“Ao preço médio de 500 dólares cada, a
‘propriedade’ humana dos donos de escravos valia em torno de 2 bilhões de
dólares, uma quantia astronômica na década de 1860. Assim, a abolição da
escravatura nos Estados Unidos, sem compensações econômicas, se constituiu na
maior expropriação de propriedade privada capitalista até a revolução russa de
1917” (Kevin Anderson, sociólogo e escritor)
O filme Lincoln, de Steven Spielberg,
mostra de forma contundente que a política não é o exercício platônico,
solitário e idealizado de pretensões justas conjugadas com ações eticamente
corretas. A compra do apoio de parlamentares do Partido Democrata à causa da
abolição da escravatura nos Estados Unidos pontua o enredo que buscou suas
fontes históricas no livro de Doris Kearns Goodwin, uma pesquisadora e autora
de biografias que trabalhou na Casa Branca de 1967 a 1969, durante a
administração do presidente Lyndon Johnson.
O best-seller, que vendeu 1,5 milhão de
exemplares quando de seu lançamento em 2005, Team of Rivals: The political
Genius of Abraham Lincoln ou, em tradução livre, Equipe de rivais: o
gênio político de Abraham Lincoln, inspirou Spielberg a adentrar no
pragmático mundo dos jogos políticos e das escaramuças verbais. Nesse cenário,
o público acompanha um Lincoln determinado a aprovar, em janeiro de 1865 ao
final de seu primeiro mandato, a 13ª emenda que tornava a escravatura
inconstitucional; o conflito com o seu núcleo íntimo de assessores de gabinete
– a princípio cético em relação à conquista dos votos necessários para a
vitória; e o embate com um Congresso dividido e sob pressão de uma guerra
civil.
Empenhado em fazer valer a sua vontade, Lincoln
apoia uma série de manobras que a ética em seu sentido mais puro certamente
condenaria. Parlamentares opositores em fim de mandato e não reeleitos são
cooptados para votarem a favor da abolição, com oferta de dinheiro e cargos na
administração pública. Uma prática que, passados 147 anos, ocupou as primeiras
páginas dos jornais brasileiros por mais de quatro meses naquele que foi o
mais midiático julgamento de políticos dos anais da história brasileira: a
Ação Penal 470 do Supremo Tribunal Federal (STF). Um processo de 50 mil
páginas que demandou quatro anos de investigações, arrolou 600 testemunhas e
condenou 25 acusados.
Perdas, sanções e cassação
Spielberg adquiriu os direitos do livro sobre
Abraham Lincoln antes mesmo da historiadora Goodwin começar a escrever a obra.
Em entrevista à jornalista Ana Maria Bahiana para o portal UOL, o diretor
norte-americano disse que se interessou pelo livro porque a autora abordaria o
talento de Lincoln como estrategista político. “Queria evitar a todo custo
cair na adoração de Lincoln. Meu objetivo sempre foi abordar Lincoln como um
homem, e não como um monumento”, explicou.
Por uma dessas coincidências interessantes, em
2005, quando da publicação do livro de Goodwin que revelava as estratégias
políticas pouco ortodoxas praticadas por Lincoln com o intuito de emplacar a
13ª emenda, a Folha de S.Paulo estampava uma denúncia sobre a
distribuição de dinheiro a congressistas assinada por Renata Lo Prete. Na
entrevista à jornalista, publicada em 6 de junho, o então deputado federal
Roberto Jefferson, líder do PTB, afirmava que o tesoureiro do PT, Delúbio
Soares, pagava um “mensalão” a parlamentares em troca de apoio no Congresso.
Uma mesada de R$ 30 mil distribuída a representantes de partidos da base
aliada.
Sete anos depois, o procurador-geral da República
Roberto Gurgel, em sua exposição no STF, repetia o conhecido bordão “os fins
não justificam os meios” e requeria a prisão dos envolvidos com o suposto
“esquema do mensalão” – alguns deles do núcleo de assessores do gabinete da
Presidência, outros com mandatos parlamentares. Assegurando que houve grande
movimentação de recursos antes de votações importantes para o executivo, como
as das reformas tributária e previdenciária, em 2003, no primeiro governo do
presidente Lula, o procurador pediu perdas de cargo, sanções patrimoniais
(devolução de dinheiro) e cassação de eventuais aposentadorias. “Altas
autoridades devem servir de paradigma para a sociedade”, justificou,
sublinhando que o caso “maculou gravemente a República” (“Gurgel pede
condenação de 36 réus e prisões no final do julgamento” – O Globo em
03.08.2012).
Prova de liderança
Em contraposição às penalidades da Justiça e ao
linchamento midiático sofrido pelos acusados do mensalão, o aliciamento e o
suborno praticados pelo presidente Lincoln e seu grupo de assessores nos
bastidores da votação da emenda abolicionista apresentados no filme de
Spielberg não foram objetos de repúdio nem de condenação penal. Para a
historiadora e professora da escola de administração da Universidade de
Harvard, Nancy F.Kohen, a atuação de Lincoln ensina muito sobre como conduzir
uma empresa na economia de hoje. Em artigo para o New York Times
(“Lincoln: uma aula de administração”, em tradução livre) ela ressalta que o
filme, ao acompanhar os esforços de Lincoln para aprovar a 13ª emenda, oferece
uma prova de sua liderança. E cita dois exemplos de virtudes do 16º presidente
norte-americano: ter uma meta e persistir em sua obtenção e ser flexível
quando necessário.
Essas qualidades, portanto, englobariam até
estratégias variadas de atrair votos oferecendo vantagens, como de fato
aconteceu sob o comando de Lincoln, sem que os estratagemas despertassem
possíveis condenações e prisões, talvez em virtude da grandeza e importância
moral da missão. As negociatas, barganhas e compra de votos são tratadas pelos
críticos de cinema em suas apreciações na mídia nacional como “um complexo
processo de negociações”, “articulações políticas” e “táticas para abolir a
escravatura e pôr fim à Guerra Civil nos EUA”.
O filme também mereceu a atenção do jornalista
Elio Gaspari, que escreveu: “Spielberg fez seu filme tratando das poucas
semanas durante as quais Lincoln dobrou a Câmara dos Deputados, aprovou a 13ª
emenda à Constituição e acabou com a escravidão nos Estados Unidos” (“A festa
de Abraham Lincoln” – Folha de S.Paulo, em 27/1/2013). O verbo dobrar
aí entendido como “domar”, “vergar”, “vencer”.
Lado errado da história
Curiosamente, o único questionamento à história
envolveu o roteirista e dramaturgo Tony Kushner, ganhador do prêmio Pulitzer
pela peça teatral Angels in America e coautor do roteiro de Munique
(2005), também filmado por Spielberg. Ele foi acusado de erro histórico por um
representante de Connecticut, o democrata Joe Courtney, que lamentou a cena em
que dois congressistas de seu estado votam contra a abolição da escravatura.
“Como parlamentares de Connecticut — um estado que apoiou o presidente Lincoln
e perdeu milhares de seus filhos lutando contra a escravidão ao lado da União
na Guerra Civil — poderiam estar do lado errado da história?”, protestou
Courtney. Uma falha que levou o roteirista de Lincoln a se desculpar
publicamente. Afinal, quem em sã consciência quer ficar do lado errado da
história?
No artigo “O Lincoln de Spielberg, Karl Marx e a
Segunda Revolução Americana”, o escritor e professor de sociologia e ciências
políticas na Universidade da Califórnia Kevin Anderson lembra que, com a
libertação dos escravos nos Estados Unidos, cerca de quatro milhões de negros,
13% da população do país, foram alçados ao patamar de homens livres e a
façanha de Lincoln foi alvo dos cumprimentos do filósofo alemão Karl Marx, que
meses antes havia enviado uma carta pública em nome da recém-fundada
Associação Internacional dos Trabalhadores de Londres (a primeira
Internacional Socialista) ao presidente republicano, parabenizando-o pela
reeleição e “a morte da escravatura”.
No caso brasileiro, talvez o autor de O
Capital, se vivo fosse, também já teria despachado um e-mail de
congratulações ao presidente Lula extensivo a seus assessores diretos pelas
ações ensejadas a partir de seu primeiro mandato para libertar do jugo imoral
da miséria 16,5 milhões de brasileiros, custasse o que custasse. E registre-se
que em setembro de 2012 as “mesadas” do Bolsa Família já atendiam 13,7 milhões
de famílias, com um valor médio de 150 reais e podendo chegar até 306 reais,
de acordo com o número de filhos menores e em idade escolar.
No mais: estudo recente do Banco Mundial
(04.02.2013) apontou o trabalho como o fator que mais contribuiu para que as
pessoas saíssem da pobreza extrema no Brasil com o aumento de seus
rendimentos: 52% contra 32% que melhoraram seu nível de vida com o Bolsa
Família. Ficando os 16% restantes por conta dos jovens que se iniciaram no
mercado de trabalho e passaram a colaborar na renda familiar. Uma vitória
social, sem guerras nem derramamento de sangue, que Lincoln aplaudiria de pé.
(22 de fevereiro/2013)
CooJornal nº 828
Sheila Sacks é
jornalista e trabalha em Assessoria de Imprensa na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
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