Sheila Sacks
Vida pública, religiosidade e
derivativos
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“A
guerra é contra o terror, e não contra o islamismo” (Barack Obama, ao
anunciar a morte de Osama bin Laden, líder da al-Qaeda, em 01.05.2011)
Padres, pastores, rabinos e clérigos muçulmanos são os
representantes naturais das incontáveis comunidades religiosas,
maiores ou menores, instaladas em mais de uma centena e meia de países
do globo terrestre. Pouco ou muito influentes, de acordo com a
quantidade de seus seguidores, essas coletividades se inserem
basicamente no contexto de regras e de leis emanadas e exercidas pelo
poder do Estado.
Nos regimes democráticos todos são livres para a prática de sua
religiosidade, um direito constitucional que muitas vezes se confunde
com outras formas de levar adiante o exercício da liberdade e da
cidadania. Muitos resvalam nesse terreno escorregadio e pouco
iluminado onde nem sempre é fácil manter uma autonomia que propicie
conciliar a liberdade individual com a igualdade social, distinguir
conceitos de pessoa e de comunidades, separar os valores éticos
pessoais dos princípios públicos aceitáveis, compatibilizar os
direitos individuais com o bem da sociedade.
Imparcialidade sem renunciar as convicções religiosas
O Estado laico e pluralista não impõe nenhuma religião, respeita todas
e se mantém imparcial diante de cada uma delas. A afirmação é do
teólogo Leonardo Boff, 73 anos, doutor honoris causa em Política pela
Universidade de Turim, na Itália. Para o ex-franciscano que vive em
Petrópolis, professor emérito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), essa imparcialidade não significa desconhecer o valor
espiritual e ético de uma confissão religiosa. – Ao entrar no campo
político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos
cidadãos religiosos que renunciem as suas convicções religiosas. O
único que se cobra deles é que não pretendam impor a sua visão a todos
os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista
particulares, escreve Boff no site da Fundação Lauro Campos, do
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A laicidade, continua ele,
obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar dogmatismos
em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar
pontos de convergência comuns. Nesse sentido, conclui, a laicidade é
um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno (O
Estado laico e pluralista e as igrejas, em 05.11.2010).
No caso de exposição de imagens e símbolos religiosos em repartições
públicas brasileiras, fato observado principalmente nos fóruns e
tribunais de Justiça, o Ministério Público Federal, seção São Paulo,
ajuizou uma ação civil pública, em 2009, no sentido de retirar todos
os símbolos religiosos afixados em locais de atendimento ao público
nas repartições federais localizadas no estado. Na justificativa
protocolada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão,
Jefferson Aparecido Dias, é lembrado o princípio da laicidade estatal,
a liberdade de crença e da isonomia, destacando que o símbolo
religioso ostentado em local público demonstra uma “predisposição”
para a religião que tal símbolo representa.
Tradição religiosa ainda é um fator influente nos julgamentos
Um ano depois, em agosto de 2010, essa ação foi indeferida pela juíza
federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia que decidiu, em caráter liminar,
que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende
os princípios constitucionais da laicidade do estado nem da liberdade
religiosa. Em seu despacho, a juíza considerou natural a presença de
crucifixos em espaços públicos nacionais, dada a formação
histórico-cultural cristã do povo brasileiro. Segundo ela, para os
agnósticos ou pessoas de crenças diferenciadas, esses símbolos nada
representam, “assemelhando-se a um quadro, escultura, adereços
decorativos”. A magistrada ainda destacou, em sua exposição de
motivos, um dado dos mais importantes: a de que não há, no ordenamento
jurídico brasileiro, qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo
religioso em qualquer ambiente de órgão do Poder Judiciário.
Em março de 2011, em prosseguimento a esse processo da Procuradoria
Geral dos Direito dos Cidadãos, foi a vez do cardeal arcebispo de São
Paulo, Dom Odílio Scherer, testemunhar a favor da manutenção dos
símbolos religiosos nas repartições públicas. Em depoimento no
Tribunal Regional Federal, ele disse não acreditar que um determinado
símbolo religioso possa ser ofensivo a quem não professa aquela fé,
conforme alegação do autor do pedido da ação, o engenheiro Daniel
Sottomaior Pereira, que se declara ateu: – O fato de a maioria da
população ser católica (73%, de acordo com o censo de 2000),
culturalmente justifica a presença desses símbolos cristãos, afirmou o
cardeal. O religioso também considera legítimo o Estado custear a
manutenção dos símbolos religiosos em suas repartições “em respeito
aos anseios dos representados”.
Segundo a reportagem de Keila Cândido, publicada na revista Época, em
15.03.2011 (Dom Odilo depõe na Justiça Federal a favor dos
crucifixos nas repartições públicas), apesar de o cardeal defender
a exposição de crucifixos em locais nobres, como plenários, ou em
áreas de atendimento ao público, como salas de espera e saguões de
entrada, ele reconheceu que a presença de um símbolo muçulmano em um
hipotético julgamento “poderia causar preocupação em virtude da
inexistência de uma tradição muçulmana no Brasil”.
Pluralismo religioso no Tribunal do Rio
No Rio de Janeiro, o atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral,
o desembargador Luiz Zveiter, também provocou polêmica quando no
exercício da presidência do Tribunal da Justiça do estado (2009/20010)
mandou retirar o crucifixo que estava na sala principal do órgão e
transformou a capela existente em um espaço de culto ecumênico. De
ascendência judaica e Grão-mestre da Grande Loja Maçônica do Estado do
Rio de Janeiro por dois mandatos (seu pai, Waldemar Zveiter é o atual
Grão–Mestre pela terceira vez e foi ministro do Superior Tribunal de
Justiça, de 1989 a 2001), a atitude de Zveiter agradou a maioria dos
25 desembargadores do Tribunal, muitos deles evangélicos e espíritas.
A medida não atingiu os juízes dos tribunais que continuaram com
autonomia para manter ou retirar as imagens referentes à sua religião.
No discurso de posse, Zveiter foi incisivo quanto a sua disposição de
atender a um consenso geral: “A toga do Juiz deve ter o talhe da
sociedade. Deve seguir o modelo querido pelo povo, de modo a
expressar, em seus procedimentos, a justiça social.” Na ocasião a
Arquidiocese do Rio se manifestou desfavoravelmente à providência
adotada, dizendo que as medidas deveriam ser vistas com cautela para
que não contribuíssem para a intolerância religiosa (revista Consultor
Jurídico, de 03.02.2009).
Dois anos depois, uma outra situação do gênero passou despercebida
pela grande imprensa, mas foi bastante noticiada pelos sites judaicos.
Indicado pela presidente Dilma Rousseff, em fevereiro de 2011, para
ministro do Supremo Tribunal Federal, o carioca de ascendência
judaica, Luiz Fux, instalou um símbolo religioso judaico, a mezuzá
(umbral, em hebraico), na porta de seu gabinete, em Brasília.
Constituindo-se em um pequeno estojo que abriga em seu interior um
pergaminho que contém duas passagens bíblicas manuscritas em hebraico,
o artefato é colocado no umbral direito da porta com a função de
proteger as pessoas que habitam aquele local e evitar infortúnios.
Usado principalmente nas portas de entrada dos lares das famílias
judaicas e em alguns estabelecimentos comerciais, a colocação desse
símbolo religioso em uma dependência da mais alta Corte Jurídica do
país provocou controvérsia entre os leitores da “Rua Judaica”,
newsletter de Osias Wurman, jornalista e cônsul honorário de Israel no
Rio de Janeiro.
Com uma visão humanista do Direito e da Justiça, Fux reiterou seu
posicionamento ao ser sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) do Senado Federal. Aprovado por unanimidade pelos 23 senadores
integrantes da CCJ, o novo ministro destacou que a Constituição
Federal é a fonte de todas as leis, mas que “a Justiça é algo que não
está só na lei”, porque “também depende da sensibilidade, da
humanidade do magistrado”. Segundo Fux, “o Direito vive para o homem,
e não o homem para o Direito” e que as soluções devem ser humanas. “A
justiça tem que ser caridosa e a caridade tem que ser justa”, afirmou.
Bento XVI vê a religião marginalizada da vida pública
Em 2010, em visita a Londres, o Papa demonstrou preocupação com o que
classificou de “crescente marginalização da religião, especialmente do
cristianismo, em alguns lugares, inclusive em nações que outorgam uma
grande ênfase à tolerância”. Falando no Westminster Hall do
Parlamento britânico, Bento XVI afirmou que “há alguns que desejam que
a voz da religião se silencie ou pelo menos que se relegue à esfera
meramente privada”.
O pontífice disse ainda que os cristãos que desempenham um papel
público não deveriam agir contra a sua consciência, ainda que muitos
sustentem que às vezes, com a intenção de suprimir a discriminação,
lancem mão do uso da razão prática. O Papa lembrou que os princípios
éticos nos processos democráticos não devem ser regidos apenas por
meros consensos sociais, pois resultarão em estruturas frágeis. - Sem
a ajuda corretiva da religião, a razão pode ser também presa de
distorções, como quando é manipulada por ideologias, sublinhou. “O
papel da religião consiste justamente em ajudar a purificar e iluminar
a aplicação da razão à descoberta de princípios morais objetivos”
(agência Zenit, em 17.09.2010).
Pensadores contemporâneos defendem neutralidade religiosa
De acordo com os mais recentes estudos de contextos sociais, nas
sociedades modernas as pessoas têm de assumir e cumprir diferentes
papéis em diferentes domínios da vida (família, cidade, classe, nação
ou povo) que podem entrar em conflito uns com outros. A questão que se
apresenta é de como a pessoa que se sente pertencendo a uma comunidade
familiar e religiosa pode permanecer sendo a mesma e única pessoa
diante de visões e exigências contrárias. De que maneira é possível
conciliar a “identidade do eu” - que está vinculada de maneiras
diversas a várias comunidades e associações constituídas - com a
pessoa “sujeito de direito” de uma comunidade política de normas
jurídicas.
A separação entre os princípios universais e as concepções éticas
privadas, com a priorização do justo e imparcial, é defendida pelo
filósofo norte-americano Thomas Nagel (The Possibility of Altruism/1970).
Professor de Filosofia e Direito na Universidade de Nova York, Nagel,
de 73 anos, julga imoral forçar alguém a compartilhar um fim sobre o
qual não está convencido, mesmo quando a pessoa que exerce essa
imposição esteja convicta de que isso seria vantajoso para o outro. “É
ilegítimo recorrer à verdade de uma concepção ética para justificar
uma coerção jurídica.” Nagel defende que as pessoas tenham um padrão
elevado de objetividade ao assumirem um ponto de vista “universal” e
“impessoal”, e que procurem distinguir o que é “crença pessoal” e
“verdade”, mesmo diante de suas próprias convicções éticas.
A respeito, o alemão Rainer Forst, 47, doutor em Teoria Política e
professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, ressalta que existe
uma diferenciação entre a pessoa ética e a pessoa de direito.
“Preceitos jurídicos e normas morais têm a pretensão de serem válidos
para todos, não importando as concepções éticas que as pessoas adotem.
Em contraposição, os valores éticos são válidos apenas para os
indivíduos que se identificam com esses valores como parte de suas
identidades e de sua história pessoal.”
Na obra “Contextos da Justiça” (1994), Forst assinala que o Direito
deve ser eticamente “neutro” em seu modo de validação, a fim de que
ele mesmo não prescreva determinados “valores” como bens superiores
que não podem ser justificados de modo recíproco e universal. Ele
chama a atenção ainda para o fato de que uma comunidade política
somente pode ser integrativa num sentido abrangente quando ela não
absolutiza política e juridicamente uma determinada tradição
ético-cultural.
A neutralidade ética do Direito também é defendida pelo
norte-americano Bruce Akerman, 67, conceituado professor de Direito
Constitucional e Ciências Políticas da Universidade de Yale (Connecticut-EUA).
Na obra “Social Justice in the Liberal State” (1980), ele assinala:
“Nenhuma razão é uma boa razão quando exige que o dono do poder afirme
que sua concepção do bem é melhor ou superior do que qualquer outra
afirmada por seus concidadãos.”
Em tempo: A presidente brasileira Dilma Rousseff – que estudou em
escola de freira e assume que é católica -, em sua primeira semana no
Palácio do Planalto também foi motivo de polêmica ao retirar de seu
gabinete o crucifixo e a bíblia. No dia seguinte à notícia, a
Secretaria de Comunicação da Presidência informou que o crucifixo
pertencia ao ex-presidente Lula, que havia recebido de um artista
português, logo no início de seu mandato. Em relação à bíblia, a nota
à imprensa afirmava que o livro permanecia em uma sala contígua ao
gabinete, sobre uma mesa, onde a presidente encontrou ao chegar ao
palácio.
(14 de maio/2011)
CooJornal
no 735