“O sentido da revelação é
concedido àqueles que têm a mente desarmada para o mistério” (Abraham Joshua
Heschel)
Talvez o mais antigo e misterioso de todos os textos do judaísmo místico, o
Sêfer Ietsirá (O Livro da Criação), que trata das origens do mundo, tem sido
estudado por teólogos, filósofos e historiadores ao longo de mais de dois mil
anos. O rabino norte-americano Arieh Kaplan, falecido aos 48 anos, em 1983,
foi um dos inúmeros eruditos que se debruçaram sobre esse pequeno texto (1.300
palavras, em sua versão curta) envolto em superstições e proibições, em razão
das dificuldades que o mesmo apresenta para o seu entendimento. De forma
generosa e até ousada, Kaplan, que antes de se dedicar aos estudos da teologia
judaica trabalhou como físico para o governo dos Estados Unidos, se dispôs a
realizar a difícil tarefa de tornar mais acessível aos leigos, através de suas
pesquisas, análises e comentários, os ditos e as expressões contidos neste
texto milenar.
Na apresentação da tradução brasileira, o maçom e estudioso da Cabalá (a
dimensão mística do judaísmo), o paraense Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona,
alerta para a complexidade da obra. “Este não é um livro fácil”, escreve.
“Necessita de pré-requisitos para ser aprendido.” O tradutor lista então
certas condições indispensáveis ao leitor para o entendimento da obra:
equilíbrio emocional, persistência, determinação, tranquilidade e merecimento,
esse último item a ser atingido pela caridade e reza. Erwin também aconselha
que a leitura do texto seja compartilhada por duas pessoas, porque “o
praticante solitário pode, em dado momento, perder a noção do que é realidade
e imaginação”.
À parte esses cuidados, Erwin Von-Rommel faz uma afirmação empolgante:
assegura que para o neófito o livro se constituirá na porta de entrada para os
mistérios do Universo. Dando como exemplo a sua própria experiência como
estudioso da Cabalá (‘recebimento’, em hebraico), ele diz que comprovou, no
campo material, o poder dos ensinamentos interpretados e analisados por
Kaplan, que lançam maiores luzes no conteúdo desse texto obscuro com “fortes
insinuações mágicas”.
Texto remonta ao patriarca Abraham
Os primeiros comentários conhecidos sobre o Sefer Ietsirá datam do século 10.
À época, o rabino Saadia Gaon atribuiu a sua origem ao patriarca Abraham (Avraham),
o primeiro hebreu da história. Nascido na Mesopotâmia no século 18 antes da
Era Comum (atual Iraque), o patriarca viveu e morreu em Canaã (hoje Israel),
sendo versado nos mistérios da astrologia e das letras hebraicas. Daquele
início da trajetória do povo de Israel até os séculos seguintes, os
ensinamentos teriam sido passados oralmente através das gerações. Entretanto,
algumas fontes dizem que já havia comentários escritos sobre o Livro da
Criação no período do Segundo Templo (516 a.E.C. a 70 E.C.).
Um dos envolvidos nos mistérios do Sêfer Ietsirá seria Menhachem, o essênio,
que profetizou que Herodes seria rei. Essa seita judaica monástica e ascética
que vivia no deserto, em Qumran, a 32 quilômetros de Jerusalém (do século 2
a.E.C. até o século 1) e cujos rituais e práticas foram conhecidos com a
descoberta dos rolos do Mar Morto, em 1947, mantinha um comportamento
religioso ortodoxo e rigoroso no cumprimento das leis de Moisés. O historiador
Flavio Josefo (século 1), em seu livro sobre as guerras judaicas contra os
romanos, afirma que os essênios podiam predizer o futuro mediante diversas
purificações e métodos dos profetas. Eles tinham desapego aos bens materiais e
se empenhavam na busca da evolução espiritual. Menachem teria sido morto pelos
soldados romanos no ano 4 a.E.C., segundo o historiador israelense Israel
Knohl. Outra figura histórica que teria vivido na comunidade de Qumran seria
Yochanan ha-Matbil - João, o Batista, que morreu em 25 da E.C. O teólogo
alemão Otto Betz assinala que o pregador recebeu forte influência mística da
seita, principalmente no tocante às orações e hinos.
Letras e números formam os caminhos
Mas, é no século 16 que surge a versão escrita do Sêfer Ietsirá mais aceita
pelos cabalistas, devido ao refinamento do texto e por estar em concordância
com o Sêfer ha-Zohar (O Livro do Esplendor) – a obra principal e mais sagrada
da Cabalá. Finalizada pelo rabino Isaac Luria (1534-1572), em Jerusalém, o
texto comporta 1.800 palavras. O interessante é que muitos estudiosos
especulam que os ensinamentos originais seriam limitados a 240 palavras.
Segundo Kaplan, a obscuridade do texto impõe uma cuidadosa análise de cada
palavra e sua correspondência na literatura bíblica (Torá/Pentateuco, Neviim/
Profetas e Ketuvim/Escritos) e talmúdica (de Talmud, do hebraico
‘aprendizado’, obra de compilação, comentários e interpretação das leis e
tradições judaicas). Quando o Sêfer Ietsirá se inicia assinalando que “com 32
caminhos místicos de Sabedoria gravou Yah (o Eterno)”, esse número corresponde
a soma das 22 letras do alfabeto hebraico com os 10 dígitos ou dez Sefirot –
as fontes nas quais os números se originam.
Os cabalistas observam que esses 32 caminhos são aludidos na Torá (do hebraico
‘ensinamento’) no capítulo do Gênesis, quando 32 vezes aparece o nome de D’us
no relato da Criação. Outro detalhe significativo: o número 32 é escrito em
hebraico com as letras Lamed e Bet, que se lê Lev, a palavra hebraica para
coração. Também a primeira letra do Gênesis é justamente Bet, da palabra
Bereshit (No princípio), e a última letra do Torá é Lamed, de Israel, formando
novamente a palavra coração. É importante ressaltar que a Torá é vista como o
coração da Criação, sendo as letras entendidas tanto como responsáveis pelo
começo do mundo – já que em cada ato da Criação está escrito “D’us disse“ –
como também por sustentá-lo constantemente. Acerca da Torá, um dos muitos
mestres do texto bíblico, o rabi Elazar ben Padat que chefiou a academia de
Tiberíades, na Terra Santa, em 279 da E.C., defendia os poderes existentes no
livro sagrado: “Os parágrafos da Torá não estão em ordem. Se estivessem na
ordem correta, qualquer um que lesse seria capaz de ressuscitar os mortos e
fazer milagres.”
Segundo a tradição judaica os patriarcas através de suas visões proféticas
transmitiam oralmente a Lei de D’us. Só mais tarde, Moshé (Moisés), o maior
profeta e líder do povo hebreu, colocou parte dessa tradição por escrito na
Torá. Mas o nível de interpretação mais secreto continuou sendo transmitido
oralmente por Moshé para alguns iniciados, os nistarim (literalmente ‘os
ocultos’).
Passado, presente e futuro juntos
Para Kaplan, se um indivíduo deseja obter uma experiência mística e
aproximar-se da dimensão da Sabedoria (a Mente pura e indiferenciada), ele
deve percorrer os 32 caminhos que os cabalistas antigos definem como
“diferentes estados de consciência”. No livro “Universo Kabbalístico”, o
inglês Z’ev bem Shimon Halevi, 79 anos, escritor e professor de Cabalá, ensina
que as 10 Sefirot são ligadas por 22 caminhos-fluxo de letras que formam uma
rede de subsistemas.
Essa busca pela Sabedoria é um anseio que persiste na alma humana indiferente
ao progresso científico e tecnológico. O Talmud declara: “Quem é sábio? Aquele
que percebe o futuro”. Kaplan explica que a Sabedoria é a força mental pura
que transcende o tempo. “No nível da Sabedoria, o passado, o presente e o
futuro ainda não foram separados. Portanto nesse nível, alguém pode ver o
futuro exatamente como o passado e o presente.”
Ainda sobre a relação das Sefirot com o tempo, existe um dado interessante
explicitado pelo cabalista Moisés ben Nachman, há 800 anos, no século 12. No
livro “O Poder da Cabala”, o rabi Yehuda Berg, codiretor do “Kabbalah Centre”
e autor de “Os 72 Nomes de D’us” (livro de exercícios de meditação), cita esse
conceito de que existe um segredo cabalístico por trás da frase “Seis dias de
Criação”, já que “um D’us todo-poderoso não necessitaria de qualquer
quantidade de tempo para criar um Universo”. Os dias da Criação seriam as seis
dimensões (sefirot) das 10 que precederam o nascimento de nosso Universo. Isso
porque a Criação não tem nada a ver com o conceito de tempo conforme nós
conhecemos. “Trata-se de um código para a união de seis dimensões do mundo
superior em uma. As quatro que restam são as precursoras de nosso universo
tridimensional (largura, comprimento e altura) e da quarta dimensão de
espaço-tempo.” Assim, a realidade existiria em 10 dimensões, sendo que seis
delas compactadas em uma.
Berg assinala que os nossos cinco sentidos nos impedem de ver ou experimentar
a dimensão do tempo. ”São unicamente os limites de nossa consciência que nos
impedem de perceber o ontem e o amanhã nesse exato momento.” Ele dá como
exemplo um prédio de 30 pavimentos em que o observador esteja em um
apartamento no 15º andar. Os andares abaixo, do 1 ao 14, representam o
passado, o tempo que o trouxe até este momento. Os andares de 16 a 30
representam o futuro. Mas, o observador através dos seus cinco sentidos
somente vê onde está, no 15º andar. Contudo, todos os andares existem - isto
é, o passado, o presente e o futuro - como um todo unificado. E se ele for
para fora do edifício e olhar de longe, poderá ver todos os 30 andares juntos.
Letras hebraicas como símbolos
Sobre a mística das letras hebraicas, o rabino Kaplan chama a atenção para os
três aspectos que envolvem a interpretação das letras: 1 – a representação
física, que é a maneira como elas são no texto; 2 - seu valor numérico (guematria),
quando cada letra representa um número; 3 – a sonoridade da letra e o modo
como é pronunciada. No primeiro aspecto, a forma física da letra no texto (sêfer)
está vinculada ao espaço, visto que sua forma só pode ser definida no espaço,
ou seja, no Universo. Sua utilização como número (sefar) implica em sequencia,
que tem correspondência no tempo, ou Ano. Quanto ao som da letra, esse aspecto
a remete à narração ou comunicação (sipur) e aplica-se à mente e à dimensão
espiritual, ou à Alma.
Um dos mais importantes eruditos judaicos, Iehuda Halevi, nascido em Toledo em
1075, afirma que as letras hebraicas não são meros sinais. Elas simbolizam com
exatidão aquilo que designam. Em sua obra “Cuzari”, no capítulo sobre a
santidade e a importância do idioma hebraico, ele assinala: “Não surpreende,
portanto, que certas invocações ou amuletos feitos com estas letras sejam
eficazes.”
Está escrito no Sêfer Ietsirá: “E criou Seu universo com três livros/com texto
(Sêfer)/com número (Sefar)/e com comunicação (Sipur).”
Segundo Kaplan, essas três palavras (sêfer, sefar e sipur) definem a palavra
sefirá (dimensão) e seu plural, sefirot. Na Cabalá, as 10 Sefirot são os
conceitos básicos da existência, os canais pelos quais as emanações divinas
fluem, e os meios através dos quais o homem se comunica com D’us. Todos os
nomes das sefirot são derivados da Escritura: Kéter (Coroa), Chochmá
(Sabedoria), Biná/Dáat (Entendimento/Conhecimento), Chéssed (Amor), Guevurá
(Força), Tiféret (Beleza), Nêtsach (Vitória), Hod (Esplendor), Iessód
(Fundação) e Malchut (Realeza). Em sentido místico as sefirot se constituem em
uma escada através da qual se pode ascender e se aproximar do Infinito.
De acordo com os comentaristas, o “princípio, a causa” é Kéter, e o “fim, o
efeito” é Malchut, os pontos terminais das dimensões espirituais. Kéter também
é identificado como “a Vontade”, a causa de todas as ações. Por estar mais
perto de D’us, Kéter é chamada de “o Bem”. Já a sefirá Malchut, por ser a mais
afastada e estar na direção oposta de D’us é dita como “o Mal”, com a ressalva
de que o termo está associado aos estágios inferiores da Criação. A disposição
completa das Sefirot é chamada de “A Árvore da Vida” e também está associada
ao sonho de Yacoov (Jacob) – o terceiro e último patriarca hebreu, mais tarde
chamado de Israel - representado por uma longa escada apoiada na terra, cujo
topo se estende céu adentro.
As bases para a meditação
Segundo Rambam – o médico e rabino Moisés Maimônedes (1135-1204), nascido em
Córdoba e um dos mais reverenciados teólogos da história judaica – “todo o
despertar de baixo motivo um despertar de cima”. Significa que quando se eleva
mentalmente alguma coisa a sua essência espiritual, similarmente também se faz
descer o sustento espiritual a esse objeto particular. Essa correspondência,
para os cabalistas, pode gerar mudanças físicas no mundo.
A respeito do mundo físico, a questão mais básica para muitos estudiosos se
concentra na indagação: por que D’us criou um mundo físico? Qual o motivo da
existência de um mundo físico, se D’us criou o universo pra dar o Bem a sua
Criação e este Bem é puramente espiritual. Sabemos que o espaço físico só
existe no mundo físico. No espiritual, não há o espaço na forma que
conhecemos. Kaplan explica: “D’us criou o conceito de espaço. As coisas
espirituais podem se ligar ao material do mesmo modo que a alma está ligada ao
corpo. E o fato de o bem e o mal existirem no mesmo espaço físico também
permite o bem superar ao mal neste mundo.”
Dessa forma, para influenciar alguma coisa no universo físico, deve-se fazer
uso da forma física das letras hebraicas. Isso envolve técnicas de meditação
que consistem em visualizar determinadas letras ou a combinação apropriada de
letras, eliminando todos os outros pensamentos da mente. Por outro lado, para
influenciar na dimensão espiritual, usa-se o som das letras ou de seus nomes.
Entretanto, o anseio de alcançar a Sabedoria (Chochmá), um estado puro de
consciência não-verbal, esbarra na dificuldade de esvaziar a mente dos
devaneios e reflexões que habitam normalmente os pensamentos das pessoas. As
técnicas de meditação consistem em eliminar, por momentos – e através dos
exercícios ir estendendo o tempo desses momentos – os pensamentos que habitam
nossa mente, através da visualização ou repetição das letras hebraicas.
No Sefer Ietsirá está dito: “Ele as gravou (as 22 letras), esculpiu, permutou,
pesou, transformou...”. Kaplan explica que cada letra representa um tipo
diferente de informação e através das diversas manipulações das letras, D’us
criou todas as coisas. Nota-se que as letras hebraicas têm três partes
básicas: topo, centro e base. O topo e a base são feitas de linhas horizontais
grossas, e o centro constituído de linhas verticais finas, como fossem lados
de paredes a separar uma letra da outra. A meditação consiste em focalizar as
letras hebraicas escolhidas, visualizando-as (gravando-as em sua mente),
fazendo-as preencher toda a consciência, permutando-as ou manipulando-as
através de seus valores numéricos e diferentes códigos. Escrever ou recitar as
combinações das letras funcionaria como uma espécie de mantra para alcançar o
estágio superior de consciência.
Essas técnicas, porém, funcionariam apenas como meios para limpar a mente de
todo o pensamento. A experiência real das Sefirot só ocorre quando a pessoa se
encontra em um estágio em que todos os processos pensantes estão silenciados e
a mente se fecha a todo pensamento verbal e descritivo. Daí a recomendação do
Sêfer Ietsirá: “Refreia tua boca de falar e teu coração de pensar.”
Os 231 portões da Criação
O Sêfer Ietsirá também faz uma conexão das 22 letras hebraicas com “231
Portões”. Segundo os cabalistas antigos, as letras que formam a palavra
Yisrael (Israel) igualmente formam a palavra Yeshrla, que significa “existem
231”. É uma alusão de que a Criação teve lugar através de 231 portões. Outra
constatação: o número 231 representa a quantidade de modos que duas letras
diferentes do alfabeto hebraico podem ser conectar. Este também é o número de
palavras de duas letras que podem ser formadas, sempre que a mesma letra não
se repita e a ordem não seja considerada.
A meditação a respeito das conexões das 22 letras com os 231 portões é
mostrada por Kaplan através da apresentação de vários quadros e tabelas em
diferentes disposições das letras hebraicas e números formando sistemas de
códigos, sequências e associações adotados por eruditos e cabalistas através
dos séculos. Ele afirma que a utilização de Nomes Divinos também é efetiva na
meditação, especialmente o Tetragrama, o nome mais elevado de D’us, que
escrito com as letras hebraicas Yud, Hei, Vav e Hei unifica todas as Sefirot.
Ainda sobre o Eterno, o Séfer Ietsirá declara: “Mestre único, D’us, Rei fiel”.
Kaplan observa que ao descrever D’us, o livro não emprega a palavra Um (Echad,
em hebraico), mas afirma que Ele é Único (Yachid), isto é, Ele é tão
absolutamente único que não existe qualidade alguma que Lhe possa ser
atribuída. “Embora não possamos dizer o que Deus é, pelo uso de atributos
negativos nós podemos dizer o que Ele não é. Do mesmo modo, com atributos de
ação, nós podemos falar o que D’us faz.” Em hebraico, a frase em questão se lê
“El Melech Neeman” e as letras iniciais de cada uma das palavras formam o
termo hebraico “Amen”, usado nas orações judaicas.
Enfim, o mistério do simbolismo está presente em todos os ensinamentos do
Sêfer Ietsirá e Kaplan admite a complexidade em se entender suas expressões
visto que todo o conceito do não-físico é de difícil compreensão para o ser
humano. Um dos mais importantes teólogos judaicos do século 20, Abraham Joshua
Heschel (1907-1972) dizia que a percepção da glória é uma ocorrência rara em
nossas vidas. Isso porque, segundo ele, o homem falha em responder ao
acontecimento do milagre. “Essa é a tragédia de toda a humanidade: ofuscar o
milagre com a nossa indiferença. A vida é rotina, e a rotina é a resistência
ao milagre” (do livro ‘Deus em Busca do Homem’). E de fato, recorrendo ao
Zohar, a obra máxima da Cabalá (compilada e escrita pelo Rabi Shimon bar
Yochai, no século 2), lá está dito: “Abram para mim uma abertura do tamanho do
buraco de uma agulha, e Eu lhes abrirei os portões celestiais”.
* ”The Creation of the World” - pintura de 1906, de Mikalojus Ciurlionis