Sheila Sacks
Nosso
amigo Kadafi
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Entre tantas figurações bizarras registradas pela mídia
associadas ao desastre climático que devastou grande área da região
serrana do Rio de Janeiro (com destaque para as performances dos
ilustres tagarelas de plantão, sempre dispostos a palpitar sobre
qualquer assunto), uma delas focalizou a aprazível conversa telefônica
entre a presidente Dilma Rousseff e o ditador líbio Muammar Kadafi,
ocorrida uma semana depois do horrendo cataclismo da madrugada de 12
de janeiro de 2011, que vitimou mais de 850 pessoas.
Por dez minutos Kadafi papeou com Dilma sobre assuntos
variados, inclusive sobre a tragédia que foi o motivo que ensejou o
oportuno contato entre os dois. Depois de prestar solidariedade às
vítimas dos deslizamentos e oferecer ajuda ao governo brasileiro,
Kadafi parabenizou Dilma pela vitória nas urnas. A presidente
agradeceu o envio de uma delegação da Líbia à posse e disse que “se
necessário, recorreria à Líbia” (O Globo online de 20.01.2011).
Vale lembrar que o governo brasileiro,
dois dias depois da tragédia, recusou a ajuda oferecida pelo
Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários, sediado em
Genebra, que se colocou à disposição para auxiliar no resgate e
atendimento à população. Segundo a agência Estado, a
instituição estava pronta para entrar em ação na região serrana. A
porta-voz da ONU, Elisabeth Byrs, confirmou que o pedido de ajuda “não
foi transmitido” pelo governo brasileiro, uma maneira diplomática para
dizer que a oferta de participação da ONU não foi aceita pelo governo
brasileiro (Brasil recusa ajuda da ONU no resgate e auxílio a
vítimas da chuva, em 15.01.2011).
Reunião em Lima deve juntar Dilma e Kadafi
Mas, voltando ao bate-papo amigo de
Dilma e Kadafi, o colóquio telefônico também serviu para a brasileira
cobrar do líbio a sua honorável presença na 3ª Cúpula América do
Sul-Países Árabes (Aspa), que até então seria realizada de 13 a 16
de fevereiro de 2011, em Lima, no Peru (posteriormente adiada para o
mês de abril, por conta da onda de protestos no Cairo). O encontro
pretende reunir os 12 líderes sul-americanos, incluindo a nova
presidente do Brasil, e os 22 chefes de Estado da liga árabe que
integram o conclave. Segundo o Portal Terra, a presidente
finalizou a ligação afirmando que “terá prazer em encontrar Kadafi na
Cúpula”. A troca de gentilezas se justificaria porque Kadafi é tratado
pelo Palácio do Planalto como “líder da revolução líbia” (O Estado
de São Paulo, de 21.01.2011).
Imagem reforçada pela agência de notícias “Jana”, da
Líbia, que dias antes já tinha informado que Dilma “manifestou-se
disponível para trabalhar com Kadafi para o êxito de um outro evento:
o da próxima “Cimeira África-América Latina”, prevista para ser
realizada no segundo trimestre de 2011, no país líbio. A agência
também divulgou que logo depois da posse, em reunião com a delegação
da Líbia, a presidente brasileira salientou o papel pioneiro de Kadafi
a favor das questões de liberdade, justiça e de promoção da mulher.
Dilma falou das relações históricas entre o Brasil e a Líbia e de sua
vontade em incrementar ainda mais esse relacionamento entre os dois
países. A Líbia possui as maiores reservas comprovadas de petróleo da
África. Em Brasília, a delegação líbia também manteve contato com Hugo
Chávez, da Venezuela, Fernando Logo (Paraguai), Sebástian Piñera
(Chile) e Allan Garcia, do Peru (Dilma Rousseff trabalha com Kadafi
- Jornal de Angola de 07.01.2011).
Kadafi subvencionava a OLP com 40 milhões de dólares anuais
Apontado pela jornalista
norte-americana Claire Sterling (1919-1995) como “o papai rico do
terrorismo”, Muammar Kadafi proveu de fundos, armas e treinamento o
terrorismo palestino responsável pelo massacre nos Jogos Olímpicos de
1972, em Munique, que matou 11 atletas israelenses. Em seu livro “A
rede do terror” (The Terror Network - 1981), publicado em 22 países, a
autora revela que Kadafi, de 69 anos, nascido numa tenda de nômade no
deserto e educado no Alcorão, subvencionava as atividades terroristas
da Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) com uma
verba anual de 40 milhões de dólares retirada de um fundo especial de
580 milhões de dólares para obras terroristas em todo o mundo. “A
lista ia dos sandinistas da Nicarágua, Monteneros da Argentina e
Tupamaros do Uruguai aos Provos do IRA, bascos espanhois, bretões e
franceses e separatistas corsos, sardos e sicilianos, turcos,
iraquianos, japoneses e rebeldes muçulmanos da Tailândia, Indonésia,
Malásia e Filipinas”, escreve Sterling. O ditador libio também gastou
somas milionárias para derrubar governantes árabes “conservadores”.
Manteve de pé uma oferta de um milhão de dólares a qualquer pessoa
disposta e capaz de matar o presidente egípcio Anwar Sadat,
(assassinado no Cairo em 1981) e gastou uma quantia seis vezes
superior para tentar derrubar o primeiro presidente da Tunísia, Habib
Bourguiba (1903-2000), destituído do cargo em 1987. Ambos os
dirigentes procuraram se aproximar do Ocidente e de Israel.
Vivendo na Itália desde o fim da 2ª
Grande Guerra, Sterling foi correspondente de importantes jornais e
revistas, incluindo “The New York Times” e “Washington Post”.
Compilando fatos e desvendando ligações, ela foi capaz de traçar um
surpreendente mapa do terror que emergiu na Europa, entre 1970 e 1980,
na forma de uma vasta rede internacional, com campos de treinamento,
arsenais poderosos, pontos de apoio para fugas, enfim, como um
exército moderno, bem equipado e pronto para atacar em qualquer lugar
do planeta.
Campos de treinamento na Líbia exportavam o terror
A Líbia de Kadafi era o centro
logístico do terrorismo internacional, afirmava Sterling. O país se
pôs a serviço da criminalidade do terror e em seus campos de
treinamento havia mais de 20 mil estrangeiros recrutados no Egito,
Sudão, Tunísia, Mali, Nigéria, Etiópia, Mauritânia, Camarões, Chade,
Senegal, Costa do Marfim, entre outros da África. “Os campos de
guerrilheiros de Kadafi também fervilhavam de europeus e os
instrutores eram tanto soviéticos como cubanos.” Para Sterling, os
países ocidentais dependentes do petróleo líbio gostavam de pensar que
o coronel só desejava a libertação da Palestina. “Ele insistia em
afirmar que todos os judeus que se haviam instalado na Palestina desde
1948 deveriam voltar aos locais de origem. Certa vez, ao enviar uma
equipe de palestinos para metralhar o aeroporto de Istambul, suas
ordens foram: - Matem o máximo possível de judeus.”
A jornalista e pesquisadora assinala
que, em 1978, dois anos após fechar um contrato de 12 bilhões de
dólares para a compra de armamentos russos, Kadafi disse ao New
York Times que o marxismo estava mais próximo dos muçulmanos que o
cristianismo e o judaísmo: “São os cristãos e os judeus que cometem
genocídios e são o ateus que clamam pela paz e pela causa da
liberdade.” Nessa época, o “queridinho” do ditador líbio era um
ex-capitão do exército sírio, guerrilheiro profissional, marxista, um
dos fundadores da Frente Popular para a Libertação da Palestina-FPLP.
Tratava-se de Ahmed Jibril (atualmente com 72 anos e secretário-geral
da FPLP), que gozando da plena confiança de Kadafi e de seu
principesco patrocínio, tinha prestígio suficiente, conforme observava
Sterling, de convocar a imprensa e anunciar numa entrevista coletiva
que recebera dos soviéticos “pesados mísseis de longo alcance”,
capazes de penetrarem “bem fundo em território israelense”.
Vivendo hoje em Damasco, Ahmed Jibril
continua ativo e em dezembro de 2010 se encontrou com o iraniano Ali
Baqeri, secretário-adjunto do Supremo Conselho de Segurança iraniano,
que em visita à Síria exortou o chefe da FPLP a fortalecer a
“resistência” no Oriente Médio. Jibril, por sua vez, fez um
agradecimento público ao Irã pelo apoio à causa palestina, segundo a
Press TV, rede iraniana de notícias.
Armas nucleares para os palestinos, diz Kadafi
Em abril de 1986, depois de um punhado
de anos aterrorizando a Europa com atentados a bomba e sequestros de
aviões, Kadafi enfim recebe o troco dos Estados Unidos. Trípoli é
bombardeada e a Organização das Nações Unidas (ONU) impõe sanções
econômicas ao país. Passada uma década de “suposto” ostracismo, o
ditador sanguinário aceita pagar as indenizações às famílias das
vítimas no atentado ao boeing da Pan Am - que explodiu quando
sobrevoava a cidade escocesa de Lockerbie, matando 270 pessoas de 21
nacionalidades (dezembro de 1988) – e anuncia que desistiu do
terrorismo e de seu programa de armas nucleares. Em 2003, o Ocidente
acolhe um Kadafi “arrependido” e carimba o nada consta em sua
ficha criminal.
Entretanto, o coronel líbio que afirma
praticar um “socialismo islâmico” jamais desistiu de falar o que pensa
em suas viagens pelas capitais europeias. Em 2010, em Roma, Kadafi
propôs o islamismo como religião de toda a Europa. A declaração feita
em um país majoritariamente católico foi considerada provocativa e
ofensiva ao Papa. “As palavras de Kadafi mostram seu perigoso projeto
de islamização para a Europa”, afirmou o parlamentar europeu Mario
Borghezio ao jornal “Il Messaggero” (30.8.2010).
Um ano antes, em Londres, o coronel
líbio tinha afirmado aos jornalistas britânicos que os palestinos
deveriam ter o direito de possuir armas nucleares, assim como o Egito,
a Síria e a Arábia Saudita. As declarações foram feitas durante uma
entrevista em que Kadafi foi cobrado pela participação da Líbia no
atentado de Lockerbie e sobre as alegadas atividades terroristas do
país, centradas em suas embaixadas em todo o mundo (Palestina tem
direito a bomba!, matéria veiculada no site “área militar”,
de Portugal). Em agosto de 2009, com o apoio da Inglaterra, Kadafi
consegue que a Escócia liberte o líbio condenado à prisão perpétua
pela explosão do boeing da Pan Am. O autor do atentado segue para
Trípoli onde é recebido com honras de herói.
Ditador líbio propõe um terrorismo justificável
Um mês depois da libertação do
terrorista, o ditador que governa a Líbia há mais de 40 anos, faz sua
primeira visita à América Latina para participar da Cúpula de líderes
da África e países do continente. No encontro com Hugo Chávez, na
Venezuela, assina uma declaração sugerindo a realização de uma
conferência global para redefinir o conceito de terrorismo. Os dois
disseram rejeitar “as tentativas de vincular a luta legítima do povo
pela liberdade e autodeterminação” ao terrorismo (Hugo Chávez e
Kadafi propõem nova definição para o terrorismo no mundo - Correio
do Brasil, em 29.9.2009). Um comportamento público leviano beirando ao
deboche, considerando que países como os Estados Unidos e Israel estão
na linha de fogo dos atentados das organizações terroristas
palestinas, justamente os grupos radicais armados que ambos os
políticos pretendem redimir.
Uma atitude, porém, que faz sentido,
levando-se em conta que em 2008, mesmo dando por “definitivamente
arquivado” o conflito entre a Líbia e os Estados Unidos, Kadafi não se
furtou em declarar que seu país descartava qualquer amizade com os
norte-americanos. “Tudo o que queremos é que nos deixem em paz”,
avisava em tom teatral o chefão líbio que foi eleito, em 2009, a
personalidade africana do ano por mais de 200 ONGs da África.
Resultado que decerto não contaria com
o beneplácito do prêmio Nobel da Paz, Andrei Sakharov (1921-1989). O
físico russo que recebeu o Nobel em 1975 pela sua luta em defesa dos
direitos humanos na antiga União Soviética, considerava o terrorismo,
em todas as suas manifestações, a mais degradada forma de linguagem.
Dizia ele: “Não importa o quanto sejam
elevados os objetivos pregados pelos terroristas, suas atividades são
sempre criminosas, sempre destrutivas, lançando a humanidade de volta
a uma era de ilegalidade e caos, contradizendo os objetivos de paz e
progresso. Espero que os povos de todo o mundo compreendam a natureza
mortífera do terrorismo, quaisquer que sejam seus objetivos e lhes
neguem qualquer espécie de apoio, mesmo o mais passivo, circundando-os
com um muro de condenação.”
(Washington Post,
em 1980).
O terror por trás da
Guerra Santa
Os tumultos nos países muçulmanos que
já provocaram a queda do governante da Tunísia, Zine al-Abidine Ben
Ali, em 14 de janeiro, e mudanças nos rumos da política egípcia
dominada pelo regime de Hosni Mubarak, levaram o aiatolá Ahmad Khatami,
do Irã, a comparar os conflitos do mundo árabe à revolução iraniana
que em 1970 derrubou a monarquia no Irã e passou o poder para os
aiatolás. ”Um Oriente Médio Islâmico está tomando forma, emergindo
com base no Islã e na democracia religiosa”, comemorou em seu
sermão semanal (O Globo de 29.01.2011).
Motivada pela ebulição dos
acontecimentos, a facção iraquiana da Al-Qaeda (Islamic State of Iraq
– ISI) também se pronunciou, convocando os manifestantes egípcios
anti-Mubarak a promoverem uma guerra santa, estabelecendo no país um
Estado baseado em leis islâmicas. A mensagem divulgada na Internet
afirma que a missão da guerra santa é defender os fracos e oprimidos
no Egito e na região da faixa de Gaza. “Cada muçulmano que foi afetado
pela opressão do tirano do Egito e de seus patrões de Washington e Tel
Aviv deve reagir”, diz o texto (Agência Lusa, de 09.02.2011).
Por sua vez, o nosso amigo Kadafi,
mantendo-se fiel ao que sempre advogou, desde o tempo em que era
conhecido como “o papai rico do terrorismo”, culpou Israel pelos
protestos violentos no Egito. Atribuindo tudo a uma conspiração de
Israel – “O que acontece hoje no Egito é obra dos serviços secretos
de Israel” - Kadafi afirmou ao jornal Libya al-Youm que “é errado
ficar culpando Mubarak, pois ele é um homem pobre, não tem dinheiro
nem para comprar roupas novas e a quem ajudou muitas vezes”. Fontes
internacionais estimam em 40 a 60 bilhões de dólares a fortuna pessoal
de Mubarak e seus familiares.
E as conseqüências desse clima de
animosidade e de incitamento ao ódio já começam a aflorar: na noite de
31 de janeiro, a sinagoga de El Hamma, perto da cidade de Gabes, no
sul da Tunísia, foi incendiada por desconhecidos. O representante da
comunidade judaica de Djerba, Trabelsi Pérez, disse por telefone que
os rolos da Torá foram queimados. Ele ainda contou que na semana
anterior, vários carros tinham sido destruídos no bairro judeu de
Houmt-Souk, a capital da ilha de Djerba, e que a pequena comunidade
judaica, de 1.600 membros, estava com muito medo. (Diário de
Notícias de Portugal, em 01.02.2011).
(12 de fevereiro/2011)
CooJornal
no 722