A captura
do criminoso de guerra nazista, em 1960, ainda atrai jornalistas e
pesquisadores que vasculham documentos secretos sobre o episódio
Mais de meio século após o premier David Ben Gurion (1886-1973) anunciar ao
mundo, em 23 de maio de 1960, que o oficial nazista Adolf Eichmann (1906-1962)
- o responsável pela logística da chamada “Solução Final” que exterminou seis
milhões de judeus na 2ª Grande Guerra - tinha sido localizado e já se
encontrava em Israel para ser julgado, um personagem já falecido que ajudou a
identificar o criminoso em Buenos Aires foi homenageado pela chancelaria
israelense.
A cerimônia discreta, realizada em uma dependência da Daia (Delegação das
Associações Israelitas Argentinas), ocorreu em 13 de agosto de 2012, e o então
embaixador de Israel na Argentina, Daniel Gazit, já se despedindo do cargo,
fez um agradecimento público à memória do imigrante alemão Lothar Hermann
(1901-1974), que nos idos de 1950 se empenhou em alertar às autoridades alemãs
e israelenses sobre a presença de Eichmann em solo portenho.
A homenagem a Hermann não seria cabível há alguns anos porque seu papel no
processo da descoberta do criminoso de guerra não recebeu os holofotes da
mídia. Em 1961, com Eichmann sendo julgado em Israel, ele chegou a ser
confundido com o médico nazista Josef Mengele (1911-1979) - apelidado de “Anjo
da Morte” por seus experimentos com seres humanos -, que se escondeu primeiro
na Argentina e depois no Brasil. Hermann ficou detido por duas semanas na
prisão de Coronel Suárez, cidade onde vivia, a 500 quilômetros da capital, até
o mal-entendido ser desfeito.
Em 2009, com a publicação do livro “Hunting Eichmann“ (“Caçando Eichman: como
um grupo de sobreviventes e uma agência de espionagem jovem capturou o nazista
mais procurado do mundo”, no título da edição brasileira), do jornalista
americano Neal Bascom, o papel de Hermann na descoberta do fugitivo recebeu o
devido espaço. De acordo com Bascom, Hermann foi ajudado pela filha Silvia no
processo de identificação de Eichmann. Ambos viajaram dez horas de trem, de
Coronel Suárez a Buenos Aires, onde a jovem de deslocou sozinha até a casa do
nazista, no bairro de Olivos. Um ano após o encontro, preocupado com a
segurança da filha, Hermann a envia aos Estados Unidos. Desde então, ela nunca
mais retornou à Argentina e manteve o seu endereço em segredo.
Foco no Mossad
Assim como Hermann, houve outras pessoas que de alguma forma contribuíram para
a operacionalidade da captura de Eichmann e que se mantiveram apagadas ao
olhar nem sempre dimensional da mídia. Durante décadas, a curiosidade e o foco
dos meios de comunicação estiveram voltados essencialmente para os agentes do
Mossad (instituto, em hebraico), o serviço secreto israelense que respondeu
diretamente pela retirada clandestina do nazista da Argentina. Para isso
contribuiu largamente o êxito de uma ação ousada e arriscada levada a efeito
por membros de uma agência de inteligência sem o lastro e a importância de
suas congêneres europeias e americana.
Consultora da exposição “Operação Final: A história da captura de Eichmann”,
que ocupou por seis meses, em 2012, o Museu do Povo Judeu (Beit Hatfutsot -
Casa da Diáspora), em Tel Aviv, a historiadora Neomi Izhar explica que o
Mossad à época do sequestro de Eichmann era uma organização pequena,
estabelecida em 1949, carente de recursos e de experiência. “Capturar
criminosos nazistas não estava no topo da agenda do estado de Israel em seus
primeiros dias porque o país estava ocupado em se recuperar da guerra da
Independência, se estabelecer economicamente e absorver a grande leva de
imigração, principalmente de sobreviventes do Holocausto”, assinala.
A mostra idealizada sob os auspícios do Mossad reuniu mais de 100 documentos,
registros, fotografias, vídeos e peças de equipamentos usados durante o
processo de identificação e captura de Eichmann, até então sigilosos e jamais
expostos em público. E também trouxe à luz 67 nomes, a maioria desconhecidos,
de agentes e voluntários que se envolveram em uma empreitada inédita cujo
maior resultado foi revelar às sociedades organizadas a tragédia do Holocausto
ou Shoah (catástrofe, aniquilação, em hebraico). “Em Nuremberg, na Alemanha,
os criminosos nazistas foram julgados por crimes de guerra (1945-1946)”,
lembra a historiadora. “Já o julgamento de Eichmann, em Israel (1961-1962),
expôs ao mundo todos os horrores da máquina nazista.”
História incompleta
Por sua vez, o curador da exposição e representante do Mossad, A. Avner,
admitiu que a listagem pode estar incompleta e que surgindo novos nomes estes
serão acrescidos. “Toda a história da captura de Eichmann ainda precisa ser
contada”, pondera. “A cada dia descobrimos novos detalhes da operação.” Um
exemplo é o caso do general Yitzhak Elron, de 88 anos, que ao visitar a
exposição revelou a Avner que participou da captura de Eichmann. Adido das
Forças de Defesa de Israel na Argentina à época, Elron e sua esposa Sara
faziam serviço de vigilância perto da casa de Eichmann, fingindo ser um casal
de namorados.
Um fato que merece ressalva é que setenta por cento dos envolvidos com a
captura de Eichmann eram sobreviventes da Shoah, originários da Europa. Um dos
personagens que tiveram papel relevante na denúncia de que o criminoso nazista
vivia na Argentina sob o falso nome de “Ricardo Klement” foi um juiz alemão,
Fritz Bauer (1903-1968), que por ser judeu fugiu da Alemanha quando Hitler
assumiu o poder. Finda a guerra, ele retornou ao país e na década de 1960,
investido na função de promotor-geral do estado de Hesse (1956), instala em
Frankfurt o chamado “Julgamento de Auschwitz” que levou 22 ex-guardas daquele
campo da morte para o banco dos réus.
Em 1957, atuando para que criminosos nazistas fossem localizados e levados a
julgamentos, Bauer recebe a informação da presença de Eichmann em Buenos Aires
através de Lothar Hermann, um alemão cego de um olho que vive na Argentina.
Apesar de afirmar que era meio judeu, fugitivo do campo de concentração de
Dachau e que ansiava por castigar Eichmann, sua própria filha Silvia, de mãe
católica, desconhecia esses fatos. A jovem, de 14 anos, frequentava a
comunidade alemã de Buenos Aires, no bairro de Olivos, e conheceu um dos
filhos de Eichmann, Klaus, de 18 anos, em 1954. O rapaz, o mais velho de três
irmãos, ostentava tranquilamente o sobrenome do pai e ainda se gabava dos
feitos do nazista.
A persistência de Bauer em avisar diretamente às autoridades israelenses sobre
o paradeiro de Eichmann foi essencial ao êxito da missão. Ele manteve contato
com o diretor adjunto do Mossad, Shlomo Cohen Abarbanel (1921-1984), e a
partir de 1959 acionou o procurador-geral de Israel, Haim Cohen (1911-2002),
irmão de Shlomo (ambos nascidos na Alemanha), posteriormente alçado à
presidência da Suprema Corte. Em 1961, Haim escusou-se de presidir o
julgamento de Echmann, alegando ser contra a pena de morte. Eichman foi
condenado por genocídio e crimes contra a humanidade, sendo enforcado na
prisão de Ramla, perto de Tel Aviv, em 1º de junho de 1962. Foi a única vez
que o governo de Israel aplicou a pena de morte.
Buscando nazistas
Outra figura importante nesse intricado enredo foi Tuviah Friedman
(1922-2011), polonês que perdeu toda a família, à exceção de uma irmã, no
campo de extermínio de Treblinka. Após a guerra, ele trabalhou em Viena com
Simon Wiesenthal (1908-2005) e ajudou a capturar mais de 250 criminosos
nazistas. Em 1952, ele instala em Haifa o instituto de documentação e
investigação de crimes de guerra e prossegue em Israel o trabalho que
realizava com Wiesenthal.
Na busca por Eichmann – que o levou até a cidade de Linz, na Áustria, onde o
pai do ex-oficial tinha uma loja de artigos elétricos -, Friedman oferece, em
1958, uma recompensa de 10 mil dólares por pistas do paradeiro de Eichmann.
Pouco tempo depois recebe uma carta de Lothar Hermann, da Argentina, o mesmo
que já havia entrado em contato com Fritz Bauer, garantindo ter informações
exatas e detalhadas sobre Eichmann. Friedman alerta as autoridades israelenses
e repassa os dados obtidos através de sua correspondência com Hermann.
Dois anos depois, com Eichmann preso em Israel e sem ter os 10 mil dólares
para pagar pelas informações que se comprovaram verdadeiras, Friedman apela ao
governo israelense que somente faz o repasse da quantia a Hermann em 1971, na
administração da primeira-ministra Golda Meir (1898-1978). Em seu livro de
memórias, “The Hunter” (O Caçador), publicado em 1961, Friedman conta que
pesquisou milhares de documentos e entrevistou centenas de sobreviventes atrás
do paradeiro de Eichmann. Mas a imagem do nazista só se materializou quando
uma foto foi confiscada da casa de uma antiga namorada de Eichmann.
Identidades sob sigilo
À frente da operação de captura de Eichmann, o diretor do Mossad, Isser Harel
(1912-2003), que chefiou a agência de 1953 a 1963, também sentiu a necessidade
de narrar a sua experiência na coordenação da prisão de um dos nazistas mais
procurados da história. Em 1975, lança o livro “The House on Garibaldi Street”
(“A Casa da rua Garibaldi”), em alusão à rua onde Eichmann morava com a
família, na ocasião de seu sequestro, na cidade de San Fernando, a 30
quilômetros de Buenos Aires. Apesar de ter escrito o livro em 1965, somente
dez anos depois recebe o aval do governo israelense para publicá-lo (em 1979,
a TV americana exibiu o filme “A captura do carrasco”, com os atores Topol e
Martin Balsam, baseado no livro de Harel).
Traduzido em mais de 20 idiomas, a primeira edição do livro omitiu os
verdadeiros nomes dos agentes que participaram da missão. Por uma questão de
segurança, Harel recorreu a pseudônimos. Em 1997, em nova edição, o autor
revela os nomes dos agentes israelenses e dos voluntários latino-americanos da
operação, citando ainda o juiz alemão Fritz Bauer e sua fonte, Lothar Hermann,
ambos à época, já falecidos. Logo na primeira página, Harel fixa a data de
1957 como o marco inicial de sua jornada, quando é informado pelo
diretor-geral do ministério de Relações Exteriores, Walter Eithan, que Adolf
Eichmann, desaparecido desde 1945, está na Argentina e que seu endereço é
conhecido.
Também em
1997, mais detalhes sobre a preparação e execução do sequestro de Eichmann são
revelados no livro “Operation Eichmann: Pursuit and Capture” (Operação
Eichmann:Perseguição e Captura), escrito
por
Zvi Aharoni (1921-2012),
agente do
Shin Bet ( o serviço de segurança de Israel),
em parceria
com o jornalista alemão Wilhelm Dietl. Especialista
em interrogatórios, Aharoni nasceu em Frankfurt e seu nome original era
Hermann Arendt. Enviado à Argentina, em março de 1960, para localizar e
identificar Eichmann, coube a ele - integrante de um grupo de seis agentes
comandado por Rafi Eitan, 88 anos - dirigir o carro que conduziu Eichmann ao
local em que ficaria detido por nove dias antes de ser transportado
clandestinamente a Israel em um avião da companhia aérea israelense El Al.
Vivendo na
Inglaterra desde 1988, Aharoni contou ao correspondente Avner Avrahami, do
jornal israelense “Haaretz” (2010), que Harel, no duplo comando do Mossad e do
Shin Bet, estava decidido a encerrar o caso Eichmann por achar que os
resultados não tinham sido conclusivos em relação às suspeitas de que “Ricardo
Klement” seria o criminoso nazista. Mas, sob a pressão do procurador-geral
Haim Cohen, que convocou uma reunião de urgência em Jerusalém, em dezembro de
1959, e o interesse manifestado pelo primeiro-ministro Ben Gurion, o assunto
voltou a ser prioridade e Aharoni foi despachado para a Argentina. Vinte dias
depois, ele retornava a Israel com a fotografia de Eichmann no quintal de sua
nova casa, em San Fernando: um local isolado e ermo, bem diferente do bairro
de Olivos, em Buenos Aires, onde o fugitivo residiu com a família por seis
anos.
De frente para o carrasco
Faixa
preta de judô e especialista em explosivos, o polonês Peter Z. Malkin perdeu
grande parte de sua família no campo de extermínio de Auschwitz. Em maio de
1960, aos 33 anos, ele foi enviado pelo Mossad à Argentina para integrar a
equipe incumbida de capturar Eichmann. Por muitos dias ele observou os hábitos
e a rotina diária de Eichmann. Na noite do sequestro, Malkin aguardou o
regresso do nazista da fábrica da Mercedez Benz onde trabalhava e o
interceptou pessoalmente no trajeto a sua residência. No livro “Eichmann in My
Hands” (Eichmann em minhas mãos), escrito em 1990, com a colaboração do
jornalista americano Harry Stein, o agente revela que comprou um par de luvas
para a abordagem: “Eu não ia usar as minhas mãos para tapar a boca de quem deu
a ordem para assassinar a minha irmã, seus filhos e tanta gente”, justificou.
Ao longo
dos noves dias em que Eichmann foi interrogado e permaneceu escondido sob a
vigilância dos agentes do Mossad, aguardando o momento em que seria
transferido para Israel, Malkin teve a oportunidade de ficar frente a frente
com o carrasco e lhe dizer que o objetivo da missão era levá-lo a Jerusalém
para ser julgado por suas ações. “Eu disse a Eichmann que não tínhamos nada
contra a sua família e que poderíamos tê-lo matado com um tiro pela janela.”
Malkin também presenciou situações curiosas. Segundo ele, Eichmann não
demonstrava arrependimento e somente pedia desculpas, constrangido, cada vez
que necessitava utilizar o banheiro. Também havia no grupo uma agente, Yehudit
Nesiahu, de origem holandesa, que representava o papel de esposa para não
despertar desconfiança nos vizinhos. Por ser muito religiosa, a comida era
“kasher” (quando os alimentos são preparados de acordo com os preceitos
judaicos). Malkin lembra que dizia para ela: “Por que você faz questão de que
a comida seja kasher. A comida é para Eichmann.”
O livro,
traduzido em 10 idiomas, foi dedicado a irmã Fruma, e virou filme, em 1996 -
“The Man Who Captured Eichmann” (O homem que capturou Eichmann) -, com o ator
Robert Duvall no papel de Adolf Eichmann. Durante muito tempo, Malkin manteve
em segredo sua associação com o Mossad e a sua função de captor de Eichmann.
Mas, em 1967, ele quebrou o silêncio no leito de morte de sua mãe. “Eu
sussurrei para ela: mamãe, Fruma foi vingada.” Malkin faleceu em Nova York em
2005, aos 77 anos.
Julgamento em Jerusalém
Preso em
Israel, Eichmann foi interrogado por vários meses, em sua cela, pelo oficial
da polícia Avner Less (1916-1987). Em 1983, Less publicou trechos dos
interrogatórios no livro “Eichmann Interrogated” (Eichmann Interrogado),
levado às telas de cinema em 2007 (“Eichmann”). Para a historiadora Déborah
Lipstadt, que já presidiu o Museu do Holocausto de Washington, o filme inglês
protagonizado pelo ator alemão Thomas Kretschmann minimiza o papel de Eichmann
na Shoah, ao editar e dramatizar extratos parciais dos interrogatórios.
Atualmente, os interrogatórios podem ser consultados, na íntegra, nos arquivos
israelenses.
A
historiadora americana, autora do livro “The Eichmann Trial” (O Julgamento de
Eichmann), de 2011, acompanha a vertente exploratória do jornalista Neal
Bascom a respeito dos papéis decisivos desempenhados por Lothar Hermann, sua
filha Sílvia, e do juiz Fritz Bauer na captura de Eichmann. Lipstadt escreve
que contrariando a ideia geral de que o criminoso de guerra foi descoberto por
caçadores profissionais de nazistas, a prisão de Eichmann ocorreu
principalmente por conta da teimosia de um cego imigrante meio-judeu, da filha
adolescente que não sabia de sua herança judaica, e do juiz alemão de
Frankfurt que escondia o fato de ser judeu.
Professora
de estudos sobre Holocausto na Universidade de Atlanta, Lipstadt acredita que
a polícia secreta argentina tinha conhecimento de que um contingente de
agentes israelenses havia chegado ao país e que poderia estar envolvido em
alguma atividade secreta. Ela pondera que alguns dias depois do anúncio
público de Ben Gurion sobre a captura de Eichmann, a revista “Time” publicou
reportagem com riqueza de detalhes descrevendo toda a operação. “Os agentes
policiais argentinos que acompanhavam de longe o sequestro e sabiam o lugar
onde Eichmann estava escondido foram a fonte de informação da revista”,
afirma. Para Lipstadt o governo da Argentina ficou até “feliz” com a ação dos
israelenses de tirar Eichmann do país “com as próprias mãos”.
Entretanto, a historiadora observa que o avião da El Al levando Eichmann não
parou em Recife para abastecer, conforme o plano oficial de voo. Isso porque o
chefe do Mossad, Isser Harel temia que as autoridades argentinas pudessem
avisar à polícia brasileira e o avião ficasse detido. A parada técnica ocorreu
em Dacar, no Senegal, e dali o avião seguiu direto para o aeroporto de Lod,
atual aeroporto internacional Ben Gurion, em Tel Aviv.
Vale
lembrar que em 25 de maio de 1960 a Argentina comemorava os 150 anos de sua
independência e que delegações oficiais de vários países, inclusive a de
Israel, chefiada pelo chanceler Abba Eban, foram convidadas para as
festividades, o que justificaria o deslocamento de agentes. No caso da equipe
do Mossad, os agentes chegaram a Buenos Aires em voos diferentes e sob nomes
falsos na última semana de março, dois meses antes das comemorações e 45 dias
antes da captura. À meia-noite do dia 20 de maio, o mesmo avião da El Al que
trouxe a delegação israelense, no primeiro vôo da companhia à América do Sul,
decolou com Eichmann a bordo, instalado na primeira classe, rumo a Israel.
Novos documentos
Em 2011,
documentos confidenciais sobre o caso Eichmann foram autorizados para consulta
após a Corte Federal de Leipzig permitir o exame de 3.400 páginas mantidas até
então sob sigilo pelo serviço secreto da Alemanha (BND, sigla em alemão). O
tribunal decidiu por atender à solicitação da jornalista alemã Gabriele (Gaby)
Webber, correspondente em Buenos Aires, avaliando que a liberação de
documentos dos anos 1950 e 1960 não traria danos à imagem e a política externa
da Alemanha (100 páginas, porém, ainda permanecem secretas, por decisão
lavrada em 2013 por uma Corte federal alemã). Nos EUA, em 2005, o serviço
secreto americano (CIA) já havia tornado acessível ao público os documentos
sobre Eichmann e outros criminosos nazistas.
Pesquisando nos arquivos alemães, Webber publica em 2013 o livro “Los
Expedientes Eichmann” (Os documentos Eichmann) e garante, de forma
surpreendente, que o carrasco nazista era um agente que fornecia informações
para a Alemanha e Israel, semelhante a outros ex-oficiais do regime de Hitler
que no pós-guerra transmitiram segredos militares e logísticos aos serviços
secretos ocidentais.
Em
recentes entrevistas à “Telam” (agência nacional de notícias do governo da
Argentina), em 15.01.2014, e ao jornal “Clarin” (30.04.2014), Weber sustenta
que nunca houve uma caçada aos nazistas na Argentina e que os espiões da
Alemanha e da Argentina sabiam, desde 1952, onde viviam e o que faziam
Eichmann e seus amigos. Uma informação que a partir de 1958, segundo a
jornalista, passou a ser compartilhada pelo Mossad, CIA e o KGB, o serviço
secreto da antiga União Soviética. Ela chama a atenção para o fato de que
apesar de os nazistas entrarem no país com nomes falsos, seus filhos
mantiveram seus nomes verdadeiros, estudando e trabalhando normalmente.
Weber
também questiona o silêncio de Eichmann durante o julgamento em Jerusalém
quanto à presença de Hans Globke e de outros funcionários com passado nazista
no alto escalão do governo do democrata-cristão Konrad Adenauer (1876-1967),
destacando que a Alemanha mantinha importantes acordos políticos, tecnológicos
e diplomáticos com Israel. Globke foi secretário de Estado de Adenauer
(mandato de 1949 a 1963) e redator das leis raciais de Nuremberg, em 1935, que
deram consistência legal à perseguição e expropriação de bens dos judeus na
Alemanha e nos países invadidos pelas tropas de Hitler.
A
jornalista raciocina que Eichmann ficou calado sobre assuntos correlatos que
mesmo não estando em julgamento poderiam se tornar complicadores para as
relações entre os dois países, se o réu se dispusesse a falar. Ela cita a
cooperação nuclear entre Israel e a Alemanha para a construção de uma central
atômica no deserto de Neguev; o acordo vigente desde 1952 para o pagamento
reparatório de 3 bilhões de marcos (equivalentes a 1,5 bilhão de euros) aos
sobreviventes da Shoah (o regime nazista confiscou propriedades e bens de
milhões de vítimas no maior roubo de um estado totalitário contra os seus
cidadãos); e o papel dos nazistas na chamada guerra fria - período que vai de
1949 a 1991 – envolvendo espionagem e disputas estratégicas entre os EUA e a
União Soviética.
Ressalte-se ainda que dez dias antes da chegada dos agentes do Mossad à
Argentina, um encontro no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York, em 14 de março
de 1960, reuniu Ben Gurion e Adenauer aparentemente para acertos de um
empréstimo da Alemanha para o desenvolvimento de um reator nuclear na cidade
de Dimona, no Neguev. O tema da reunião, todavia, permanece incerto devido à
falta de um expediente administrativo registrado naquela data.
“O arquiteto do extermínio”
Contrapondo-se a algumas asserções formuladas pela jornalista alemã, o diretor
do Centro Simon Wiesenthal (CSW) de Buenos Aires, Sergio Widder, assegura que
Eichmann foi a pessoa encarregada de levar adiante o projeto de extermínio
massificado e sistemático do povo judeu e em razão disso foi procurado,
capturado e levado a julgamento em Jerusalém. “O programa de aniquilamento foi
protocolado na conferência de Wannsee (bairro nos arredores de Berlim), em
janeiro de 1942. Uma reunião onde a hierarquia nazista pôs por escrito, em
atas, a decisão de exterminar os judeus na Europa. Coube a Eichmann (presente
ao encontro) implementar o genocídio. Ele foi o arquiteto da solução final”,
atesta Widder, que é o representante do CSW para América Latina. A instituição
faz o monitoramento do antissemitismo nos países da região e se alinha às
organizações de direitos humanos.
Em um
debate na TV argentina (28.10.2012) com a participação da autora de “Los
Expedientes Eichmann”, Widder destacou a importância da ação do Mossad, a
despeito das consequências que naturalmente poderiam ocorrer no âmbito
diplomático (como de fato aconteceu, com o governo argentino protestando em
foros internacionais). “Supor que somente a identificação e localização de
Eichmann conduziriam automaticamente a um julgamento não seria crível naquele
momento” avalia. “A captura e o feito de levá-lo a julgamento em Jerusalém
constituíram um marco na história dos direitos humanos. Os processos que
vieram a seguir, vinculados a violações contra pessoas e grupos tiveram como
ponto de referência esse julgamento.”
Widder
também elogiou a linha de ação adotada pelos agentes do Mossad. “Assim como o
capturaram e o transportaram para Israel, poderiam tê-lo assassinado. Não
advogo essa opção, mas isso seria possível. De todos os modos, decidiu-se por
fazer um julgamento público. Aí está um valor que se sobrepõe a qualquer
vingança”, observou. Opinião compartilhada pela jornalista alemã: “Foi a
primeira vez que o Holocausto foi trazido à discussão pública em Israel”,
disse Webber. “E para as vítimas foi importante que um membro do estado
nazista houvesse sido preso e julgado. Para a Europa foi igualmente importante
porque nos anos 1950 e 1960 ninguém queria lembrar Hitler, situação que mudou
com a captura de Eichmann.”
Iniciado
em 11 de abril de 1961, o julgamento de Eichmann consumiu oito meses durante
os quais foram apresentados os depoimentos de mais de cem testemunhas de
acusação, duas mil provas e 3.500 páginas de registros da polícia israelense.
Pela primeira vez a Shoah foi mostrada ao mundo em toda a sua brutalidade e
horror. “Às vezes, um dos principais objetivos de um processo é, realmente,
ensinar um país sobre o seu passado e promover a introspecção pública”,
escreve Mark Freeman, um advogado canadense e consultor internacional em
questões de direitos humanos, autor da obra “Truth Commissions and Procedural
Fairness” (Comissões da Verdade e justiça processual), publicada em 2006.
Também a especialista em direitos humanos e professora de Direito da Faculdade
de Tel Aviv, a israelense Leora Bilsky, considera o julgamento em Jerusalém um
legado para Israel e a humanidade. “O conhecimento abstrato sobre a Shoah se
tornou real através das vozes autênticas dos sobreviventes. A história se
transformou em memória coletiva.”
Execução reacende antissemitismo
Em 15 de dezembro de 1961, Eichmann foi considerado culpado e condenado à
morte. Executado por enforcamento, em 31 de maio de 1962, seu corpo foi
cremado e as cinzas espalhadas no mar, além das águas territoriais do estado
de Israel. Na Argentina, a morte de Eichmann foi seguida por mais de trinta
ataques a alvos judaicos como sinagogas e escolas. Um acampamento de
estudantes foi invadido por vândalos que surraram os jovens. Muros de
propriedades judaicas foram pichados com suásticas e as ameaças se tornaram
rotineiras. Grupos neonazistas empunhavam cartazes com os dizeres: “Queremos
Eichmann de volta”.
Um dos mais brutais atentados ocorreu contra uma jovem de origem judaica de 19
anos, Graciela Narcisa Sirota, estudante da Faculdade de Ciências da
Universidade de Buenos Aires. Ela foi raptada, em 21 de junho de 1962, em um
ponto de ônibus por três homens e torturada em um local desconhecido. A jovem
teve o seio direito deformado pelos criminosos que o marcaram com uma
suástica. Os bandidos também queimaram várias partes de seu corpo com pontas
acesas de cigarros, deixando-a jogada na rua, desacordada, longe do centro da
cidade.
Pouco tempo depois desse terrível episódio, outro caso envolvendo uma jovem de
família judaica assustou os judeus argentinos. A jovem Mirta Penjerek, de 16
anos, desaparecida havia mais de um mês, foi encontrada sem vida no início de
julho em um terreno baldio nos arredores de Buenos Aires, o corpo em
progressivo estado de deterioração. Ela foi vista pela última vez ao sair da
aula de inglês, algumas quadras de sua residência. A polícia, acionada pela
família, seguiu várias pistas, mas não foi conclusiva quanto aos possíveis
criminosos, permanecendo o crime impune.
Em 2000 - mais de três décadas após esses deploráveis acontecimentos,
acrescidos, infortunadamente, por dois sangrentos atentados terroristas em
Buenos Aires que destruíram a embaixada de Israel (1992) e o prédio do centro
judaico Amia (1994), causando mais de uma centena de mortos e 550 feridos -, o
presidente da Argentina, Fernando de La Rúa,
em visita aos EUA, foi até o Museu do Holocausto em Washington e depositou uma
coroa de flores em homenagem às vítimas. Na capital americana, antes de seu
encontro com o presidente Bill Clinton, La Rúa pediu desculpas públicas pelo
abrigo que seu país deu aos nazistas.
"Hoje, diante de todo o mundo, quero expressar meu mais sincero pesar e dizer
que lamento que isso tenha acontecido", falou o líder argentino, 76 anos, que
comandou o país de 1999 a 2001.
Contudo, ainda que cause indignação e se lastime a onda de antissemitismo que
assolou a comunidade judaica da Argentina nos anos seguintes (o que ocasionou
uma grande imigração para Israel), a captura e o julgamento de Eichmann
provaram-se ações de um inegável valor histórico, social e transformador.
Criou-se um novo parâmetro a respeito de crimes institucionais coletivos
praticados por estados e governos totalitários. A presença de testemunhos (as
vítimas) como provas acusatórias moldou uma nova consciência global para os
chamados “crimes contra a humanidade”, tornando-os imprescritíveis de acordo
com a resolução 2391 adotada pela Assembleia Geral da ONU (Organização das
Nações Unidas), em 26 de novembro de 1968. Norma internacional defendida pelo
procurador-geral da República do Brasil, Rodrigo Janot (“Consultor Jurídico”,
em 19.10.2013).
Foi também a partir da visibilidade do julgamento de Eichmann em Jerusalém que
aos poucos foram sendo criadas as “Comissões da Verdade” para investigar
violações dos direitos humanos em uma série de países, principalmente na
América Latina e na África, onde seus cidadãos foram vítimas de perseguições e
torturas de agentes policiais e militares. E por fim, o histórico julgamento
em Jerusalém rasgou o véu de silêncio que cobria a maior tragédia moderna
sucedida em solo europeu e deu ânimo e amparo legal para que o incansável
Simon Wiesenthal, de seu pequeno escritório em Viena, prosseguisse na busca
aos carrascos nazistas, tarefa a qual se dedicou inteiramente até os 94 anos.