Sheila Sacks
E assim falou Nietzsche...
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A
terra das fábulas e dos contos de fadas dos irmãos Grimm lançou no
início deste 2010 mais uma coletânea de textos que procura recriar as
ideias filosóficas de Friedrich Nietzsche (1844-1900), enxergando
pacifismo, tolerância e até uma suposta guinada ao pensamento social
de esquerda daquele que foi o filósofo inspirador da política
sanguinária de Hitler. O organizador da obra Nietzsche-Lexikon,
o alemão Cristian Niemeyer, selecionou mais de 400 artigos de uma
centena de autores identificados por ele como “bons leitores” do
filósofo, aqueles que na sua opinião buscam entender a sutileza das
ideias de Nietzsche, “sem falseá-las com interpretações pessoais”.
Um
Nietzsche edulcorado para as multidões
Fazendo coro com outras pesquisas similares, Niemeyer exime Nietzsche
de apadrinhar o nazismo e o fascismo e põe a culpa de sua má-fama à
irmã do filósofo, que segundo ele se apoderou de seu acervo literário,
adulterando textos, cartas, a autobiografia, enfim, zoneando
seus pensamentos e sua obra.
Acometido de uma doença mental que o tirou de circulação a partir de
1889 e até a sua morte, onze anos depois, Nietzsche tornou-se
conhecido e celebrado justamente por seus conceitos de supremacia de
raça (super-homem), aniquilamento dos fracos, desprezo às massas e
rejeição ao Estado social, à democracia, à religião. Conceitos
firmados, explicados e desenvolvidos por Nietzsche muito antes de seu
colapso mental e da alegada intromissão da irmã. Segundo ainda
Niemeyer, uma das vantagens de se entender o filósofo é que essa
compreensão “pode ajudar as pessoas a viver de uma maneira aberta num
mundo sem deus”. Trocado em miúdos, a filosofia de Nietzsche
funcionaria como um excitante elixir para todos que se julgam “para
além do bem e do mal”, título, aliás, de um de seus livros mais
ilustrativos, publicado em 1886.
Filósofo queria os judeus fora da Alemanha
No
livro em questão, Nietzsche doutrinava:”Não se permita o ingresso de
judeus na Alemanha! E que lhes sejam fechados principalmente o império
do Oriente e também a Áustria, eis o que diz claramente a voz do
instinto universal, da qual preciso ouvir o aviso.”
Nietzsche se insurgia contra o que ele denominava de “virtudes
passivas” (humildade, resignação, prudência, paciência, segurança) e
acusava os judeus pelo que chamava de “insurreição dos escravos” no
campo da moralidade. E prosseguia, explicativo, dissertando sobre os
dois tipos de moral que percebia serem bem característicos em
diferentes indivíduos. Para ele existia a moral dos senhores e a moral
dos escravos, sendo que essa última seria essencialmente utilitária.
Nietzsche imputava aos judeus, “povo nascido da escravidão”, a
iniciativa de levaram a cabo uma miraculosa inversão de valores, como
a de transformar o pobre em santo e o forte em mau. Em oposição à
moral dos fortes (a dos senhores nobres e aristocratas), o Judaísmo
havia criado, por um ato de vingança espiritual, uma moral servil, de
culpabilidade, ressentimento e pecado. Um “antimundo” para justificar
o sofrimento dos fracos, doentes e oprimidos.
Dizia Nietzsche que “a religião tem a inestimável vantagem de tornar
os homens vulgares satisfeitos da sua própria posição,
proporcionar-lhes paz ao coração, enobrecer a sua obediência,
confortá-los e contribuir para transfigurar a sua monótona
existência”. E concluía que “o que pode ser desfrutado em comum, é
sempre coisa de baixo valor”.
Idéias delirantes e degeneração psicológica
Para o húngaro Max Nordau (1849-1923), a originalidade de Nietzsche
consistia na inversão tola e pueril da maneira racional de pensar. Em
sua obra “Degeneração” (Entartung), publicada em 1892, o
médico, escritor e jornalista dedica um capítulo ao filósofo alemão,
afirmando que seu escritos exibem uma série de ideias delirantes
provenientes de ilusões da razão e de processos orgânicos
patológicos, comparáveis aos manuscritos dos doentes mentais que os
psiquiatras devem ler, não por prazer, mas para prescreverem a
internação do autor em um hospício.
Segundo Nordau, que exerceu a psiquiatria em Paris, degenerados
psicológicos combinam relativismo moral com egoísmo, carecendo de
sentido moral para distinguir o bem do mal e não apresentando sentido
de indignação diante do sofrimento das pessoas.
Outro respeitado escritor, filósofo, matemático e pacifista, o inglês
Bertrand Russel (1872-1970), também questionava a sanidade de
Nietsche, classificando os seus escritos de “meras fantasias de poder
de um homem doente”. Prêmio Nobel de Literatura em 1950, Russel
justificou essa aversão no épico História da Filosofia Ocidental:
“Eu não aprecio Nietzsche porque os homens a quem ele admira são os
conquistadores, cuja glória está na habilidade de motivar os homens a
matar.”
Nesse sentido Hitler foi um aluno aplicado de Nietzsche que fazia
troça do sofrimento alheio. Em um de seus aforismos afirmou que “é
preciso ter grande força de imaginação para poder sentir compaixão”.
Quanto aos grandes vilões da história, estão todos alforriados na
visão de Nietzsche porque não se deve julgar o passado. “A injustiça
da escravidão, a crueldade na sujeição de pessoas e povos não devem
ser medidas pelos nossos critérios(...) Do mesmo modo a Inquisição
tinha as suas razões.”
Hitler distribuía livros de Nietzsche para os soldados
Idolatrado pelo líder nazista, que se considerava a própria encarnação
do super-homem (Übermench) do livro “Assim falou Zaratustra” (escrito
entre 1883 e 1885), Nietzsche também era oferecido como leitura
educativa aos soldados alemães. O veterano jornalista alemão Peter
Scholl-Latour, de 86 anos, conta que os militares nazistas liam
Zaratustra nas frentes de batalha para se sentirem mais
motivados. Imbuídos da ideia de que eram seres superiores,
posicionados muito além da moral vulgar das multidões, da gente
comum, dos inferiores e débeis, julgavam-se senhores do mundo, uma
nova raça de gigantes que imporia a sua vontade de poder sobre uma
massa impotente e submissa.
Situação semelhante já ocorrera na Primeira Grande Guerra (1914-1918)
e de acordo com outro grande admirador de Nietzsche e membro oficial
do partido nazista, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976),
“na Alemanha ou se era contra ou a favor de Nietzsche”. Aliás, esse
envolvimento declarado de Heidegger com o nazismo (escrevia discursos
para Hitler e colaborou para a expulsão de professores judeus da
Universidade de Freiburg, em 1933) motivou o filósofo francês Emmanuel
Faye, 54anos, a propor a remoção das obras de Heidegger das
bibliotecas de filosofia. Em seu livro
Heidegger, l'introduction du nazisme dans la philosophie (2005),
Faye afirma que a obra do alemão está seriamente comprometida com a
doutrina nazista.
Fotos mostram culto do ditador nazista a Nietzsche
A admiração de Hitler por Nietzsche também foi destacada pelo
jornalista e escritor norte-americano William Shirer (1904-1993) em
sua majestosa obra
Ascenção e Queda do III Reich:
“
Frequentemente Hitler visitava o museu de Nietzsche em Weimar e
demonstrava publicamente a sua veneração ao filósofo posando para
fotos em que aparece fitando com admiração a imagem daquele que
considerava um grande homem."
Em seu livro “Hitler as nobody knows him”,
publicado em 1933 (meio milhão de exemplares vendidos até 1938) o
fotógrafo pessoal de Hitler, o alemão Heinrich Hoffman, incluiu uma
foto do ditador ao lado da escultura de Nietzsche com a seguinte
legenda: “O führer em frente ao busto do filósofo alemão, cujas ideias
fomentaram dois grandes movimentos populares: o Nacional Socialismo na
Alemanha e o Fascismo na Itália.”
Judaísmo é o oposto de tudo que Nietzsche propagou
Recentemente o rabino-chefe da comunidade judaica britânica, Sir
Jonathan Sacks, de 62 anos, foi bastante incisivo em sua condenação
aos conceitos do filósofo alemão.” Particularmente considero Nietzsche
uma total antítese dos valores judaicos. Eu não vejo relevância no
fato de que vez ou outra ele encontre coisas agradáveis para dizer
sobre os judeus. Um homem que expressou desprezo pela compaixão e pela
ajuda ao próximo; pela bondade, tolerância, perseverança, humildade e
amizade, mostrou isso sim, o tempo todo, o que o Judaísmo não é.”
Liderando desde 1990 as Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth
e autor de duas dezenas de livros de temática judaica traduzidos em
vários idiomas (A Dignidade da Diferença, Uma Letra da Torá), o
rabino Sacks – alçado à categoria de lord em 2009 - radicaliza em se
tratando de Nietzsche. “Li seus escritos para saber que o Judaísmo é
oposição nessa batalha, agora e para sempre.” Citando a odisséia do
Êxodo, o religioso lembra que há 33 séculos o Judaísmo se mostrou
como uma voz revolucionária ao enfrentar o poder supremo do faraó para
resgatar os indefesos. “As religiões do mundo antigo eram
justificativas do status quo. Explicavam por que os ricos e
poderosos tinham de ser ricos e poderosos. O Judaísmo mudou essa
concepção. A liberdade começa quando partilhamos nosso pão com os
outros. Em Pessach (a Páscoa Judaica) lemos: “Este é o pão da
aflição que nossos ancestrais comeram no Egito. Deixe que todos os
famintos venham e comam.”
Nota: A Páscoa Judaica (a fuga dos judeus do Egito para o deserto –
onde permaneceram 40 anos - liderados por Moisés) é comemorada a
maioria das vezes em datas simultâneas à Páscoa cristã.
(27 de março/2010)
CooJornal
no 677