Sheila Sacks
Unesco 2009: sobre palavras e ações
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Vamos
iniciar o nosso texto com uma pergunta: será que o leitor ou alguém de
suas relações tinha conhecimento, há algumas semanas, do nome e da
nacionalidade do chefe da Unesco, a agência da ONU para Educação,
Ciência e Cultura? Pois é, o diplomata japonês Koïchiro Matsuura exerce
esse importante cargo de diretor-geral desde 1999 (em 2005 foi reeleito
por mais quatro anos) e é quase certo que o grande público continuaria
alheio a esse detalhe se não fosse o imbróglio constrangedor de sua
sucessão, disputada por um ministro da cultura que já propôs a queima de
livros em hebraico.
Considerado favorito, o egípcio Farouq Hosni só perdeu na quinta
apuração, de forma apertada, por apenas quatro votos. Ou seja, foi
apoiado por 27 dos 58 membros do comitê votante. Uma derrota
preocupante, pois revela o tamanho da adesão obtida pelo candidato do
Egito, malgrado a imensa repercussão negativa de sua candidatura,
expressa de maneira veemente nos meios de comunicação por
intelectuais, jornalistas, diplomatas, educadores e até políticos de
várias nações.
Em relação à participação do Brasil, a questão desde o início foi
tratada publicamente pela diplomacia brasileira como uma troca de
favores. Tanto que o chanceler Celso Amorim jamais se sentiu inibido
em suas justificativas em prol da candidatura egípcia, ainda que as
mesmas fossem questionadas por muitos em razão da flagrante
incompatibilidade com o que se convencionou designar de ética e de
bons costumes. Envolvido até o pescoço nas tramas de bastidores da
geopolítica – um jogo de poder usualmente apresentado pela mídia sob
uma artificiosa terminologia que agrega siglas e títulos como G-8,
G-20, emergentes, países em desenvolvimento etc. – o ministro já
sinalizava, em maio deste ano, o rumo do voto brasileiro.
Tolerância zero para o antissemitismo
Na ocasião, entrevistado pelo jornal Folha de S.Paulo, ele
descartou qualquer apoio à candidatura do diplomata Marcio Barbosa,
diretor-adjunto da Unesco, por ver nela uma ameaça à pretensão do Rio
de Janeiro em sediar a Olimpíada de 2016. Segundo Amorim, "cada
candidatura tem um custo para as outras e pode gerar desgaste em
termos de apoio", visto que naquele momento o governo brasileiro
estava empenhado na candidatura do Rio para abrigar os Jogos
Olímpicos: "Fizemos uma opção geopolítica", afirmou o ministro. "O
Brasil tem uma aproximação com os países árabes e africanos que apoiam
a candidatura egípcia." Uma posição que, aparentemente, colaborou para
a conquista das Olimpíadas para o Brasil na votação em Copenhague
(2/10), dez dias depois das eleições na Unesco, encerradas em 22 de
setembro.
Interessante é que o ministro de Relações Exteriores de Israel,
Avigdor Lieberman, que esteve em julho no Brasil e depois estendeu a
sua viagem à Argentina, Peru e Colômbia (primeira visita de um
ministro do exterior israelense ao Brasil, em 22 anos), também parece
advogar uma nova configuração para a política externa de seu país. De
acordo com o portal de notícias "Aurora-Israel", o gabinete do
ministro elaborou um estudo sigiloso sobre a política externa de
Israel praticada no passado em relação ao resto do mundo. "Durante
décadas", revela o documento, "Israel se descuidou por completo de
regiões como a América Latina, África, Europa Oriental, Bálcãs
(sudeste europeu), América Central e sudeste asiático. O Ministério de
Relações Exteriores transformou-se em um ministério de relações
israelenses-palestinos. E o custo dessa negligência tem sido imenso,
evidenciando-se na ONU e em outros centros internacionais." Segundo o
site, essa nova política defendida por Lieberman prevê uma maior
aproximação com outras potências mundiais e com os países em
desenvolvimento, buscando novos parceiros, além da sua já consolidada
aliança com os Estados Unidos.
Por outro lado, o estudo também preconiza uma política de
"tolerância zero" para comportamentos e expressões de antissemitismo
em qualquer parte do mundo.
Vozes importantes não calaram
Mas, voltando à votação na Unesco, que deu uma vitória apertada à
diplomata búlgara Irina Bolkova, custa a crer que uma organização
composta por 193 países-membros e voltada basicamente para a difusão
da educação, principalmente nas nações mais pobres, escapou, por
pouco, de ser comandada por um personagem que em um determinado
momento de sua vida pública foi capaz de expressar pensamentos tão
mórbidos e racistas em relação a uma cultura e a um povo.
Criada em 1945 e sediada em Paris, a Unesco também tem como metas
prioritárias contribuir para a paz e a segurança mediante o pluralismo
e a diversidade de ideias, a liberdade de imprensa e a salvaguarda do
patrimônio cultural dos povos, representada pela preservação das
entidades culturais e tradições orais, a promoção de livros e a
leitura. E foi exatamente aí, no quesito "livros", que o diplomata
egípcio se aproximou do abominável, ao defender perante o parlamento,
em 2008, a queima de livros israelenses em todas as bibliotecas de seu
país. Não sem antes expelir ofensas inaceitáveis e desrespeitosas ("a
cultura israelense é inumana, agressiva, racista, pretensiosa, rouba o
que não lhe pertence...") que, se dirigidas a outras nações, talvez
resultassem em um penoso impasse diplomático. No entanto, devido ao
papel do Egito como mediador em conflitos na região e ao tratado de
paz entre os dois países, que vigora há 30 anos, o assunto não teve
conseqüências mais sérias.
Importantes vozes, porém, não se calaram diante de tamanho
descalabro e repercutiram suas objeções à candidatura do egípcio. A
escritora francesa Simone Weil, a primeira mulher a presidir o
Parlamento europeu (1979-1982), condenou as declarações de Hosni e
pediu o boicote à sua candidatura. O secretário-geral da organização
Repórteres Sem Fronteiras, o jornalista Jean-Fraçois Julliard, lembrou
que o diplomata egípcio não era um bom candidato para a Unesco porque
representava um país que não respeita a liberdade de expressão,
principalmente na internet. O combativo Elie Wiesel, prêmio Nobel da
Paz de 1986, acompanhado de outros intelectuais, alertou a comunidade
internacional, em artigo no jornalLe Monde, sobre o passado e
as declarações racistas de Hosny.
Compromissos não podem ser questionados
Contudo, houve uma pessoa em todo esse contexto permeado de
palavras de indignação, protestos e manobras de bastidores, a quem
coube produzir um gesto raro e admirável, quase um ato de redenção,
capaz de sugerir um viés de esperança em um mundo político cada vez
mais afastado dos valores morais que devem nortear o comportamento e
as ações nas sociedades civilizadas. Trata-se de Manuel Maria Carrilho,
embaixador de Portugal na Unesco, que não aceitou as instruções de
votar no candidato egípcio, o que obrigou o governo português a enviar
outro diplomata a Paris para executar as suas instruções.
Portugal decidiu apoiar Hosni na expectativa de contar com o voto
do Egito à sua candidatura a membro não-permanente do Conselho de
Segurança da ONU para o biênio 2011-2012. Carrilho, de 58 anos, se
recusou a comparecer às últimas votações e a imprensa portuguesa
especulou que o diplomata tenha alegado razões de consciência para não
votar no egípcio, denunciado por suas declarações antissemitas e por
representar um país onde se pratica a censura.
Muito respeitado em Portugal, Carrilho é doutor em Filosofia
Contemporânea, escritor, jornalista (foi colunista do jornal Le
Monde e manteve uma coluna semanal, até 2008, no jornal Diário
de Notícias, um dos mais lidos do país), ministro da Cultura
(1995-2000), deputado e vice-presidente do Partido Socialista, de 2002
a 2008. Entre medalhas e condecorações recebidas, destacam-se a Gran
Cruz da Ordem de Mérito Civil, do rei da Espanha (1996), a Grã-Cruz da
Ordem do Rio Branco, do governo brasileiro (1997) e o Grand Offícier
da Légion d’Honneur, do governo francês (1999).
Nomeado embaixador de Portugal junto à Unesco em janeiro deste ano,
o diplomata apoiava a austríaca Benita Férreo-Waldner, da Comissão
Européia, instituição que representa e defende os interesses dos
países europeus. Esta foi a primeira opção do governo português para o
comando da Unesco e quando a comissária retirou a sua candidatura,
Portugal passou a apoiar o candidato egípcio. Sobre a diferença de
opiniões com Carrilho, o Ministério de Negócios Exteriores de Portugal
declarou, em nota à imprensa, que "os compromissos do Estado português
são superiores e não podem ser postos em causa". Conforme publicado no
matutino Diário de Notícias, "a decisão de Carrilho de não
votar não merece comentários".
Os "destruidores de livros"
Contudo, a sua corajosa atitude se enquadra de forma primorosa no
elucidativo pensamento do escritor norte-americano Ernest Hemingway
acerca do que seja, de fato, um feito. Dizia o prêmio Nobel de
Literatura de 1954: "Jamais confunda movimento com ação."
Vale lembrar ainda que o que estava em jogo, prioritariamente, era
a mudança do comando da mais importante e respeitada organização
internacional de fomento à educação e cultura, bastião da luta contra
o preconceito e a censura nos meios de comunicação. Bem mais do que
eleger, por exemplo, um síndico de prédio que, mesmo assim, se deseja
que tenha bons antecedentes. A retórica de amenizar os pensamentos
explicitados pelo candidato egípcio com artifícios do tipo de que "não
foi bem isso que ele quis dizer" e que "a declaração foi retirada de
seu contexto original" consiste em argumentações escapistas que não
convencem. Na realidade, as palavras devem sem manipuladas com
cuidado, pois são mais poderosas que bombas atômicas. Conselho da
época de 1930, da britânica Pearl Strachan Hurd, que continua a valer
neste século 21.
Estimular, através das palavras, uma prática condenável que a
humanidade deseja crer que jamais será ressuscitada, é uma afronta à
inteligência e à sensibilidade das pessoas de bem. O filósofo e poeta
alemão Heinrich Heine já escrevia, lá pelos idos de 1820, que aqueles
que se mostram dispostos a queimar livros acabam, cedo ou tarde, por
queimar homens. Palavras proféticas, tendo em vista que, um século
mais tarde, livros de grandes autores como Freud, Marx, Einstein,
Mann, Zweig, Remarque e o próprio Heine arderam em fogueiras públicas
nas principais cidades da Alemanha, precedendo a tragédia do
Holocausto.
Em seu livro História Universal da Destruição dos Livros
(2006), o venezuelano Fernando Baez aponta o ódio, o medo, a soberba,
a intolerância e a sede de poder como os motivos que animam os
chamados "destruidores de livros" a seguir adiante. "Na verdade, a
intenção deles nunca foi destruir o objeto em si, mas o que este
representa – o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda
uma civilização."
(24 de outubro/2009)
CooJornal
no 655