“Posso
resistir a tudo, exceto à tentação.” (Oscar Wilde, escritor e dramaturgo
irlandês do século 19)
Nascido na Alemanha do após guerra,
Wilhelm Dietl era um jornalista experiente e respeitado, com vários livros
no currículo, quando em 2005 descobriu-se que ele havia sido um agente do
Serviço de Inteligência Federal (BDN, na sigla em alemão) por mais de uma
década. Especialista em geopolítica do Oriente Médio, autor de reportagens
investigativas em zonas de conflito, notadamente em países como Irã, Iraque,
Afeganistão, Paquistão, Líbia, Líbano, Israel, Egito e Síria, Dietl contava
com espaços preciosos para as sua matérias em importantes veículos de
comunicação, como os semanários Stern e Focus.
Mas tudo mudou quando seu nome apareceu em um relatório do BDN como sendo o
de um espião remunerado de codinome Dali que exerceu a função de informante
do órgão no período de 1982 a 1993.
Envolvido no escândalo de espionagem que
mobilizou a mídia e a opinião pública alemãs, resultando em uma comissão
parlamentar de inquérito, Dietl sempre negou que espionava ou fornecia
informações contra os seus colegas de profissão, apesar de admitir que por
onze anos foi um agente pago do serviço secreto alemão. Ele revela que seu
trabalho consistia em coletar informações e recrutar agentes para o BDN,
principalmente na região do Oriente Médio, e por conta disso ele se arriscou
e enfrentou situações de perigo.
Em 2007, em uma longa entrevista ao jornalista
israelense Yossi Melman, do jornal
Haaretz, Dietl disse que foi
cooptado para trabalhar no BDN por conta de um trabalho jornalístico que
realizava em 1982 sobre o Afeganistão. Depois de um encontro com o porta-voz
da agência em um subúrbio de Munique, onde fica a sede do BDN, ele foi
convidado a trabalhar para o órgão colhendo informações e elaborando
relatórios, mantendo, porém, a sua rotina de jornalista especializado em
questões de geopolítica.
Dietl ganhava cerca de mil marcos (em torno R$
1.500,00) por relatório de dez páginas, além de ter as suas passagens aéreas
e as diárias de hotéis pagas a cada missão que realizava, que podia ser em
Paris, entrevistando o presidente deposto da Argélia, Ahmed Ben Bella
(1918-2012), ou em Damasco, conversando com o ministro de Defesa da Síria,
Mustafa Tlass, que exerceu o cargo de 1972 a 2004. O jornalista alemão
também revelou que recrutou para o BDN dois agentes de um país árabe
fronteiriço a Israel que lhe forneceram uma lista de terroristas da
organização extremista Fatah-CR (Conselho Revolucionário do Fatah),
comandada por Abu Nidal (1937-2002), responsável por dezenas de atentados,
mortes e sequestros em 20 países nas décadas de 1970 e 1980.
Experiência como correspondente
Anos antes de entrar para o serviço secreto, o
jornalista alemão já tinha estado no Irã, acompanhando a Revolução Islâmica,
e se encontrado com o aiatolá Khomeini. No Líbano, falou com o presidente da
Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat (1929-2004),
e com membros da organização fundamentalista Hezbollah. Durante a guerra do
Afeganistão contra a ocupação soviética (1979-1989), Dietl posou ao lado do
comandante rebelde Gulbuddin Hekmatyar, que se tornou primeiro-ministro do
país na década de 1990 e depois se aliou ao movimento fundamentalista
islâmico Taliban e à rede terrorista al-Qaida.
Essas e outras incursões de Dietl pelo mundo
muçulmano em ebulição, focalizadas em primeira mão nas reportagens que
traziam os bastidores dos fatos e as palavras dos principais líderes
envolvidos – deixando entrever a existência de uma agenda pessoal de
contatos e fontes de informação superlativas –, provavelmente foram
determinantes para o convite do BDN ao jornalista. Ele afirma que no início
hesitou, mas que depois concordou com a proposta, imaginando que estaria
servindo ao país.
O trabalho como jornalista funcionou como
excelente cobertura, segundo Dietl, facilitando o seu acesso às informações
e às pessoas, como no caso do jornalista sírio Louis Fares, amigo pessoal do
presidente Hafez al-Assad (1930-2000). O político sírio que governou o país
por quase 30 anos, pai do atual presidente Bashar al-Assad, enviou Fares em
missões clandestinas à França e Dietl dá a entender que essa amizade e de
outras fontes sírias lhe renderam importantes documentos sigilosos, os quais
enviava para seus contatos na Alemanha.
No Líbano, Dietl manteve contato com fontes
que se relacionavam com militantes do grupo Hezbollah e da Organização para
Libertação da Palestina, a OLP. Ele conta que em Beirute ouviu relatos
dessas fontes sobre o assassinato de Ali Hassan Salameh, um dos líderes da
organização Setembro Negro, levado a termo por uma agente do Mossad, o
serviço secreto israelense. Chefe operacional do atentado que matou onze
atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972, Salameh foi morto em
1979, enquanto dirigia em uma rua de Beirute, após uma caçada que durou sete
anos. Coube à agente conhecida como “Erica Chambers” acionar por controle
remoto a bomba instalada na viatura. Dietl confessa que ficou fascinado pela
história dessa agente secreta, inglesa de nascimento, que ingressou no
Mossad aos 21 anos, quando estudava na Universidade Hebraica de Jerusalém.
De posse de informações sigilosas obtidas com
integrantes da OLP que realizaram investigações sobre os antecedentes do
atentado, refazendo os rastros de “Chambers” em endereços na Alemanha e em
Genebra, Dietl escreveu em 1993 o livro Die
Agentin des Mossad – Operation Roter Prinz (A
Agente do Mossad – Operação Príncipe Vermelho, em tradução livre). Mas anos
antes esses dados já tinham sido repassados pelo jornalista ao serviço
secreto alemão. Em outra operação no Líbano, ainda acobertado pela atividade
de jornalista, Dietl conseguiu obter com agentes e fontes do Hezbollah
documentos sobre os vários sequestros de diplomatas e outros funcionários
ocidentais levados a cabo pelo grupo na década de 1980.
Espiões, inteligência e geopolítica
Durante o período em que foi agente secreto,
Dietl amealhou o equivalente a cerca de 600 mil marcos (algo como R$ 1,8
milhão). Quando se desligou do BDN por divergências com o órgão, ele conta
que até sentiu alívio, pois admite que estava com os “nervos em frangalhos”.
Ele se reunia com terroristas, comandantes militares, representantes de
serviços de inteligência e políticos na condição de correspondente, com a
incumbência de escrever reportagens sobre os acontecimentos no Oriente
Médio. Entretanto, o ofício paralelo de espionar em cidades como Teerã, Amã
ou Damasco era desgastante do ponto de vista psicológico, já que Dietl se
utilizava do recurso do suborno envolvendo funcionários oficiais para
conseguir documentos e material de interesse da agência alemã.
No início de 1982, chegou a ser detido pelas
forças de segurança sírias na cidade de Hama, ao norte de Damasco, durante
os sangrentos confrontos com o grupo da Irmandade Muçulmana, que se rebelou
contra o governo central. Mas conseguiu escapar mostrando a seus
interrogadores a gravação da entrevista que teve com o ministro de
Informações do país e mentindo acerca de um suposto encontro agendado com o
presidente Hafez Assad (que não pode ser checado porque o serviço de
telefonia estava interrompido). Esse episódio na Síria e mais as constantes
viagens de Dietl ao Oriente Médio em função de pesquisas que realizava sobre
as organizações secretas do Islã para o livro Holy
War (Guerra
Santa), publicado em 1983, também foram decisivas para a sua
proximidade com os oficiais do BDN. “Estou orgulhoso do que fiz”, declara
Dietl. “Não tenho que pedir desculpas. Eu agi acreditando em valores e
ideais; denunciei terroristas perigosos, abortando operações e salvando
vidas humanas.”
Falando sobre a sua contratação pelo serviço
secreto alemão em 1982, Dietl admite que os tempos mudaram. “Hoje, as
organização de espionagem enviam os seus agentes a zonas de conflito sob o
disfarce de jornalistas, o que não ocorreu comigo, pois eu era um jornalista
de fato”, afirma. Suas memórias sobre esse período podem ser conferidas no
livro Deckname Dali: als agente des BND im Nachen Osten (Codinome
Dali: Relatórios de um agente do BDN, em tradução livre), lançado em 2007,
dois anos após o seu segredo vir à tona. A esse respeito, o
ex-correspondente da revista Time David
Halevy não se mostra surpreendido com a proximidade de jornalistas com as
agências de inteligência. Amigo de longa data de Dietl, Halevy nasceu em
Jerusalém e por mais de quinze anos trabalhou na revista americana. Para
ele, a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é muito turva. “O
jornalista pode se achegar das fontes e pagar pelas informações sem levantar
suspeitas”, avalia (“Cover Story”, Haaeretz
Magazin, 14/8/2007).
Autor do livro investigativo Inside
the P.L.O. (Dentro da OLP, em tradução livre), lançado em 1990 e
escrito em parceria com o americano Neil C. Livingstone, o israelense
explica que o jornalista que cobre assuntos que envolvem agências de
espionagem está sempre de alguma forma negociando informações. “Algumas
reportagens são melhores que muitos relatórios de inteligência”, enfatiza.
Halevy que colheu material para o seu livro em seis agências de inteligência
(três do Ocidente e três do Oriente Médio) preservou as identidades das
mesmas, apesar de questionado por essa atitude. No livro está a informação
citada como oriunda de um serviço secreto árabe sobre os 6 a 8 bilhões de
dólares que Arafat controlava sozinho por meio de empresas de fachada e
fundos em bancos espalhados pelo mundo, inclusive nos Estados Unidos. Um
tema que Dietl domina e volta à carga em 2010 ao publicar Shadow
Armies: The Secret Services of the Islamic World (Exércitos
da Sombra: Os Serviços Secretos do Mundo Islâmico, em tradução livre),
focalizando as atividades de espionagem clandestina do Irã dos aiatolás
(dentro e fora do país), Iraque, Egito, Líbia e Síria, assim como as
ligações financeiras dessas organizações com os grupos armados Hezbollah e
Hamas.
É o seu décimo oitavo livro e, como a maioria,
versando sobre espiões, agências de inteligência e a geopolítica de guerra
do Oriente Médio. Uma experiência que já o havia levado a escrever, em 1997,
o livro Operation Eichmann: Pursuit and Capture (Operação
Eichmann: Perseguição e Captura), em parceria com o agente do Shin Bet (o
serviço se segurança de Israel) Zvi Aharoni (1921-2012). A obra detalha
aspectos da localização e captura do oficial nazista Adolf Eichmann na
Argentina, em 1960.
Amizade e segredos
No Brasil, o jornalista Claudio Tognolli,
diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji),
professor da USP e autor de livros polêmicos (Mídia,
Máfia e Rock and Roll; 50
anos a mil; Assassinato
de reputações, entre outros), é incisivo ao traduzir o
envolvimento do jornalismo com o ambiente da inteligência e espionagem.
“Todo mundo que cobre inteligência tem algum amigo que trabalhou ou trabalha
para CIA ou pra KGB.” Ex-correspondente da Folha
de S.Paulo nos
Estados Unidos, Tognolli também trabalhou na revista Veja.
Em entrevista ao blog “Brasil no mundo”, de Fábio Pereira Ribeiro
(Exame.com, em 20.03.2014), o jornalista fala de sua amizade com o delegado
paulista Mauro Marcelo de Lima e Silva, formado no FBI, e nomeado por Lula,
em 2004, para comandar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
Por conta dessa amizade, em 2006 ele foi
convocado por Mauro para uma missão humanitária no Iraque, em parceria com a
CIA, que acabou não se consumando por motivos pessoais (um colega do New
York Times o alertou para o fato de que os sunitas o matariam ao
verem seus braços e costas tatuados em hebraico). Ainda de acordo com
Tognolli, antes de se tornar diretor-geral da Abin Mauro Marcelo era a sua
melhor fonte, além de um grande amigo. “Mauro me contava segredos
inacreditáveis”, relembra. “Eu sempre os enterrava. Mas repetia a ele:
‘Doutor, não me conta isso porque em jornalismo eu acato a frase do Oscar
Wilde: ‘Posso resistir a tudo, exceto à tentação’.”
Uma frase que se aplica de alguma forma à
maioria das reportagens investigativas que se apoiam em documentos e dados
de fontes sigilosas, na maioria das vezes obtidos no interior dos órgãos de
governo. Um caminho sinuoso onde a amizade e a confiança mútuas flexibilizam
regras e conceitos. Recentemente, O
Globo publicou
uma reportagem investigativa do jornalista José Casado acerca da conexão
islâmica no Cone Sul que prima pelos detalhes das informações. A reportagem
reconta os preparativos para os atentados à embaixada de Israel em Buenos
Aires e ao prédio da Amia (Associação Mutual Israelita da Argentina), em
1992 e 1994. Casado expõe a fragilidade de atuação dos órgãos governamentais
na Tríplice Fronteira e “a relutância dos governos da América do Sul em
admitir a possibilidade de conexão regional com a novidade do terrorismo
político-religioso em escala global” (“A Conexão Brasil no Extremismo
Islâmico”, em 13/07/2014). Uma reportagem extraordinária, de leitura
imperdível, melhor que qualquer relatório “confidencial” da CIA, reforçando
a sensação de que a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é uma
questão de opinião.
Em 02.09.2014