Sheila Sacks
As mil e uma
histórias de uma sinagoga na Croácia
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Em Dubrovnik, no sul do país, casa de orações resistiu ao terremoto de 1667,
a
dois conflitos mundiais e à guerra na Croácia nos anos de 1990
Em meio a lojas de comestíveis, quinquilharias e souvenirs em uma das muitas
ruelas estreitas tomadas por escadarias de pedras desalinhadas que levam as
partes mais altas da cidade amuralhada de Dubrovnik, uma porta de carvalho
anuncia em letras douradas a existência de uma sinagoga e do “Zidovsky Muzej”,
um espaço com peças de seu acervo. Trata-se da segunda mais antiga sinagoga da
Europa (a de Praga é do final do século 13), estabelecida em 1352 e reconhecida
legalmente em 1408.
Situado na Ulica Zudioska (rua dos judeus), nº 5 - no antigo gueto judaico que
se expandiu por conta da chegada dos judeus da Península Ibérica (sefarditas)
expulsos da Espanha (em 1492) e posteriormente de Portugal (1496) -, o estreito
sobrado de pedra branca abriga na parte superior a silenciosa sinagoga da Idade
Média e no andar abaixo uma sala em penumbra com alguns objetos religiosos. Uma
senhora de ar compungido cobra 25 kunas (cerca de 12 reais) pelo ingresso e
avisa que estão proibidas fotos na visita que transcorre breve e um tanto
melancólica.
No interior da sinagoga, remodelada em meados do século 17 em um estilo barroco
que contrasta com suas origens medievais, pesados móveis de madeira escura e
ornamentos de prata abarrotam o pequeno recinto. Pelas janelas que se abrem para
um paredão que os dedos parecem alcançar apenas uma solitária réstia de
claridade recorta de luz um canto do comprido banco de madeira que se estende
por toda a parede. É difícil imaginar que o lugar possa reunir mais de 30
pessoas com o mínimo de conforto. No entanto, o local agora recebe alguns
turistas curiosos de bermudão e sandálias que, exaustos pelo ritmo das
caminhadas, aproveitam para tirar um cochilo, falar ao celular ou simplesmente
recuperar o fôlego naquele ambiente sossegado e recluso.
Cercada por muralhas e banhada pelo mar Adriático, a cidade velha de Dubrovnik –
do croata dubrava que significa bosque de carvalhos - fica no extremo sul do
país e foi fundada no século 7. Alguns historiadores, porém, contestam essa
versão devido a descobertas arqueológicas que mostram vestígios de construções e
utensílios da época grega, antes da era comum. A cidadela tem seus imóveis e
fontes preservados nos mesmos moldes do século 13, com apenas duas entradas para
a esplanada principal e não mais de 4 mil residentes. Em 1929, em visita à
cidade, o dramaturgo nascido na Irlanda George Bernard Shaw (1856-1950),
encantou-se com o cenário: “Se querem ver o paraíso na terra, venham a Dubrovnik”,
declarou. Nos últimos anos o turismo aumentou e a cada verão 9 milhões de
turistas visitam a Croácia (quase o dobro de sua população), grande parte se
direcionando para essa estância da ensolarada região da Dalmácia, declarada
Patrimônio Mundial da Unesco em 1979 (a moderna Dubrovnik tem 43 mil
habitantes).
Gueto é estabelecido em 1546
Os historiadores contam que a sinagoga de Dubrovnik remonta ao início do século
15, mas há registros da presença de um médico judeu contratado pela
administração da cidade em 1326 e de comerciantes itinerantes em 1368. Na época,
Dubrovnik era conhecida pelo nome italiano de Ragusa (rocha, no antigo idioma
romano), constituindo-se em um importante porto comercial que mantinha ligações
com as cidades da costa leste da Itália e da bacia do Mar Egeu onde existiam
comunidades judaicas. Os judeus eram tolerados como comerciantes transitórios na
região que esteve sob o governo da República de Veneza de 1205 a 1358, quando
enfim conquistou a sua independência e passou a ser uma cidade-estado (Dubrovnik
fica a duas horas de barco de Veneza).
A comunidade judaica local teve um aumento significativo com a chegada dos
judeus em fuga da Espanha e de Portugal, no final do século 15, muito deles a
caminho da Turquia, mas que acabaram se instalando em Dubrovnik. Anos antes do
édito de expulsão, os reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela já haviam
instituído em 1478 o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha para
oficializar a conversão forçada de judeus e mouros.
Em 1546, com o crescimento da população judaica – formada inclusive por marranos
(judeus convertidos que exerciam o judaísmo secretamente) e cristãos-novos - as
autoridades permitiram o assentamento dos judeus no extremo noroeste da cidade
amuralhada, estabelecendo o gueto na Ulica Zudioska com um pórtico que o
separava das demais moradias. Entretanto os judeus que não queriam permanecer
confinados e seguiam para fora das muralhas se viam pressionados à conversão
pela Igreja Católica.
Tempos difíceis e catástrofe
Nos 450 anos como cidade independente (em 1808 foi conquistada por Napoleão),
houve muitos episódios de perseguições, execuções, livros judaicos queimados em
praças públicas e principalmente leis restritivas como as que impediam os judeus
de adquirirem terrenos ou casas. Mas, muitos se voltaram para o comércio
marítimo, investindo em navios e importando lã e especiarias do Oriente. Outros
se tornaram exímios artesãos, conceituados médicos e intérpretes, dado o seu
conhecimento de línguas. Porém um expressivo contingente de marranos se deslocou
para a região vizinha que corresponde a atual Bósnia-Herzegovina
predominantemente muçulmana.
Ainda nesse período, em 1667, ocorre um terremoto de graves proporções que
atinge Dubrovnik, destruindo grande parte de seus prédios e vitimando 5 mil
moradores, dentre eles muitos judeus. A sinagoga atingida pela catástrofe também
precisou ser restaurada. Cem anos depois, 218 judeus viviam na cidade que tinha
uma população de 6 mil habitantes.
A partir da conquista de Napoleão e nos próximos sete anos em que Dubrovnik
esteve sob o governo francês, os judeus alcançam a igualdade jurídica, com a
anulação das medidas restritivas impostas pela administração anterior. Porém em
1815, quando a cidade passa a pertencer ao Império Austro-Húngaro, novas sanções
são impostas aos judeus de Dubrovnik. Passados 50 anos, as sanções já estão
suspensas e os judeus são autorizados a comprar imóveis, a exercerem uma gama
variada de profissões e a usufruírem plenos direitos jurídicos. Em 1830 a
sinagoga de Dubrovnik conta com 260 filiados.
Judeus croatas morrem em campos de concentração
Na 2ª Grande Guerra Dubrovnik cai nas mãos do exército italiano fascista. Em
abril de 1941 a Croácia estabelece um estado independente pró-nazista que
abrange as regiões onde hoje ficam as repúblicas da Bósnia e parte da Sérvia.
Quarenta mil judeus viviam nesse conglomerado, restando nove mil após a guerra
(perto de 3 mil foram enviados para o campo de Auschwitz). Os judeus de
Dubrovnik, em torno de 87, procuram refúgio nas ilhas do arquipélago Elafiti, no
mar Adriático, a uma hora de barco da cidade. Ao final do conflito, 28 deles
morrem no Holocausto e a maioria dos que sobrevivem imigra para Israel, Estados
Unidos e América do Sul.
Atualmente contam-se cerca de 30 judeus em Dubrovnik, ainda que o censo oficial
de 2001 só registre 17. O censo também listou 495 judeus em toda a Croácia que
no início da década de 1940 somavam 25 mil. Com a invasão nazista e a instalação
do governo fascista na Croácia, a comunidade judaica existente foi dizimada e
dentre os que sobreviveram ao Holocausto – cerca de 5 mil - muitos renunciaram a
sua cidadania para se estabelecer em Israel, a partir de 1948 quando se torna um
estado soberano.
Sinagoga é atingida por foguetes
Durante a guerra dos croatas contra os sérvios (1991/1992) pela independência da
Croácia da antiga Iugoslávia, Dubrovnik foi cercada e a sinagoga teve suas
janelas e telhados destruídos pela ação de foguetes e granadas. O prédio também
sofreu abalo em sua estrutura e parte do acervo histórico foi então levado para
os Estados Unidos. Em 1998, após decisão judicial, as peças são devolvidas. Uma
Torá originária da Península Ibérica e um tapete árabe ofertado pela rainha
Isabel da Espanha a seu médico judeu, ambos do século 13, são os objetos
considerados mais valiosos. Em 2003, o então presidente de Israel Moshe Katsav
em visita à Croácia conhece a sinagoga, cuja recuperação só se conclui em 1997.
Desde então, com o incentivo do governo croata, voos fretados de Israel para
Dubrovnik trazem em média 250 turistas semanalmente à cidade nas temporadas de
verão.
Um fato que merece menção no histórico da restauração da sinagoga é o empenho
solidário de um casal católico no processo. Em 1996, Otto e Jeanne Reusch após
visitarem o templo resolvem se engajar nos esforços de colher doações para a
fundação instituída em 1992, em Washington, com o intuito de reconstruir a
sinagoga, a “Rebuild Dubrovnik Foundation”. Em pouco tempo arrecadam 35 mil
dólares e um ano depois retornam a Dubrovnik e participam da reinauguração da
sinagoga.
Depois da guerra
A Kehilat (congregação) de Dubrovnik foi liderada pelo rabino Baruch Salamon até
maio de 1943 quando o religioso foi enviado a um campo de concentração e depois
executado. A guarda da casa de orações ficou então com a família Tolentino que
diante da ofensiva nazista escondeu entre amigos croatas os objetos religiosos e
de cerimonial da sinagoga que depois da guerra foram devolvidos à sinagoga.
Em 1992, novo contratempo: os rolos da Torá, os ornamentos de prata e cobre e
outros objetos valiosos da sinagoga são despachos para os EUA por conta da
guerra na Croácia. Na época líder da comunidade judaica, Michael Papo considerou
mais seguro liberar o acervo sagrado para bem longe do conflito com receio de
sua destruição ou de uma possível falta de cuidado, por parte dos judeus de
Dubrovnik, na sua preservação. Em 1998, vivendo em Nova York, Papo defendeu a
iniciativa afirmando que os casamentos fora da tradição judaica tinham devastado
o pouco de religiosidade que havia restado na comunidade, a tal ponto que o seu
sucessor não seria um judeu conforme prescreve a lei judaica (Halachá).
Entretanto, a Suprema Corte do estado de Nova York neste mesmo ano determinou o
retorno dos pergaminhos a Dubrovnik, entendendo que até as pequenas comunidades
judaicas merecem conservar os seus tesouros religiosos.
Uma questão que divide opiniões, já que muitas organizações judaicas temem o
desaparecimento desses objetos ou sua exposição em ambientes profanos face à
progressiva marcha de assimilação dessas comunidades. Por outro lado, estudiosos
de história e documentação, principalmente os que se dedicam ao registro das
comunidades judaicas da Idade Média na Europa central e oriental, argumentam que
a transferência dos objetos religiosos para os EUA e Israel contribuem para a
total extinção dessas comunidades, afastando-as de seu passado e negando-lhes um
possível futuro.
“Sinagoga sem judeus”
A esse respeito, as denominadas “sinagogas sem judeus” se inserem, sob uma
perspectiva mais ampla, na classificação de “monumentos” emblemáticos, aquelas
construções que à parte a sua arquitetura física e o ambiente muitas vezes
adverso representam momentos determinantes da história humana e dos quais são
exemplos notórios, pelo horror e crueldade, os antigos campos de extermínios
nazistas como o de Auschwitz. O esloveno Boris Pahor, de 100 anos, sobrevivente
do Holocausto, observa que a preservação desses lugares tem a valia de “dar
continuidade à presença dos mortos no mundo dos vivos”. Mas, em seu livro
“Necrópole” ele também externa sua preocupação quanto aos sentimentos e as
imagens que possam surgir nas mentes dos turistas que seguem o guia em suas
explicações. Isso porque Pahor, a partir de uma visita ao campo de concentração
onde foi prisioneiro dos nazistas em 1994, notou a falta de “familiaridade” e
talvez até de consciência do grau de degradação e de infâmia a que foram
submetidos, sem piedade, milhões de seres humanos.
Uma observação válida aplicável a todos os “monumentos” exaustivamente visitados
por legiões de turistas. E em se tratando da minúscula sinagoga de Dubrovnik não
caberia ser diferente. Entretanto, mantê-la aberta aos turistas, mesmo sem a
presença cotidiana de judeus e a familiaridade necessária, garante a sua
sobrevida e areja os seus aposentos. E mais: inspira momentos mágicos de
reflexão e um retorno à ancestralidade, numa espécie de conexão suprarreal para
além do mundo físico e limitado. Experiências e instantes atemporais percebidos
em vários desses “monumentos” judaicos que desafiam as regras das dimensões
universais, reinventando uma memória cósmica onde o passado e os mortos se fazem
presente acalentando a jornada dos viventes na terra.
Fontes :
Steve Rodan: “Dubrovnik’s question: Does a synagogue need Jews?” (JweeKly.com
/1998)
Rivka e Ban-Zion Dorfman: “Synagogues Without Jews” (Philadelphia: Jewish
Publication Society/2000)
United States Comission for The Preservation of America’s Heritage Abroad: “Jews
Heritage sites in Croatia-Preliminary Report” /2005)
Arthur Wolak: “A visit do Jewish Dubrovnik” (The Jerusalem Post/ 2008)
David Pessoa Carneiro: “Memórias da Guerra” (O Globo/2013)
(13 de setembro/2013)
CooJornal nº 857
Sheila Sacks é
jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
http://sheilasacks.blogspot.com
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