Sheila Sacks
PAZ PARA O ANO 5770
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Às vésperas do ano judaico de 5770, uma peregrinação inédita lembrou os
70 anos do início da 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Foi na cidade
polonesa de Cracóvia, onde mais de 200 líderes das principais religiões
do mundo, na primeira semana de setembro, caminharam sobre o solo
empapado de sangue e tragédias dos campos de Auschwitz-Birkenau.
Presente ao evento, o rabino Meir Lau, de Tel Aviv (rabino-chefe de
Israel durante dez anos), lembrou a conversa que teve, em 1993, com o
papa João Paulo II. Na ocasião o papa disse lembrar do avô de Lau
caminhando para a sinagoga, aos sábados, sempre rodeado de muitas
crianças. Rabino na cidade de Cracóvia onde o papa então servia como
bispo, o avô de Lau tinha 47 netos. João Paulo II perguntou quantas
dessas crianças sobreviveram ao Holocausto e ouviu que apenas cinco
foram salvas. O irmão de 13 anos de Lau e todos os primos pereceram na
guerra. O papa também se interessou em saber se o rabino Lau tinha
filhos. Sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald (foi salvo
em 1945, com oito anos de idade) e hoje presidindo o Instituto Yad
Vashem que abriga o Museu do Holocausto, em Jerusalém, Lau, de 72 anos,
pôde dizer ao papa que sim, tinha filhos e netos, todos vivendo em
Israel. E essa resposta, segundo o rabino israelense, seria a expressão
de sua revanche às atrocidades do passado. Uma vida familiar plena,
assentada na tolerância, na amizade, no amor e na paz.
UMA HERANÇA QUE NINGUÉM QUER
No outro extremo, que condições restariam à conduta, ao modo de viver,
aos pensamentos e sentimentos daqueles que se dispuseram a violar os
preceitos mais básicos da condição humana, exterminando friamente
famílias inteiras, deixadas despidas e amontoadas em cubículos injetados
de gás letal? O psiquiatra e filósofo austríaco Viktor Frankl,
sobrevivente do campo de Auschwitz e falecido em 1997, conta uma
história interessante. Quando os aliados libertaram os campos de
concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto
esconderam um oficial da SS, de nome Hoffman, e só concordaram em
entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse
maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante algum
tempo, manteve correspondência com o oficial, tentando confortá-lo, já
que o homem vivia atormentado por sua participação no processo de
extermínio implantado pela máquina nazista. Sem dúvida, muitos outros
Hoffman que lograram escapar da Justiça se viram presos ao horror de
suas memórias odientas. A fuga e o anonimato aparentemente não os
puseram a salvo de seus medos, temores e fantasmas, restando a essas
pessoas uma sombria e miserável vida acuada de fugitivos da lei.
Personagens do limbo da história, execrados pelas gerações posteriores
de compatriotas para as quais sobraram uma abominável herança de ódio e
um legado de desconforto e vergonha
O SILÊNCIO DOS QUE SABIAM
Passadas sete décadas do infortúnio do Shoá, o tema já aglutinou uma
vastíssima literatura que imortalizou nomes como o da jovem Anne Frank
(1929-1945) e do italiano Primo Levi (1919-1987), consagrando ainda
figuras do porte do escritor e ativista de direitos humanos Elie Wiesel,
de 81 anos, prêmio Nobel da Paz de 1986. É difícil imaginar um outro
assunto que nos últimos cinqüenta anos tenha monopolizado todas as gamas
de arte e cultura de forma tão intensa e diversificada através de livros
memorialistas, romances, ensaios, filmes, peças teatrais, museus,
monumentos, esculturas, exposições de pintura, seriados de TV etc.
O rabino Meir Lau, também autor de uma autobiografia que conta a sua
experiência no campo de Buchenwald, lembrou aos participantes do
encontro em Cracóvia que houve apenas três grupos associados ao
monstruoso crime do Holocausto: os nazistas e seus colaboradores, as
vítimas, e aqueles que sabiam e não diziam nada. Para esses últimos,
muitos ainda vivos, a quantidade estupenda de literatura disponível
sobre esse terrível momento histórico expõe de forma brutal o silêncio
covarde que ajudou a aniquilar milhões de seres humanos de forma vil e
bestial.
A VOZ DO CORAÇÃO
Em outro patamar e com um enfoque diverso, a guerra do Líbano (1982) e
demais guerras empreendidas pelo estado de Israel em defesa de sua
nacionalidade, têm feito surgir uma geração inquieta e aflita de
escritores, artistas e diretores de cinema memorialistas. Dispostos a
abrir seus corações ao mundo, o foco de suas atenções é o serviço
militar israelense, o exército, as guerras, a perplexidade de uma
juventude atada a um destino único em termos de história de perseguições
e sobrevivência. Estimulados e adulados pela mídia internacional, são
convidados em congressos e bienais, e ganham importantes prêmios em
festivais.
É o caso do escritor israelense David Grossman, convidado da Bienal
Internacional do Livro do Rio de Janeiro. O festejado intelectual, nos
debates e nas entrevistas das quais participou, fez questão de
explicitar a íntima ligação de sua literatura com a vivência contínua de
um país em guerra. O ato de escrever, segundo ele, funcionaria como uma
espécie de redenção, de contradição à guerra que “nacionaliza” e
encouraça a própria alma. Uma percepção que também se mostra presente
nos filmes israelenses “Valsa com Bashir”, de Ari Folman, e “Lebanon”,
de Samuel Maoz, co-produzidos pela França e Alemanha. Ambos de caráter
autobiográfico e relacionados às memórias de soldados na guerra do
Líbano (1982), os filmes foram criados, segundo seus autores, para
exorcizar os medos e culpas dos que enfrentam e sobrevivem às guerras. O
primeiro, produzido em 2008, já conquistou o “Globo de Ouro”
norte-americano e o César francês (uma espécie de Oscar), e o segundo
acaba de ganhar o prêmio máximo no Festival de Veneza de 2009.
Enfatizando a sua simbiose com o filme (‘escrito com as próprias
entranhas’) e dedicando o prêmio a todos que se defrontaram com uma
guerra e “tiveram de aprender a viver com essa dor”, Moaz, de 47 anos,
talvez sem perceber, singularmente reconcilia os dois lados do conflito,
um e outro nivelados pela tragédia interior de sobreviverem como reféns
de um passado de pesadelo e horror. Esse sentido essencialmente humano
da questão que inclui a primorosa qualidade da solidariedade com o
sofrimento do seu antagonista, é a autêntica expressão da face judaica,
revelada com coragem e generosidade pelo israelense. Uma declaração nada
fácil que deveria servir de inspiração aos povos e líderes de nações que
estimulam a guerra e o terrorismo. Palavras que iluminam um pouco mais o
novo ano de 5770, que se deseja melhor que os anteriores no quesito da
paz.
(26 de setembro/2009)
CooJornal
no 651