“A
revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos,
podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é o outro.”
(Albert Camus, escritor e jornalista/ 1913-1960)
Em
2010, uma professora de inglês do ensino médio em Nápoles publicou um pequeno
romance de 78 páginas cujo título estampava o nome de uma personagem
misteriosa e enigmática que já foi rotulada por agências de inteligência
ocidentais como a maior terrorista do século 20. O livro “L’intervista a Petra
Krause” de Mara Fortuna conta a história de uma estudante de jornalismo que em
meio à turbulência dos movimentos de esquerda que sacudiram a Europa, com
bombas e mortes na década de 1970, tenta entrevistar uma ativista antifascista
– Petra Krause - acusada de terrorismo. Mas um incidente trágico a afasta
desse encontro que só vai se realizar trinta anos depois.
No
lançamento do livro a autora disse que escreveu focada nos adolescentes que na
sua maioria tem uma visão distorcida desse tempo de turbulência no continente
europeu marcado por sucessivos atentados e sequestros praticados por grupos
radicais. Mas, esses grupos extremistas, de acordo com a professora, eram
formados por jovens idealistas e revolucionários. Acrescenta-se que tais
movimentos tinham um leque bastante amplo de ações: se opunham ao regime de
apartheid da África do Sul, às juntas militares na Grécia e às ditaduras
de Franco (Espanha), Salazar (Portugal) e Pinochet (Chile); apoiavam às lutas
pela libertação da Argélia, Irlanda do Norte e das colônias portuguesas de
Angola e Moçambique; e mantinham conexões com organizações clandestinas - como
a dos Tupamaros no Uruguai - que lutavam contra as ditaduras militares
instaladas em países da América do Sul.
Os rebeldes de 1968
A
jornalista e escritora americana Claire Sterling (1919-1995), que viveu na
Itália durante essa década turbulenta e foi correspondente do The New York
Times e colunista política do Washington Post, aponta o ano de 1968
como aquele em que uma geração nascida após a segunda guerra mundial declarou
a sua própria guerra contra a sociedade. “A força colossal deflagrada por um
bando de jovens beatniks antes ignorados como uma periferia de
lunáticos tirou o fôlego dos vários sistemas do mundo. Não apenas tirou o
presidente Johnson da Casa Branca e o general De Gaulle do Palácio Elysée,
como transformou a derrota militar do Vietcong após a Ofensiva do Tet
numa conquista política que colocou um ponto final na guerra do Vietnã.”
Explica-se: com o barulho dos movimentos dos jovens universitários americanos
e da geração beat (precursora dos hippies) contra a guerra do Vietnã crescendo
nos EUA, somado ao surpreendente ataque do Vietnã do Norte ao Vietnã do Sul
onde se concentravam as forças americanas, em 31 de janeiro de 1968 (a chamada
Ofensiva de Tet, em referência ao ano novo lunar dos vietnamitas
conhecido como “Tet Nguyen Dan”), Lyndon Johnson não obteve a indicação dos
democratas para tentar a reeleição e o presidente francês, após 10 anos no
poder, renunciou em abril de 1969, após enfrentar protestos violentos de
estudantes e trabalhadores, e ser derrotado em um referendo popular sobre
reforma do senado.
Porém,
o questionamento mais contundente que os historiadores ainda fazem dessa época
conhecida na Itália como os “anni di piombo” (anos de chumbo) é a forma
violenta de ação adotada por esses grupos cujos alvos e vítimas foram as
próprias democracias da Europa Ocidental e seus cidadãos. O chamado
euroterrorismo se deu a partir da década de 1970 e atravessou os anos de 1980
como uma extensão dos protestos estudantis de 1968, com movimentos de extrema
esquerda radicalizando suas posições políticas por meio de atos terroristas
que inicialmente atingiram a Alemanha Federal e a Itália e depois se alastrou
para outros países do continente. A guerra do Vietnã, as ditaduras na Europa e
na América Latina, a luta pela independência da Argélia, a causa palestina, o
fantasma latente do fascismo e a repressão policial serviram de combustível
para que esses guerrilheiros urbanos incendiassem a Europa.
“Geração de Auschwitz”
Mas o
rastilho de pólvora foi aceso na própria Alemanha pós-guerra a partir da
fundação do “Grupo Baader-Meinhoff”, em 1970, também conhecido como “Fração do
Exército Vermelho” (RAF - Rote Armee Fraktion, em alemão), uma organização de
extrema-esquerda responsável por uma série de ações armadas no país e que
somente foi oficialmente considerada extinta em 1998, após mobilizar três
gerações de militantes. Liderados inicialmente por Andreas Baader (1943-1977),
oriundo do movimento estudantil, Ulrike Meinhoff (1934-1976), jornalista e
ativista política, e Gudrun Ensslin (1940-1977), doutora em filosofia, os três
foram assassinados nas prisões onde cumpriam suas penas, provavelmente por
policiais, apesar de o governo alemão alegar que os prisioneiros cometeram
suicídio.
No
livro “Legacies of Dachau: The Uses and Abuses of a Concentration Camp,
1933-2001” - que aborda a história e a memória de uma Alemanha pós-genocida, a
partir de Dachau, o primeiro campo de morte nazista -, o professor americano
Harold Marcuse reproduz o desabafo de Ensslin à imprensa após policiais
matarem o estudante Benno Ohnesorge durante uma manifestação estudantil, em
junho de 1967, contra a visita do Xá Reza Pahlevi do Irã a Berlim. A ativista,
então com 27 anos, foi enfática ao se referir aos policiais: “Eles vão nos
matar a todos. Vocês agora sabem o tipo de porcos contra os quais nós estamos
lutando. Esta é a geração de Auschwitz. Você não pode dialogar com as pessoas
que criaram Auschwitz. Eles têm armas e nós não. Nós precisamos nos armar!”
Para o
jornalista alemão Stefan Aust, que foi editor do semanário Der Síegel (de
1994 a 2008) e que acompanhou a formação da RAF e conviveu com alguns
de seus líderes, essa é a primeira geração nascida desde a guerra que começa a
fazer perguntas e questionar os pais acerca dos acontecimentos no regime
hitlerista. Eles criticavam aquilo que lhes parecia ser a relutância da
sociedade alemã em confrontar-se com seu passado nazista. Autor do best-seller
“Der Baader Meinhof Komplex”, de 1985, que virou filme em 2008 e dividiu o
público alemão, pois muitos viram uma espécie de glamourização dos
terroristas, Aust escreve sobre a geração de 1968: “A Segunda Guerra Mundial
tinha terminado apenas há 20 anos. Os que comandavam a polícia, as escolas, o
governo, eram as mesmas pessoas que estavam no comando durante o nazismo. O
chanceler Kurt Georg Kiesinger era um ex-nazista. Por causa do passado
nazista, tudo de ruim era comparado ao Terceiro Reich. Se você ouvia falar de
brutalidade policial, diziam que era igual à SS. No momento em que você vê seu
próprio país como a continuação de um Estado fascista, você se dá a permissão
de fazer quase qualquer coisa contra ele. Você vê as suas ações como a
resistência que seus pais não tiveram.”
Vida clandestina
Petra
Krause nasceu em Berlim, em 19 de fevereiro de 1939, e com poucos meses de
vida foi levada para o campo de extermínio de Auschwitz com sua família, onde
seus pais morreram nas câmaras de gás. Seus primeiros três anos são passados
neste campo de horrores e por puro acaso consegue sobreviver e é adotada por
uma família cristã. Chega à Itália pela primeira vez em 1957, ainda
adolescente, e filia-se ao Partido Comunista. Dezoito anos depois, em março de
1975, já como cidadã italiana, divorciada de um médico de Milão e mãe do jovem
Marco, é detida na Suíça sob a acusação de contrabando de armas e de
participação em atentados terroristas contra a embaixada espanhola em Berna e
um banco em Zurique.
Escrevendo sobre os grupos de esquerda na Europa que adotaram a violência em
suas ações, a jornalista Claire Sterling reserva um capítulo para descrever as
atividades clandestinas de Krause em seu livro “A rede do terror” (1981).
Conta que no início ela emprestava seu passaporte para fugitivas dos regimes
de Franco e de Salazar ou as abrigava em seu apartamento em Milão. Depois
passou a ser enviada a países da África, como a Argélia e as colônias
portuguesas de Angola e Moçambique. Na Itália trabalhava como intérprete e
tradutora para a editora de Giangiacomo Feltrinelli, um milionário admirador
de Fidel Castro e filiado ao partido comunista que apoiou e financiou os
movimentos armados. Após a morte de Feltrinelli, em 1972, Krause “mergulha na
clandestinidade total, adota novo nome, adquire um passaporte falso, arranja
um insignificante emprego de escritório em Milão e viaja bastante percorrendo
os circuitos terroristas europeus”.
Em
outubro de 1974, Krause atravessa a fronteira e se instala em Zurique.
Policiais italianos estão a sua procura depois de encontrarem um carro de sua
propriedade no local de um incêndio que destruiu uma fábrica da multinacional
ITT de componentes eletrônicos, causando prejuízos de 10 milhões de dólares.
Nessa época, segundo Sterling, Krause já gerenciava a distribuição de
armamentos para vários grupos extremistas sob o nome de “Anna Maria Grenzi”.
Procurada pela CIA
De
acordo com o relatório da CIA (Central Intelligence Agency) de 1978, o grupo
de Petra Krause também chamado de “o grupo de Annababi” funcionava na Suíça em
conjunto com a organização anarquista AKO (Anarchistische Kampf-organization),
fundada por jovens suíços em 1970 e que cultuavam o mito revolucionário do
argentino Che Guevara, braço direito de Fidel Castro executado na Bolívia em
1967. Eles foram responsáveis por roubar toneladas de armamentos e explosivos
dos arsenais das forças armadas suíças para suprir grupos extremistas como o
Baader-Meinhof da Alemanha, as Brigadas Vermelhas da Itália, os irlandeses do
IRA, o ETA dos bascos espanhóis e o Diretório Europeu dos palestinos em Paris,
liderado pelo venezuelano Ilich Ramirez Sanchez, conhecido como “Carlos, o
Chacal” (atualmente com 64 anos e cumprindo pena de prisão perpétua na
França).
A
chegada de Krause à Suiça, relata Sterling, impulsionou o abastecimento de
armas e explosivos roubados, o fornecimento de identidades e passaportes
falsificados, o tráfego de esconderijos para militantes perseguidos e a
mobilização para a formulação de sucessivas ações violentas na Itália e na
Alemanha. Anos mais tarde, em declarações a jornais, Krause justificou a sua
opção pela militância armada: “Comecei como marxista-lenilista ortodoxa e
passei da completa não-violência ao ponto em que compreendi que a
não-violência é um luxo burguês” (Newsweek, em 18.07.1978). Em outra
entrevista, desta vez para o Le Nouvel Illustré, de Genebra, Krause
revelou que sabia que a polícia andava em seus calcanhares. “Comecei a ver a
necessidade de outros instrumentos para combater o estado burguês e minhas
reservas quanto à violência caíram por terra.”
Prisão na Suiça
Em
março de 1975 Krause é detida pela polícia suíça em uma movimentada praça de
Zurique. Usando pseudônimo e passaporte falso, ela está acompanhada de
Elizabeth Van Dyck, da liderança do grupo Baader-Meinhof, que viria a ser
fuzilada por policiais na Alemanha, quatro anos depois, aos 28 anos, em um
esconderijo da organização.
Antes
de ser presa, Krause vinha sendo vigiada pelo serviço de segurança suíça.
Meses antes, ela teria atravessado a fronteira alemã e entregue pessoalmente
fuzis automáticos, minas e granadas para Van Dick e Siegfried Haag, um
advogado simpatizante da RAF que depois se tornou líder e militante nas ações
armadas do grupo. Esse armamento foi encontrado nas ruínas da embaixada alemã
em Estocolmo, semanas depois da explosão do prédio que fora invadido por um
comando da RAF, em abril de 1975, com o intuito de trocar os diplomatas feitos
reféns na embaixada por
Baader, Ensslin e Meinhoff que estavam presos.
Em 1979, Haag é condenado a 14 anos de reclusão pela preparação do atentado na
Suécia, recrutamento de pessoal e aquisição de armamentos. Na sentença do
tribunal de Zurique, Petra Krause é citada como a pessoa que forneceu as armas
a Haag em Waldshut, na Alemanha Ocidental, em 31 de janeiro de 1975 (Haag, de
68 anos, teve sua pena suspensa em 1987 devido ao seu estado de saúde).
Presa
na Suiça, Krause fica por mais de dois anos encarcerada aguardando julgamento,
sendo que em total isolamento no primeiro ano. Pesam sobre ela acusações de
envolvimento em atentados terroristas, roubo de equipamento militar e
contrabando de armas. Passa por quatro presídios, sofre uma tentativa de
estupro por parte de um carcereiro, faz três greves de fome, perde 14 quilos e
grande parte dos cabelos.
Debilitada, com nódulos linfáticos em todo o corpo e sentindo muitas dores,
Krause é deportada à Itália para tratamento de saúde, após 28 meses de
confinamento. Contribuem para o desfecho a mobilização da mídia e a pressão
exercida por um comitê de deputadas que vai a Suíça e constata as péssimas
condições de saúde da prisioneira. Um apelo pela libertação de Krause ganha às
páginas do jornal La Repubblica, em julho de 1977. Quem assina é o
dramaturgo Dario Fo (Prêmio Nobel de Literatura de 1997) e sua mulher, a atriz
Franca Rame (falecida em maio de 2013) que também pede a interferência do
então presidente italiano Giovanni Leone a favor de Krause.
Retorno à Itália
Já de
volta à Itália, onde responde a um processo pelo incêndio de uma fábrica em
Milão e a ocultação de um carro roubado, é levada para uma prisão em Nápoles.
Mas em razão de seu estado de saúde, ela paga fiança e obtém a liberdade
provisória. Nas ruas de Nápoles, jovens da extrema-esquerda saúdam Krause na
saída do presídio e em passeata proclamam a inocência da acusada (EL Pais,
em 26.08.1977).
Franca
Rame, que além de atriz era ativista feminista, estava no aeroporto de
Fuimicino na chegada de Krause. Ela conta que o ostensivo aparato policial
inclusive com cães para escoltar a prisioneira foi vista como uma manobra
teatral para reafirmar a periculosidade da prisioneira. Um prólogo grotesco,
segundo ela, considerando que o genocida alemão Herbert Keppler, responsável
pelo envio de mais de onze mil judeus italianos para as câmaras de gás de
Auschwitz e condenado a prisão perpétua na Itália, horas depois driblava a
vigilância policial escapando de um hospital militar em Roma, onde se
encontrava para tratamento de um câncer, rumo à Alemanha (ele morreu poucos
meses depois, aos 70 anos).
Reportando a sua detenção na Suiça, Krause lembra que ela e a amiga estavam em
Bellevueplatz, a estação de bondes de Zurique, quando foram cercadas e
brutalmente separadas por um grupo de homens que torceram seus braços para
trás e arrancaram a sua bolsa. “Se isso acontecesse na Itália e eu estivesse
armada teria atirado como louca. Teria a certeza de que se tratava de uma
agressão fascista”, disse.
Tempos
depois, na petição que faz contra a Suiça por sua prisão, Krause invoca um
artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, instituída em 1953, que
estabelece que ninguém pode ser qualificado pelas autoridades como culpado de
um crime sem que esta culpa tenha sido previamente comprovada por um tribunal.
Isso porque por ocasião de sua detenção, o ministro da Justiça suíço foi a TV
dizer que Krause era autora de crimes que envolviam a utilização de
explosivos. Tal declaração violava o entendimento jurídico de que só o
processo penal pode conduzir à constatação formal da culpa e de que a
revelação pública de uma suspeita por parte dos serviços do Estado pode ter
conseqüências negativas para a posição jurídica da pessoa, influenciar juízes
e promover condenações antecipadas.
Sentenças
Em
novembro de 1978, Krause é absolvida na Itália por falta de provas. Tem ao seu
lado grande parte da imprensa italiana que faz longas reportagens relatando as
torturas físicas e mentais sofridas pela prisioneira, incriminada por “um
suposto roubo de munições de um arsenal do exército suíço e vítima de
acusações por supostos atos subversivos que nunca foram provados” (Il
Manifesto, diário comunista que encerrou suas atividades em 2012 e
Lotta Continua, diário da ultra-esquerda extinto em 1982).
O
conhecido cartunista italiano Giorgio Di Vita, um jovem de 22 anos à época,
recorda que a imprensa destacava o histórico de Krause como uma menina judia
sobrevivente de um campo de concentração nazista e de seu compromisso político
de não-violência que a levou a manter contato com os principais movimentos
antifascistas da Europa, principalmente com os grupos de esquerda da Alemanha.
Também era conhecido seu compromisso de solidariedade com os espanhóis
exilados, gregos e todos os perseguidos dos regimes ditatoriais, inclusive
aqueles que militavam contra as ditaduras da América do Sul.
Opinião
que contrasta com a de Sterling que em seu livro enfatiza a ligação de Krause
com o terrorismo: “Conhecida por seu bando como ‘Annababi’, Petra Krause foi
descrita pela polícia suíça como a ‘terrorista do século’ ao ser apanhada
(...) Não era assassina como o resto. Tudo o que fazia era cuidar do negócio.”
Em 9 de
março de 1981, o tribunal de Zurique condena Krause a três anos e seis meses
de prisão, e em 2 de maio de 1982 a Corte de Apelação de Milão também a
sentencia a 6 anos de reclusão. À época, muitos dos seus companheiros estão
presos ou mortos. Ainda assim, quase duas décadas depois, a jornalista Maria
Antonietta Calabró, do influente jornal Corriere della Sera publica
artigo afirmando que Krause estaria por trás da reorganização de grupos
armados a nível internacional (19.05.2000). Segundo a jornalista, com a
captura de “Carlos, o Chacal” no Sudão, em agosto de 1994, Krause estaria
desempenhando um papel mais atuante no submundo do terrorismo e ativando a sua
teia de relações, já que algumas antigas lideranças estariam em liberdade,
ainda que sob vigilância.
Assassinatos
O
artigo em questão citando Krause e sua associação com grupos de extrema
esquerda vem à tona em razão do assassinato, um ano antes, em 1999, de Massimo
d’Antona pelas Brigadas Vermelhas que reivindicam a autoria do crime para a
surpresa dos italianos que julgavam o grupo extinto. Conselheiro do Ministro
do Trabalho, d’Atona fez parte do grupo que adequou a legislação trabalhista
do país às diretrizes da União Europeia, um dos motivos da execução
assinalados na mensagem das Brigadas.
Dois
anos depois, outro conselheiro do Ministro do Trabalho é morto pelas Brigadas.
Desta vez é o professor Marco Biagi, coautor de uma polêmica reforma
trabalhista que desagradou os maiores sindicatos italianos. Pela internet, as
Brigadas assumem o assassinato do economista tachando-o de “um dos promotores
da regulamentação da exploração do trabalho”. Peritos em balística também
constatam que nos dois assassinatos foi usada a mesma arma de calibre 9mm.
Em
paralelo, relatório publicado em 2001 pela Comissão Parlamentar de Inquérito
do Senado italiano sobre terrorismo no país contempla com duas dezenas de
páginas “La controversa figura di Petra Krause”. Entre seus contatos é citado
o libanês Michel Moukarbal, definido como “o superior direto de Carlos na
resistência palestina ativa na Europa” (Moukarbal foi morto por Carlos, em
1975, por suspeita de traição). Sterling afirma que o grupo suíço de Krause
forneceu armas para Moukarbal suprir os grupos separatistas ETA, dos bascos
espanhóis, e o IRA dos irlandeses.
Uma
atuação superdimensionada de acordo com o jornalista e professor da
Universidade de Leipzig, Michael Haller. Articulista do jornal alemão Der
Spiegel por um longo período, Haller contesta as afirmações de Sterling
acerca do poder de Krause.“O que é certo é que Petra Krause participou de duas
ações amadoras, uma em Zurique e outra em Berna, que não tiveram sucesso.” E
continua: “Krause chegou a Milão no final dos anos 1960 junto com outros
ultraesquerdistas que manifestavam solidariedade a espanhóis antifascistas e
negros africanos.”
Suspeitas
Para
Heller é questionável atribuir a Krause uma posição de liderança no terrorismo
da esquerda europeia, ao lado do editor italiano Giangiacomo Feltrinelli,
simpatizante da esquerda e morto em um ataque a bomba (1972), e o egípcio de
origem judaica Henri Curiel (“Houve um tempo no Egito... A vida de Henri
Curiel, Coojornal, em 16.04.2011), assassinado em 1979 e que presidiu
em Paris a organização “Solidariedade” para acolher os fugitivos e militantes
da esquerda perseguidos principalmente pelas ditaduras da América do Sul. “É
ridículo montar um best-seller com alegações e especulações infundadas,
baseadas em preconceitos vigentes”, critica Heller (“Das internationale
Terror- Netz”, em 22.02.1982).
Um
exemplo desse tipo de indução proposital e conveniente seria o sequestro e
assassinato de Aldo Moro - por
cinco vezes primeiro-ministro da Itália – em 9 de maio de 1978, após um
cativeiro de 55 dias. Se atualmente não há dúvidas de que os executores foram
as Brigadas Vermelhas, ainda paira o mistério sobre a identidade dos
verdadeiros mandantes do crime. Muitos investigadores implicam a CIA, a máfia
e até o Vaticano.
Líder dos Democratas-Cristãos, Moro foi sequestrado no dia em que o Congresso
italiano iria votar uma moção de confiança favorável ao governo de seu colega
de partido Guilio Andreotti, com o apoio, pela primeira vez, do Partido
Comunista. Segundo a viúva de Moro, o secretário de Estado dos EUA Henry
Kissinger o teria advertido para abandonar a ideia de incluir os comunistas no
governo “ou pagaria caro por isso”. No livro “Doveva Morire” (Teria que
morrer), o magistrado Ferdinando Imposimato que atuou no caso, denuncia “as
mentiras, omissões, zonas obscuras e manobras” cometidas pelas autoridades
para desviar a polícia e a Justiça da verdade. ”Descobri, por acaso, 15 anos
depois, documentos do comitê responsável pelo caso. Ao lê-los entendi
claramente que se aplicou uma estratégia para eliminar Aldo Moro.” Durante o
período em que esteve em poder das Brigadas, Moro pediu várias vezes para que
o governo italiano negociasse com o grupo e não foi atendido.
Em entrevista à mídia italiana, sua filha Maria Fida disse acreditar que havia
muita gente interessada em varrer o pai do cenário político, e não somente na
Itália, por sua postura de pacificador. “É muito cômodo dizer que os culpados
foram as Brigadas Vermelhas. Porém, não foram unicamente elas”, assegura (“La
verdad sobre el caso Aldo Moro”, portal Público.es, em 16.03.2008).
Terrorismo estatal
Enfim, é evidente que enfrentar o aparato do Estado é sempre um desafio e na
maioria das vezes um caminho sem volta, porque o terrorismo estatal é um
mostro de tentáculos mortais. Tentativas para circunscrever a luta contra a
tirania, o arbítrio, os déspotas e as malversações do poder público no
civilizado campo das ideias já foram feitas aos montes e jamais chegaram a um
desfecho justo sem que nos primórdios dos embates os oponentes se
confrontassem em protestos de rua, confrontos armados ou lançassem mão de
outras alternativas incisivas para a posteriore serem chamados à mesa
de negociações.
É sabido que exemplos de conformismo ou obediência legal não se aplicam a
todas as situações ou em estados de exceção. Passados mais de 70 anos do
início da segunda grande guerra muitos ainda questionam a suposta
“passividade” dos judeus diante das arbitrariedades do regime nazista. Ainda
que o levante do Gueto de Varsóvia, na Polônia (1943), redundasse em um
desfecho trágico, com a morte de seus líderes e a destruição do local, o
combate e a resistência armada dos rebeldes judeus surpreenderam os alemães.
Mas tal reação surgiu tarde demais. O que suscita uma indagação: se
imediatamente após a “Noite dos Cristais” (Kristallnacht), em Berlim
(09.11.1938), quando efetivamente se deu início ao processo de extermínio do
judeus pelo Terceiro Reich – com a destruição de sinagogas e lojas judaicas, e
a chacina e deportação de centenas de cidadãos alemães de origem judaica para
campos de concentração – os atingidos pelo terrorismo estatal materializassem
a sua revolta por meio de uma rebelião armada, com protestos de rua e
confrontos, os acontecimentos se sucederiam da mesma forma?
Gostaria de crer que a história, a partir daí, seguiria outro rumo,
apresentando às gerações futuras uma perspectiva diferente da própria tragédia
do Holocausto. Mesmo que os mortos se contassem aos milhões, a memória
renderia tributo a mais heróis e a menos vítimas. E nesse caso, Petra Krause
estaria fora de qualquer censura.