Sheila Sacks
Primavera árabe: as
ambiguidades do governo brasileiro
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Ao se declarar contra o apedrejamento de mulheres no Irã, logo após
assumir a presidência em janeiro, e se alinhar a favor do envio de um
relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) àquele país
para apurar denúncias de violações de direitos humanos, a presidenta
Dilma Rousseff ouriçou os comentaristas políticos e editorialistas dos
grandes jornais, que imediatamente enxergaram uma mudança de rumo na
política externa brasileira.
A ducha de água fria veio com a posição do Planalto em negar à
ativista iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz em 2003, uma
audiência pessoal com a presidente Dilma. Uma das principais vozes de
oposição ao regime de Mahmoud Ahmadinejad, a advogada e ex-juíza, de
63 anos, que vive exilada na Inglaterra desde 2005, esteve em
Brasília, no início de junho e, diante da impossibilidade de ser
recebida pela presidente brasileira, se absteve de se encontrar com o
assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio
Garcia, indicado para atendê-la. Ainda em Brasília, no plenário da
Câmara dos Deputados, Shirin passou por novo constrangimento ao falar
sobre os maus tratos, perseguições religiosas e prisões arbitrárias no
Irã para uma pífia plateia de menos de dez parlamentares.
Dias depois, em Genebra, durante a conferência mundial da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), os ministros do Trabalho do Brasil,
Carlos Lupi, e do Irã, Abdolreza Sheikholeslami, anunciaram um plano
de cooperação visando à implementação no país persa de projetos de
capacitação de trabalhadores e de programas similares ao Bolsa Família
e Brasil sem Miséria. O objetivo seria evitar a repetição do cenário
de crise social – com milhões de pessoas sem trabalho – que fermentou
a derrubada dos governos da Tunísia e do Egito. A pedido do Irã, o
governo brasileiro irá desenvolver iniciativas que possibilitem a
criação de mais de 2 milhões de empregos no Irã e promover ações
sociais que aliviem o impacto do embargo econômico e comercial que lhe
é imposto pela ONU. “Nós falamos com todos os países e vamos cooperar
com quem nos peça cooperação, incluindo o Irã”, justificou Lupi.
“É o cumprimento de uma lei internacional”
Desde a eleição de 2009 que reelegeu Ahmadinejad, o regime islâmico
tem perseguido e encarcerado dissidentes, ativistas de direitos
humanos, líderes religiosos, advogados e jornalistas. Atualmente 26
profissionais da imprensa permanecem presos pelo regime de Ahmadinejad.
Em abril, o jornalista e professor de Ciências Políticas Ahmad
Zeidabadi, detido há dois anos, foi homenageado com o Prêmio Guillermo
Cano World Press Freedom, concedido pela Unesco (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por sua
“coragem excepcional, resistência e compromisso com a liberdade de
expressão, democracia, direitos humanos, tolerância e humanidade”.
Editor do jornal Azad e colaborador da BBC de Londres, Zeidabadi foi
condenado a seis anos de prisão, mais cinco de “exílio interno” e
proibido de exercer a profissão para o resto da vida, acusado de
conspirar contra o governo.
Em relação à Líbia, a decisão da diplomacia brasileira de se juntar
aos demais membros do Conselho de Segurança da ONU – formado por 15
membros, sendo cinco permanentes e dez temporários – na aprovação de
uma resolução votada em fevereiro que impunha sanções à Líbia de
Kadafi, também contribuiu para fomentar editoriais e artigos sobre o
novo posicionamento da presidente Dilma e do Itamaraty no cenário
internacional.
Muitos se animaram com a publicação no Diário Oficial da União do
decreto determinando as sanções da ONU à Líbia (embargo à venda de
armas, congelamento de bens e proibição da entrada de parentes de
Kadafi). Assinado em 15 de abril por Michel Temer, presidente em
exercício, o documento não se constituiria em uma iniciativa isolada
do Brasil, e sim, atenderia à Resolução nº 1.970, aprovada pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois meses antes. “É o mínimo
de cumprimento de uma lei internacional”, afirmou na ocasião ao jornal
Correio Braziliense o especialista em Oriente Médio Márcio
Scalércio, professor de Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Segundo ele, ao publicar a
medida o Brasil simplesmente acatou a determinação do Conselho.
Minas brasileiras na Líbia
É importante observar que na votação da Resolução nº 1.973, desse
mesmo Conselho, em 17 de março, o Brasil se absteve de votar contra a
Líbia, posicionando-se ao lado da China, Rússia, Índia e Alemanha. A
medida impôs uma zona de exclusão aérea sobre o país, autorizando o
uso da força para suspender voos sobre o território líbio. A resolução
foi aprovada por maioria (10 votos) e, três dias depois, o presidente
americano Barack Obama, ainda em território brasileiro, autorizou os
ataques das forças aliadas contra o regime de Kadafi. A reação
diplomática brasileira veio logo depois em forma de um comunicado do
Itamaraty lamentando as mortes ocorridas pelos bombardeios, reiterando
sua solidariedade com o povo líbio, criticando o uso da força pela
coalização internacional e pedindo “um cessar-fogo efetivo”. Posição
reforçada na reunião de cúpula dos Brics – grupo de países formado por
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – ocorrida em abril na
China, com a presença da presidente Dilma Rousseff. A declaração
conjunta divulgada ao final do encontro condenou o uso da força na
Líbia e novamente apresentou propostas de reforma do Conselho de
Segurança da ONU.
Uma semana depois da reunião dos Brics, a missão do Conselho de
Direitos Humanos (CDH) da ONU enviada à Líbia concluiu que pelo menos
10 mil pessoas morreram no país desde o início da revolta contra
Kadafi. O chefe da delegação, Cherif Bassioun, afirmou que foram
encontrados indícios de crimes de guerra, com ataques a civis e a
missões humanitárias. Por outro lado, Jacob Zuma, presidente da África
do Sul e membro do Conselho da União Africana, em visita ao ditador
líbio, em Trípoli, manifestou seu repúdio aos ataques da Otan
(Organização do Tratado do Atlântico Norte) ao país. Em telefonema
posterior à presidente Dilma, o sul-africano pediu apoio do Brasil
para uma articulação no Conselho de Segurança da ONU no sentido de
encontrar uma saída política para a crise na Líbia. Na conversa, que
durou cerca de 10 minutos, de acordo com o porta-voz da Presidência
Rodrigo Baena, os dois presidentes se mostraram preocupados com os
ataques aéreos contra a Líbia, que estariam indo além da resolução
aprovada pela ONU, provocando “impactos negativos na população civil
das ações das políticas ocidentais”.
Na mesma época, a principal organização de combate ao uso das minas
terrestres, a International Campaign to Ban Landmines (ICBL), prêmio
Nobel da Paz de 1997, constatou a presença de minas de fabricação
brasileira sendo utilizadas pelo regime de Kadafi contra os rebeldes.
Em carta ao ministro Antônio Patriota, a diretora da ONG Kasia
Derlicka pediu explicações sobre o fato, lembrando a condição do
Brasil de signatário do Tratado de Ottawa, posto em vigor em 1999, que
proibiu a fabricação, uso e venda de minas “antipessoal”. A
instituição pediu ainda que o Brasil condene o uso de minas e exija a
sua suspensão (segundo a assessoria do ministro, o Brasil não exporta
mais esse tipo de artefato, em respeito ao tratado, mas mantém estoque
do armamento, parte dele usado pelo Exército em exercícios militares).
Missão para investigar tortura e execuções
O emprego de métodos cruéis para calar vozes discordantes é
comportamento-padrão no regime Kadafi. Em 1996, o ditador foi
responsável por um dos crimes mais brutais que atingiram a sociedade
líbia. Trata-se do massacre na prisão de Abu Salim, onde 1.167 pessoas
supostamente opositoras do governo foram assassinadas em poucas horas
pelos soldados do regime. Com depoimentos e provas suficientes para
condenar Kadafi em uma corte internacional por crime contra a
humanidade, o ativista de direitos humanos e advogado das famílias das
vítimas Fathi Terbil conta que os corpos das vítimas foram jogados em
buracos e cobertos com cimento. Um dos poucos sobreviventes da
chacina, o engenheiro Issa el-Bira, revelou que centenas de presos
foram forçados a sair para o pátio enquanto atiradores os matavam de
cima dos telhados.
Iniciada em março, a revolta popular na Síria contra o regime de
Bashar Assad já contabiliza 1.200 mortes e 10 mil presos qualificados
pelo governo como “sabotadores”. O presidente da Assembleia-Geral das
Nações Unidas, Joseph Deiss, frente a sinais de que o Brasil não
estaria disposto a apoiar uma resolução de condenação no Conselho de
Segurança contra a repressão e atrocidades cometidas contra civis e as
mais de mil mortes promovidas pelas forças sírias, deslocou-se até
Brasília para uma reunião com a presidente Dilma e o chanceler
Patriota. Na visita, ocorrida em 20 de junho, Deiss tentou
sensibilizar o governo brasileiro a votar a favor da resolução que
prevê, entre outros tópicos, a implantação de reformas políticas no
país, a libertação de prisioneiros e o fim da violência contra os
opositores. Entretanto, a posição brasileira – que coincide com as da
Rússia e China – é de que possíveis ações militares tenderiam a piorar
ainda mais a situação. “A Síria é um país central, quando se leva em
conta a estabilidade no Oriente Médio”, afirmou Patriota em entrevista
na ONU. “A última coisa que gostaríamos é contribuir para exacerbar as
tensões no que pode ser considerada uma das regiões mais tensas de
todo o mundo.”
Esse posicionamento do Brasil tem intrigado diplomatas dos Estados
Unidos, Reino Unido e França, países membros permanentes do Conselho
de Segurança da ONU. Um deles se mostrou decepcionado e explicou:
“Tivemos até mesmo a preocupação de não colocar nenhum trecho que
pudesse dar chance para uma intervenção externa na Síria. Mas parece
não ter sido suficiente para convencer os brasileiros”, disse. Em
abril, o Brasil votou favoravelmente no CDH pelo envio a Damasco de
uma missão para investigar violações de direitos humanos no país,
principalmente tortura e execuções. Dois meses depois, observadores da
ONU foram impedidos de entrar na Síria.
Exportações para o Egito cresceram 135,7%
Mesmo assim, o governo de Assad pediu o apoio do Brasil para a sua
pretensão de concorrer a uma vaga no CDH. Diplomatas sírios
acreditavam na influência do voto brasileiro para mudar a posição de
outros países. Mas, uma semana antes da votação a Síria retirou a sua
candidatura. Membro da entidade desde 2008, o Brasil encerrou seu
mandato em maio, quando 15 das 47 cadeiras do Conselho foram
renovadas. Em março, a Assembleia-Geral da ONU já havia decidido pela
suspensão da Líbia no CDH, com voto favorável do Brasil.
Uma das mais significativas áreas de comércio do Brasil no norte da
África e principal destino das exportações brasileiras para aquele
continente, o Egito pós-Mubarak foi alvo de uma visita do ministro
Antônio Patriota em maio. Parceiro extra-regional do Mercosul, assim
como Israel, o país de 80 milhões de habitantes abriga a sede da Liga
dos Países Árabes e é considerado pelo Itamaraty como um interlocutor
de grande influência no mundo árabe. Segundo a nota nº 179, divulgada
no site do Itamaraty em 6 de maio, o Egito “tem envolvimento crescente
nas negociações relativas à questão israelo-palestina, do que é
demonstração a assinatura, no Cairo, no último dia 4/6, do acordo de
reconciliação entre o Fatah e o Hamas, além de outros 11 grupos
políticos palestinos.”
Apesar das revoltas populares e da derrubada do governo de Mubarak, as
exportações para o Egito cresceram 135,7% nos três primeiros meses de
2011 em relação a igual período de 2010, alcançando a média diária de
8,5 milhões de dólares. Para a Tunísia, país que inaugurou os
confrontos de rua contra os regimes autoritários árabes, culminando
com a queda do ditador Zine Ben Ali, as exportações brasileiras
aumentaram ainda mais, cerca de 408,2%, segundo dados do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Na Argélia,
país árabe que também enfrenta distúrbios, a compra de mercadorias do
Brasil teve um crescimento de 218,81%.
Liderança geopolítica
Em setembro, quando a primavera se anunciar no Cone Sul, Dilma
estará em Nova York para a abertura da Assembleia Geral da ONU. O
secretário-geral, Ban Ki-Moon (reeleito para o cargo por mais quatro
anos), no encontro que teve com a presidente brasileira no Palácio do
Planalto, em 16 de junho, lembrou que Dilma será a primeira mulher a
abrir o debate geral daquela entidade. Em nota, ao cumprimentar o
sul-coreano pela votação, o Itamaraty ressaltou algumas prioridades do
governo brasileiro no campo político internacional: a reforma do
Conselho de Segurança da ONU, a realização da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e a busca de uma
solução política para as crises que atingem o Norte da África e o
Oriente Médio.
Sabendo-se que líderes palestinos apoiados por países árabes já
preparam um plano de mobilização para pedir o reconhecimento da ONU na
sessão anual de sua Assembleia Geral de um estado palestino delimitado
pelas fronteiras de 1967, e que o Brasil, compartilhando espaço com
países que incitam o ódio ao Estado de Israel, já reconheceu essas
fronteiras em dezembro de 2010, é pouco provável que haja qualquer
alteração, por parte da presidente brasileira, das diretrizes já
assumidas acerca desse e demais temas que envolvem os conflitos no
mundo árabe e o terrorismo praticado por grupos político-religiosos da
região. Ainda que a grande imprensa distingue o compromisso da
presidente com a questão dos direitos humanos, a visão ideológica e as
aspirações brasileiras por uma liderança geopolítica regional e
terceiro-mundista – sinalizadas pelo partido a qual está ligada –
acabam por estreitar e dogmatizar seu campo de ação. Para desalento
das editorias e dos articulistas políticos que insistem em repaginar o
perfil de Dilma, creditando supostos pontos de vista e opiniões que
mais adiante não se confirmam.
(Paradoxo: lamentavelmente, registros fotográficos mostram a queima de
bandeiras de Israel – uma das raras nações de democracia consolidada
na região - por parte dos manifestantes da Primavera árabe, nos
protestos ocorridos contra a opressão de seus regimes ditatoriais e a
favor da liberdade, da democracia e dos direitos humanos.)
(15 de julho/2011)
CooJornal
no 744