Histórias reais muitas vezes tornam-se
incríveis enredos para fantásticos roteiros cinematográficos ou mesmo séries
de televisão. O escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) na introdução do seu
livro “O Imaginário Coletivo” destaca que por trás de muitas notícias
esconde-se uma história pedindo para ser contada. “É a história virtual que
complementa ou amplia a história real”, assinala Scliar que por mais de 15
anos escreveu textos ficcionais para o caderno “Cotidiano” da Folha de
São Paulo tendo como base as reportagens do jornal.
Fonte de inspiração para a série de TV
israelense Hatufim (“Sequestrado”, em hebraico), a história de Gilad
Shalit, capturado pelo grupo radical Hamas que o manteve prisioneiro por mais
de cinco anos, traz ingredientes psicológicos interessantes capazes de
provocar desdobramentos e mudanças de ordem pessoal, religiosa e política nos
principais envolvidos no episódio.
Shalit era um soldado israelense de 19
anos quando em 25 de junho de 2006 militantes palestinos ligados ao Hamas
atacaram o posto militar onde servia na fronteira com a Faixa de Gaza e o
levaram. Durante o tempo em que esteve desaparecido a incerteza sobre o seu
destino – se estava morto, ferido ou continuava vivo – não impediu que
sucessivas campanhas por seu regresso ganhassem espaço e força em Israel e em
outras partes do mundo.
Em 2010, os pais de Shalit acompanhados
por ativistas empreenderam uma marcha de 12 dias, da Galileia a Jerusalém,
onde permaneceram acampados por mais de um ano em frente à residência do
primeiro-ministro Benjamim Netanyahu para pressionar o governo a assumir um
acordo que trouxesse o soldado de volta.
A libertação de Shalit ocorreu em 18 de
outubro de 2011, no Egito, após um acordo entre o governo de Israel e o Hamas.
Foram soltos 1.027 prisioneiros palestinos, 280 deles condenados à prisão
perpétua pela morte de civis israelenses. Falando à TV egípcia, pouco antes de
retornar a Israel, Shalit mostrou-se confiante de que a libertação de centenas
de prisioneiros em troca de sua vida pudesse contribuir para a paz entre
israelenses e palestinos.
Seriado
antecipa desfecho que comoveu a nação
Levando a assinatura de Gideon Raff – um
roteirista e diretor de filmes de 40 anos, nascido em Jerusalém e que estudou
cinema em Los Angeles -, o seriado Hatufim ou Prisioners of War
(“Prisioneiros de Guerra”, título em inglês) teve seus primeiros 10 episódios
exibidos pela TV israelense em 2010, entre março e maio. No mesmo ano foi
escolhida como a melhor série dramática pela Israeli Academy of Film and
Television, instituição que reúne 750 representantes da indústria
de TV e cinema do país.
Curiosamente, apesar do sucesso e das
críticas positivas, a segunda temporada da série, com 14 capítulos, só foi
produzida e apresentada dois anos depois, nos últimos meses de 2012, a reboque
do seriado norte-americano Homeland, baseado na criação do próprio Raff,
e que arrebatou os mais importantes prêmios da TV americana: os troféus
Emmy (2012) e Globo de Ouro (2013), ambos como a melhor série
dramática.
Embora explorando o tema do retorno à
pátria de militares capturados pelo inimigo, as séries Hatufim e
Homeland têm histórias e personagens diferentes. Na primeira, são dois os
soldados que regressam a Israel após 17 anos de cativeiro no Líbano em mãos de
extremistas islâmicos. A série se inicia com a troca dos soldados por
terroristas presos em Israel acusados de um atentado a bomba que matou dezenas
de pessoas. Os israelenses voltam com os restos mortais de um terceiro militar
morto em uma sessão de tortura e a partir daí a história gira em torno das
dificuldades dos personagens em superarem o trauma do cativeiro e se adaptarem
a um novo cotidiano. Também avaliações psicológicas revelam discrepâncias em
seus relatos e uma investigação é iniciada para descobrir o que eles possam
estar escondendo.
No roteiro desenvolvido por Howard Gordon
e Alex Gansa para a plateia norte-americana, o protagonista é um oficial dos
EUA que se acredita morto no Iraque, após ser capturado pela al Qaeda, e que
retorna ao país oito anos depois de seu sumiço. Resgatado do cativeiro é
saudado como herói pela população, mas surgem suspeitas em órgãos de segurança
de que ele faça parte de uma célula terrorista que planeja um ataque em solo
americano.
Em janeiro de 2013, ao receber o prêmio de
melhor atriz por seu trabalho em Homeland, a novaiorquina Claire Danes,
que protagoniza uma agente da CIA, declarou que a série é uma das
favoritas do presidente Barack Obama. “Isso deixa claro a relevância do
trabalho. A história fala da ansiedade e do desassossego que vivemos como
sociedade, em uma nova era onde não está claro quem é o inimigo”, disse.
Dentro dessa percepção, o atentado ocorrido na maratona de Boston, em 15 de
abril, que resultou na morte de 3 pessoas e teve 264 feridos, muitos deles com
mutilações e queimaduras, é um exemplo trágico dessa nova realidade. Os
autores do crime, os irmãos Tsarnaev nascidos na Chechênia, viviam nos EUA e
eram cidadãos americanos.
Esse tema, aliás, do inimigo que está
entre nós, em nossa casa, tem mexido com a cabeça de roteiristas mundo afora.
Em 2013, a franquia de Hatufim ganhou novos espaços e o seriado vai ser
produzido na Rússia e no México, com histórias adaptadas as suas realidades.
No
cativeiro, Shalit ouviu rádio e assistiu TV
Mas, voltando a Shalit, seis meses depois
de sua volta ele se desligou oficialmente do exército israelense e logo em
seguida tornou-se colunista esportivo do jornal Yediot Aharanot, o mais
lido do país. Em seu primeiro artigo, Shalit contou que o amor pelos esportes
o ajudou a suportar os anos de cativeiro e foi capaz de prover alguma conexão
pessoal com seus captores. Fã de futebol e basquete, ele acompanhava os jogos
dos times israelenses através da rádio e os campeonatos das ligas europeias
nos canais de TV árabes. “Engajar-me no esporte me deu força para não
desistir”, escreveu. Era uma espécie de pausa temporária da realidade ao meu
redor.” E acrescenta: “Nas conversas acerca dos jogos, o denominador comum era
o esporte. Sobre política eu nunca concordei em falar com eles.”
Em outubro de 2012, para marcar um ano da
libertação do ex-refém, a TV israelense (Canal 10) exibiu um documentário a
partir de alguns relatos pinçados na imprensa. A correspondente para o Oriente
Médio da BBC, Yolande Knell, comentando o conteúdo do documentário,
observou: “Em um trecho, Shalit revela que para lidar com a ansiedade e o
tédio do cativeiro ele desenhava mapas de sua cidade natal Mitzpe Hilla, para
lembrar, imaginar os lugares. Disse que tentava ser otimista e se focar nas
pequenas e boas coisas que tinha, e que seus sequestradores o alimentavam bem,
jogavam xadrez e dominó e quase nunca o agrediam. Podia assistir a notícias na
televisão em árabe, e depois acabou ganhando um rádio onde podia ouvir
estações israelenses. E que, às vezes, assistia junto aos sequestradores os
programas de esportes e filmes na TV.”
Operação
militar matou planejador do sequestro
Um mês depois da apresentação do
documentário, em 14 de novembro, o comandante das Brigadas Izz el-Deen
al-Qassam (braço armado do Hamas), Ahmed al-Jabari, 52 anos, morreu durante
uma operação militar israelense na cidade de Gaza. O carro que dirigia foi
atingido por um projétil seletivo e se incendiou. Jabari foi o carcereiro de
Shalit e gerenciou toda a operação de custódia do prisioneiro, transportando-o
por cinco anos para diferentes esconderijos até a sua libertação. Inclusive
esteve presente na entrega de Shalit para os intermediários egípcios em Rafah,
na fronteira com o Sinai, em uma das poucas vezes em que apareceu em público.
Nascido em Gaza, Jabari foi do grupo
palestino Fatah e depois se ligou ao Hamas, financiando e dirigindo atentados
terroristas contra Israel. Ele planejou o ataque suicida a um ônibus em Kfar
Darom, na faixa de Gaza, que matou 7 soldados israelenses e um civil, em
1995. Por ocasião da Segunda Intifada, o período de 2000 a 2006 marcado por
sucessivos confrontos entre militantes palestinos e forças israelenses na
Cisjordânia e Faixa de Gaza, Jabari direcionou vários ataques a bomba contra
Israel, matando centenas de civis. Foi também o responsável pela escalada de
ataques com foguetes de forte poder destrutivo às cidades israelenses
densamente povoadas como Ashkelon, Ashdod e Beersheva, no sul do país. Somente
em 2012, mais de 800 foguetes de médio e longo alcances foram disparados pelo
Hamas contra o território israelense e a operação militar “Pilar Defensivo”,
na qual Jabari foi morto, teve o propósito de eliminar os locais de
treinamento e de lançamentos desses foguetes.
Sem
sentimentos de vingança
Com a morte de Jabari, o semanário alemão
Der Spigel – um dos mais importantes da Europa com circulação semanal
de 900 mil exemplares – enviou seu jornalista político Dieter Bednarz para uma
entrevista com Shalit em Israel. O encontro se deu na Galileia, na casa de
dois pavimentos onde o ex-prisioneiro reside com os pais. O repórter alemão
conta que Shalit disse não ter percebido a presença de Jabari ao seu lado no
dia da libertação. “Eu só olhava para frente, não para o lado ou para trás”,
justificou. Contudo, fotos publicadas na mídia mundial mostram Jabari e Shalit
juntos, lado a lado, de uma forma que fica difícil supor que ambos jamais se
comunicaram.
Sobre os anos de cativeiro, segundo o
repórter, Shalit se mostrou hesitante, parecendo lutar com cada frase que
pronunciava. Ele revelou que não sentiu satisfação quando soube da morte de
Jabari porque nem mesmo conhecia a pessoa. Mais adiante, o repórter assinala
uma frase dita por Shalit que o impressionou: “The killing has to stop” (“a
matança tem que parar”, em tradução livre).
Na reportagem, Bednarz destaca que após
essa mensagem a conversa foi interrompida pelo pai de Shalit, com a alegação
de que o filho precisava ser deixado em paz, pois não é uma figura pública (“the
boy needs to be left alone. Gilad isn”t a public figure”). Para o jornalista,
Shalit não demonstrou sentimentos de vingança, apesar dos anos de cativeiro e
da provação pela qual passou. No dia da entrevista, destacou Bednarz, sua
ansiedade era para assistir na TV uma partida de futebol entre os times
ingleses do Arsenal e Tottenham.
Meses antes, Shalit tinha estado no set de
Homeland, em Jaffa, cuja produção filmou algumas cenas em Israel, sendo
fotografado ao lado de Claire Danes.
Biografia
inédita a caminho
Mas, ainda que Shalit procure se manter
afastado das questões políticas e tente viver uma vida normal, situações
ocorrem em que ele se vê envolvido de alguma forma com seu passado. Foi o que
ocorreu na Catalunha, em 2012, quando resolveu assistir a um jogo entre os
times do Barcelona e do Real Madri e houve manifestações contra a sua presença
no estádio. Segundo Shalit, ele foi acompanhado por uma equipe de segurança em
função das ameaças de protesto por grupos pró-palestinos.
O incidente causou constrangimento ao
clube e a direção do Barcelona emitiu uma nota afirmando que não convidou
Shalit para o jogo, apenas aceitou seu pedido para ver uma partida durante a
visita que faria a cidade. O clube ainda informou que esse procedimento foi
estendido a três representantes palestinos.
Enfim, vai ser difícil Shalit se
desprender de um passado que mobilizou uma nação durante meia década e que
envolveu decisões políticas delicadas e embaraçosas, como a libertação de mais
de mil presos palestinos, muitos deles autores confessos de crimes de
terrorismo que resultaram em mortes de civis.
Em outubro próximo, por ocasião do segundo
aniversário de sua libertação, três jornalistas investigativos prometem lançar
um livro sobre o ex-prisioneiro do Hamas, com base em documentos e material
inédito. As pesquisas foram iniciadas no ano passado e vão incluir informações
até então não publicadas por questões de segurança, gravações e depoimentos
dos pais e do próprio Shalit. Um indício de que a história de Shalit ainda
guarda muitos segredos que talvez não se revelem totalmente nesse primeiro
livro. De qualquer maneira, o tema já se mostrou um prato cheio em se tratando
de tensão psicológica, conflitos morais e situações-limite, componentes
dramáticos que acompanham um militar em seu retorno à pátria após um punhado
de anos convivendo com a realidade e a verdade do inimigo.
(24 de maio/2013)
CooJornal nº 841
Sheila Sacks é
jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
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