Sheila Sacks
Houve um tempo... no Egito
(A vida de Henri Curiel)
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A menos de dois quilômetros da Praça Thair (libertação,
em árabe), principal palco dos protestos que resultaram na queda do
presidente Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro, a ilha verde de Zamalek,
com vista sobre os dois afluentes do Nilo, ainda é uma das regiões
mais elegantes e aprazíveis do Cairo. Em suas ruas arborizadas se
alinham confortáveis residências de classes abastadas, modernos hotéis
cinco estrelas, suntuosas embaixadas e movimentados cafés, livrarias,
teatros e museus. Esse oásis turístico que passou ao largo dos
conflitos que sacudiram o Egito nos primeiros meses de 2011, guarda
histórias centenárias por trás das imponentes fachadas das poucas
mansões remanescentes das primeiras décadas do século 20. Época em que
a nobreza egípcia e a oficialidade britânica freqüentavam os salões
restritos do Turf Club, jogavam tênis e golf no elitista
Sporting Club, e eventualmente eram encontradas em esticadas
noturnas no Casino Badia.
Hoje cercado por grades de ferro, o majestoso palacete
de 17 quartos construído pelo banqueiro judeu Daniel Nessim Curiel, em
meados de 1930, abriga a embaixada da República da Argélia no
endereço Brazil Street nº 14. Entretanto, há mais de 70 anos,
quando a Villa Curiel foi projetada na então Hassam Sabry`s Street,
suas espaçosas dependências eram ocupadas pela jovem Zefira, esposa de
Daniel – que ficou cego aos três anos - e seus dois filhos, Raoul e
Henri. Havia um salão de música, outro salão para a coleção de moedas
raras do dono da casa e um segundo pavimento de onde se podia
contemplar o esplendor do Nilo. A residência servida por uma dezena de
empregados estava sempre repleta de convidados e visitantes
estrangeiros.
Miséria “sem limites” dos egípcios ainda impressiona
A família Curiel havia sido expulsa da Espanha pela
Inquisição e alcançado o Egito no final do século 19, via Portugal e
depois Itália. O caçula Henri, nascido em 1914, apesar de pertencer a
segunda geração dos Curiel no Egito, tinha a nacionalidade italiana e
foi educado em um colégio jesuíta francês. Ele cresceu em um Egito
ocupado pelos britânicos e tiranizado por uma monarquia feudal, e
ainda jovem voltou-se para o marxismo. Porém, coube a ele suceder o
pai na direção do banco, enquanto o irmão Raoul seguia para estudar em
uma universidade na França. Por sua vez, a mãe de Henri era dona de
uma livraria que divulgava autores socialistas, ponto de reunião da
intelectualidade egípcia antifascista.
No livro “Um homme à part” (1984), o jornalista e
escritor Gilles Perrault, 80, conta que Henri conheceu a tragédia dos
camponeses egípcios ao visitar as propriedades de sua própria família,
no delta do Nilo. “Foi na companhia de Rosette Aladjem, que mais tarde
se tornaria a sua esposa, que Henri Curiel descobriu a miséria sem
limites do povo egípcio. O trabalho de um homem valia menos do que o
serviço de uma mula. Crianças de 7 a 13 anos trabalhavam nas fábricas
de algodão, em meio à poeira sufocante, sob o jugo de feitores. A
esperança de vida girava em torno dos 27 anos e doenças como a tracoma
e a malária devastavam a população.”
Situação de extrema pobreza que lamentavelmente ainda
persiste no século 21, conforme descrição do jornalista Samy Adghirni,
em reportagem para a Folha de São Paulo (01.02.2011).
Destacando que parte dos egípcios mais pobres se manteve alheia aos
recentes protestos “preocupada só em sobreviver”, o enviado do jornal
ao Cairo visitou uma favela assentada em meio a um cemitério, com
milhares de pessoas se amontoando em barracos erguidos nos vãos dos
túmulos. Sem dinheiro para pagar aluguel, famílias inteiras foram
transformando, ao longo do século 20, o cemitério de Majauirun
em um labirinto de ruelas onde cada quarteirão é composto por túmulos
coletivos. Uma tragédia social que pune um país em que 40% da
população ganha menos que 2 dólares ao dia.
A luta por um Egito independente
Em 1943, vivendo sob a monarquia do rei Farouk, Henri
Curiel funda o Movimento Egípcio de Libertação Nacional –
depois Movimento Democrático de Libertação Nacional (Hadetu)
– que vem a se tornar a maior organização comunista do Egito. Os
acontecimentos no país durante a 2ª Grande Guerra, com parte da
sociedade egípcia se aproximando dos nazistas em reação ao domínio
britânico, mostram a Curiel que o anseio por uma pátria independente
muitas vezes conduzem as pessoas por caminhos tortuosos. Decide
permanecer no Cairo, apesar de uma grande fatia da comunidade judaica
lotar os trens rumo a Jerusalém, atemorizada com a possível invasão
dos áfricakorps do general Rommel (a força expedicionária
nazista que combatia no Norte da África). Ele adquire a nacionalidade
egípcia e começa a aprender o árabe. Mas a derrota egípcia na primeira
guerra árabe-israelense, em 1948, muda o seu destino. Centenas de
comunistas são presos e Curiel vai para a prisão de Huckstep,
onde cumpre pena por 18 meses.
Para o seu companheiro de partido, Raymond Stambouli
(1923-2004), a guerra de independência de Israel forçou os comunistas
judeus egípcios a se confrontar com a sua identidade e a arcar com as
conseqüências políticas desse fato. “A guerra na Palestina pôs fim ao
sonho. Nós nos considerávamos egípcios, ainda que muitos nos vissem
como estrangeiros. Porém, agora, não éramos estrangeiros, mas judeus,
o inimigo, uma potencial quinta coluna. Nenhum de nós havia previsto
isso.”
Em 26 de agosto de 1950, Curiel perde a cidadania
egípcia e é colocado à força em um navio rumo à Europa. Expulso do
país, ele se transforma em um exilado político para o resto da vida.
“Ele foi o pai do comunismo egípcio”, escreveu Mohamed Sid-Ahmed, em
1998, no diário de maior circulação do país – Al-Ahram. Escritor,
jornalista e por muitos anos editor de política do jornal, Sid-Ahmed
(falecido em 2006) lembrou que apesar de Curiel ter sido expulso do
Egito, “ele sempre esteve envolvido com os problemas egípcios, sua
política interna e o conflito árabe-israelense.”
Ao lado dos argelinos, na
Guerra da Independência
Deportado para a Itália com outros militantes expulsos
do país, Curiel acaba por se instalar em Paris e reúne em uma
associação – o Grupo de Roma - os judeus egípcios comunistas exilados.
Tempos depois, se torna um dos homens-chave da Frente Nacional de
Libertação da Argélia (FLN), movimento fundado em 1954, no Cairo,
por Ahmed Ben Bella, líder da revolução e primeiro presidente da
República da Argélia. No Egito, o coronel Gamal Abdel Nasser
(1918-1970), que havia deposto Farouk em 1952, fecha as portas a
Curiel, não obstante manifestar apoio ao FLN. Impedido de retornar ao
Egito, Curiel doa a mansão de Zamalek para sede provisória do governo
argelino no Cairo.
Entre 1954 e 1962, no decurso da guerra de
independência argelina contra a França, cabe a ele disponibilizar
recursos, documentos, cobertura e treinamento aos oficiais e
estudantes anticolonialistas, apoiado por um esquema subterrâneo onde
se misturam grandes somas não identificadas provenientes da Suíça, a
rede árabe do Kremlin, os partidos comunistas europeus, intelectuais
socialistas e sacerdotes cristãos. Em 1960, após interrogatório sobre
as suas atividades na FLN, é preso pelo serviço de segurança interno
francês (DST) e permanece dois anos encarcerado na prisão de Fresnes,
na periferia de Paris. Com o fim da guerra da Argélia é solto e funda
a organização Solidarité, de apoio aos movimentos de libertação
nacional em países antidemocráticos do Terceiro Mundo.
O militante político de esquerda e jornalista
israelense Uri Avnery, de 87 anos, fundador do movimento Gush Shalom
(Bloco da Paz) e que na Guerra da Independência de Israel, em 1948,
foi membro da organização paramilitar Irgun, conheceu Curiel em Paris,
no final da década de 1950, quando a guerra na Argélia estava no auge.
Curiel sonhava em estabelecer uma conexão argelina-israelense que
Avnery considerou totalmente utópica, já que os judeus argelinos
portavam identidade francesa e se identificavam completamente com o
regime colonialista francês. No artigo “The silent idealist”,
publicado na revista Le Monde Diplomatique (1998), Avnery
observa que Curiel era um idealista que jamais se deixou render. “Ele
era determinado, jamais levantou a voz e nunca se desesperou. Apesar
das inúmeras decepções, ele não desistia. Não se deixava levar pelas
emoções e nem permitia que problemas pessoais interferissem em suas
decisões. Para mim, Curiel foi um modelo de político idealista.
Através de seu exemplo pessoal, ele me ensinou determinação, paciência
e perseverança.”
Um dos companheiros de Curiel no “grupo de Roma”,
Joseph Hazan, lembra que o fato de ambos terem nascido em um país com
um sistema de produção extremamente cínico, em que a exploração do
homem pelo homem atingira uma situação degradante, provocou em Curiel
uma reação instintiva que permeou sua forma de ser e sua consciência
para sempre. “Ele nunca se esqueceu que foi a miséria do povo egípcio
que o levou à política.” Hazan que militava no partido de Curiel tinha
nacionalidade francesa e acolheu o amigo quando este procurou abrigo
em Paris.
Uma central de ajuda a refugiados e revolucionários
De acordo com André Marty (1886-1956), político francês
que foi secretário do Partido Comunista na França e chefe das Brigadas
Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936-39), Curiel fez o
possível para derrubar Nasser na década de 1950. “Em repetidos
encontros com líderes de partidos comunistas europeus, Curiel insistia
em solicitar armas e dinheiro para destituir Nasser”, relatou. A crise
do Canal de Suez (1956-1957) que envolveu o Egito, Inglaterra, França
e Israel havia resultado em mais um traumático êxodo para os judeus
egípcios. Vinte e cinco mil foram expulsos, centenas tiveram a prisão
decretada e bens e propriedades foram confiscados.
Em 1962, aos 48 anos e após sair da prisão de Frasnes,
Curiel amplia suas atividades até então centradas no Egito e na
independência da Argélia. Através da organização Solidarité ele
promove ajuda financeira e estratégica aos movimentos
anticolonialistas de países da África e aos grupos que lutavam contra
a Grécia dos coronéis e as ditaduras na Espanha (do general Francisco
Franco), Portugal (Oliveira Salazar) e Chile (Augusto Pinochet).
A rede baseada em Paris contava com militantes de
origens e filiações diversas, clérigos protestantes, padres católicos,
sindicalistas, intelectuais, professores, socialistas e membros do
partido comunista. Os seus filiados davam abrigo e proteção aos
revolucionários de outras partes do mundo que, em fuga, chegavam a
Paris. A organização também funcionava como uma central de prestação
de serviços voltada para os ensinamentos das múltiplas técnicas de
sobrevivência e clandestinidade, os quais os militantes, expostos à
repressão violenta e sofisticada de estados opressores como a África
do Sul do aparthaid, necessitavam dominar para permanecerem vivos.
A busca pela paz no Oriente Médio
Outro foco de atenção no curso político de Henri Curiel
estava direcionado para o conflito árabe-israelense. Ele manteve
contato com figuras proeminentes do Partido Trabalhista de Israel e
com os membros do “Israeli Council for Israeli-Palestinian Peace” (ICIPP),
em busca de um caminho de entendimento que chegasse à Organização para
a Libertação da Palestina (OLP). Perrault afirma que Curiel estava
convencido de que era possível promover um diálogo entre as duas
partes. “Em 1976, ele organiza com seus amigos judeus de origem
egípcia, exilados na França, um encontro clandestino entre o general
da reserva israelense e pacifista Matti Peled (1923-1995), herói da
Guerra dos Seis Dias, e Issam Sartawi (assassinado em Portugal, quando
participava do encontro da Internacional Socialista, em 1983), antigo
terrorista convertido ao processo de paz e amigo de Yasser Arafat.”
Entretanto, na mesma época, uma reportagem no semanário Le Point
acusa Curiel de ser o cabeça de uma rede terrorista conectada com a
KGB (serviço secreto da antiga União Soviética).
A matéria assinada por Georges Suffert equivale a uma
condenação capital. “Curiel abominava o terrorismo, considerava uma
falta de bom senso político e uma monstruosidade humana. A acusação
foi frívola, mas mortal”, revela Perrault. “Uma campanha na imprensa o
fulminou e medidas administrativas baixadas pelo governo francês
incluíram prisão domiciliar na cidade de Digne, nos Alpes franceses.
Três meses depois, quando as acusações se mostraram infundadas, as
restrições foram suspensas, mas o caminho estava aberto para os
inimigos de Curiel.” (Henri
Curiel, citizen of the third world, de Gilles Perrault -
1998)
Assassinato não
esclarecido na Rive Gauche
Curiel foi assassinado com três tiros por dois
pistoleiros de mãos enluvadas no elevador de seu apartamento, na Rive
Gauche de Paris, em 4 de maio de 1978. No dia seguinte, a organização
Delta, uma rede da extrema direita francesa composta de nostálgicos da
Argélia francesa, reivindicou a autoria do crime. Mas a “Delta”,
esquadrão de extermínio dos extremistas de direita francesa durante a
guerra da Argélia estava extinta há mais de 15 anos.
Contudo até hoje, passados mais de 30 anos de sua
morte, as autoridades francesas não conseguiram elucidar o caso.
Existem suspeitas que levam a radicais argelinos, donos de terra que
perderam suas propriedades na Argélia; ao serviço secreto da África do
Sul, que considerava Curiel um perigoso inimigo; ou mesmo ao
terrorista palestino da al Fatah e assassino profissional Abu Nidal,
mercenário a soldo da Síria e da Líbia e responsável por centenas de
atentados a alvos israelenses e árabes (morto no Iraque em 2002).
Quatro meses antes da execução de Curiel, o representante em Londres
da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Sa’id Hammami,
que participava com Curiel das iniciativas em prol de uma
coexistência pacífica entre árabes e judeus, também fora assassinado.
O mistério da morte de Curiel foi tema de um
documentário apresentado na TV francesa, em setembro de 2008. “Henri
Curiel; un crime politique” explora a pista que imputa às autoridades
francesas a responsabilidade direta pelo assassinato de Curiel. Isso
porque seus passos eram monitorados pelos serviços secretos da França
e nem a polícia ou a justiça francesa levaram adiante a investigação.
Ninguém foi interrogado ou detido. É o que reclama Alain Gresh,
diretor adjunto de Le Monde Diplomatique (revista mensal
publicada em 25 idiomas, inclusive português, com tiragem de
2,4 milhões de exemplares), no artigo “Henri Curiel:la piste
française”. Especialista em assuntos ligados ao Oriente Médio e filho
natural de Curiel, Gresh nasceu no Egito, em 1948, de mãe judia de
origem russa. Educado por um egípcio copta (cristão), só soube da
existência de seu verdadeiro pai aos 28 anos, quando já vivia em
Paris.
Apesar do assassinato de Curiel já somar mais de três
décadas, sua figura carismática e o seu trabalho solidário a favor da
emancipação dos povos continuam a despertar interesse e admiração.
Livros, filmes e artigos sobre o curso de suas atividades ainda
confundem estudiosos e leitores pela diversidade de opiniões e pontos
de vista. “A estranha carreira de Henri Curiel” , assim definida por
Claire Sterling (1919-1995), em seu livro a “A rede do terror” (1981),
também mereceu um longo e polêmico capítulo.
Segundo a jornalista norte-americana
que foi correspondente na Europa das revistas Life e The New
York Times Magazine, nos 27 anos em que viveu na França, Henri
Curiel constou nos arquivos do serviço secreto francês como o agente
estrangeiro S531916, ligado à KGB. Todos os principais serviços
ocidentais de contra-espionagem tinham um dossiê a seu respeito,
assegurava Sterling, e a confirmação veio em março de 1979 quando a
Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) registrou em
seu relatório anual, de distribuição interna, na página 3, o seguinte
obituário: “Revolucionários do mundo inteiro, inclusive terroristas,
lamentam o assassinato de Henri Curiel, líder de uma organização de
apoio sediada em Paris que fornecia dinheiro, armas, documentos,
treinamento e outros serviços a dezenas de grupos esquerdistas.”
(16 de abril/2011)
CooJornal
no 731