi precedido pela
leitura do texto dos editores originais. Após os 60 minutos de filme
houve um debate acompanhado pela rede americana de TV NBC (National
Broadcasting Company). O tema abordava a possibilidade de exibição do
documentário em toda a Alemanha Ocidental (o muro de Berlim que separava
as duas Alemanhas - a Oriental sob o governo soviético e a Ocidental,
alinhada com os Estados Unidos - só foi derrubado em novembro de 1989).
Porém, o assunto não foi adiante em termos práticos e os debatedores e a
plateia se mostraram evasivos.
O crítico de cinema Harlan Kennedy
que escrevia para a revista americana “Film Comment” e estava presente
ao encontro, comentou que o único traço de realidade sobre o que
acontecia no país em relação ao Holocausto veio através da observação de
um estudante. “Ele disse que nunca se falava sobre essas atrocidades na
escola. E que havia participado de uma visita com seus colegas a
Bergen-Belsen, mas a história e o horror do lugar foram apresentados de
forma bem abreviada. Disse ainda que nunca tinha visto nada parecido com
as imagens do filme, o que fez o mediador pular da cadeira e responder
que não havia esse tipo de material disponível na Alemanha.”
Imagens digitalizadas
Em 2015, três décadas após essas
apresentações que tiveram divulgação restrita, o governo britânico
resolve marcar os 70 anos da libertação dos campos nazistas e o fim da
Segunda Grande Guerra (1939-1945) com o documentário recuperado sob o
título original: “German Concentrations Camps Factual Survey” (Inspeção
local dos campos de concentração alemães, em tradução livre).
Pesquisadores do IWM onde o filme esteve abandonado por mais de 60 anos
se empenharam no processo de digitalização das imagens e de outros
acabamentos, como a inclusão de som e áudio e a reabilitação do rolo
dado como perdido.
Contudo, permanecem os questionamentos sobre a
decisão das forças aliadas de desistir de concluir o documentário, em
1945, e deixá-lo enterrado por tanto tempo, longe do olhar e da
consciência do mundo. A filha de Sidney Bernstein, o idealizador do
filme, revelou em entrevista ao jornal israelense “Haaretz” que até
1984-85, quando as imagens foram liberadas, ela também não tinha
conhecimento da existência do material. Cineasta e autora de dezenas de
curtas-metragens, Jane Wells confessou que foi uma surpresa completa
saber que o pai esteve em Bergen-Belsen. Realmente, Bernstein
impressionado com o relato escabroso do correspondente britânico da
rádio BBC, Richard Dimbleby, sobre o campo de Belsen, foi ao local e
decidiu retratar os crimes dos nazistas de tal maneira que seria
impossível alguém negar que aquilo existiu.
Em 1984, aos 85 anos,
Bernstein lamentou que o documentário não se concluísse. “Minhas
instruções eram para filmar tudo, o que provaria que realmente aquilo
aconteceu. Eu queria provar que tinha visto porque a maioria das pessoas
iria negar.” Sobre a presença de Hitchcock no filme, acredita-se que foi
importante para delinear o roteiro, enfatizando quão perto estavam os
campos de concentração das aldeias e cidades, onde civis alemães viveram
durante a guerra. O cineasta queria planos longos, sem cortes, para que
o documentário transmitisse credibilidade e assim se tornar irrefutável
a possíveis controvérsias quanto ao extermínio sistemático de milhões de
pessoas naquelas fábricas de mortes.
“Memory” é tema de filme
Ressuscitado da censura e do ostracismo, o documentário de 1945
agora está sendo apresentado em museus e centros de cultura a uma
geração que na maioria das vezes dá de ombros para o que aconteceu
porque não houve um processo sistemático de conscientização coletiva
sobre o tema que ficou restrito às teias literárias, memoriais e
artísticas. Mas, ainda assim suas imagens surpreendem pelo extremo nível
de desumanidade e a brutalidade que registram.
Ciente e
sensibilizado pelo trabalho de restauração do documentário, o
antropólogo e documentarista inglês Andre Singer partiu para a
realização de um filme tendo como base o “Memory of the Camps”. Autor de
documentários premiados de TV e ex-diretor do “Discovery Channel”, na
Europa, Singer revive a história de alguns sobreviventes, apresentando
imagens do filme original, depoimentos de soldados e cinegrafistas que
estiveram nos campos, e a visão de Bernstein e Hitchcock. Apresentado no
Festival de Berlim em 2014, o filme "Night Will Fall" (em alusão à
citação do roteiro original: ‘A menos que o mundo aprenda a lição que
essas imagens ensinam, a noite vai cair’) foi exibido na TV, no início
de 2015, em mais de 15 países, durante a semana de celebração do Dia
Internacional do Holocausto (27 de janeiro).
Na Alemanha, onde o
filme teve estreia mundial, o historiador Heinrich August Winkler
admitiu que “o Holocausto é o fato central da história alemã do século
20”. Também afirmou que a população da Alemanha levou muitas décadas
para reconhecer o Holocausto e que não se pode colocar um ponto final
diante desses acontecimentos. Professor emérito da Universidade
Humboldt, de Berlim, ele discursou no parlamento alemão na cerimônia dos
70 anos do fim da Segunda Grande Guerra, em sessão especial realizada em
8 de maio de 2015. Para uma plateia de autoridades, o historiador
lembrou que a ascensão política de Hitler foi o triunfo do mito sobre a
razão e advertiu que a xenofobia e o antissemitismo atuais presentes na
vida das sociedades alimentam e nutrem esses mitos, que na verdade nunca
desapareceram. Continuam à espreita, esperando a sua hora para agir.
Mensagens sobre o texto podem ser enviadas à autora, no email
ssacks@oi.com.br
(01 de junho,2015)
CooJornal nº 938
Sheila Sacks é
jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
http://sheilasacks.blogspot.com
Direitos Reservados. É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação,
eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.
|
|