Existem livros que transcendem o tempo. Talvez porque falem de temas
universais presentes em nosso cotidiano. Foi o que fez o rabino
norte-americano Harold Kushner ao escrever, há mais de 25 anos, a obra
“Quando Coisas Ruins acontecem às pessoas Boas”. Traumatizado com a
morte do filho de 14 anos que sofria de uma doença genética incurável,
Kushner repassou para o papel toda a sua experiência de dor e
sofrimento, e também a sua inabalável fé no Criador. Isso porque como
rabino de uma pequena congregação, em Massachusetts (EUA), ele pôde
observar que as pessoas atingidas por uma tragédia geralmente
mostravam-se revoltadas e terrivelmente abaladas em sua crença
religiosa. Citando a figura bíblica de Jô, homem íntegro que vê os
filhos morrerem, os negócios falirem e a doença atacar o seu corpo,
Kushner dá o seguinte recado: mesmo nas adversidades, não ceda à
tentação de abandonar a fé em Deus. Entretanto, essa tragédia pessoal
faz o rabino repensar tudo o que ensinava sobre Deus e os caminhos de
Deus.
A
visão do tapete
No
livro acompanhamos os inúmeros casos verídicos de adultos bons, decentes
e fiéis em suas crenças, e de crianças alegres e inocentes, os quais, em
um momento de suas vidas, são atingidos por um infortúnio ou mesmo pela
tragédia. Kushner observa que muitas dessas pessoas e as que estão ao
seu redor têm a idéia de que possíveis tropeços e desmandos possam ser
as causas de suas desgraças. Isso é, que Deus dá a cada um o que cada um
merece. Uma culpa que geralmente se mistura à revolta e a inevitável
questão: “Que razões poderia ter Deus para fazer o que fez, já que não
sou pior do que o meu vizinho?”.
O
rabino lembra que no livro “O Oitavo Dia” (1967), o escritor
norte-americano Thornton Wilder (1897-1975) dá uma visão interessante
dos desígnios de Deus. A história descreve um homem bom cuja vida é
arruinada pela má sorte e hostilidade. Ele e sua família sofrem, embora
sejam inocentes. E não existe final feliz. O que Wilder apresenta,
destaca Kushner, se assemelha à imagem de um lindo tapete. Olhando do
lado direito, é um trabalho de arte, muito bem tecido, reunindo fios de
diferentes tamanhos e cores para formar um desenho inspirado. Mas,
virando o tapete pelo avesso, percebe-se uma confusão de fios, uns
curtos outros compridos, alguns cortados, outros amarrados. Logo, seria
dessa forma que veríamos o mundo, do nosso ponto de vista, ou seja,
olhando o tapete de baixo, enxergando o seu avesso. E dessa maneira, os
padrões de recompensa e punição poderiam parecer arbitrários e sem
lógica porque não temos a capacidade de compreensão e o entendimento
divino.
Kushner assinala em seu livro que nem sempre há uma razão para os males
que nos afligem: “Será que somos capazes de aceitar a idéia que há fatos
que surgem sem qualquer razão, de que no universo existem circunstâncias
fortuitas?”. Muita gente não se conforma com o conceito de casualidade e
procura nexo e sentido em tudo que lhes ocorrem. Outras enxergam a mão
de Deus atrás de tudo o que acontece. Mas suponhamos, escreve o rabino,
que Deus não tenha terminado toda a sua obra no sexto dia, de acordo com
a metáfora bíblica da Criação, e o processo de colocar ordem no caos
ainda esteja em andamento.
Pela
vida
Sobreviventes do Holocausto também são bons exemplos quando se aborda os
desígnios de Deus. No livro “Por Aqueles que eu amo”, Martin
Gray, que sobreviveu ao Gueto de Varsóvia e ao Holocausto, conta que
depois da guerra se casou e constituiu uma família feliz. Entretanto, um
incêndio em sua casa no sul da França matou a esposa e seus filhos.
Ainda que arrasado com a tragédia, Gray preferiu não ir atrás de
possíveis culpados e aplicar os seus recursos em um movimento para
proteger as florestas de incêndios. A vida, explicou o sobrevivente, tem
que ser vivida por alguma coisa, não contra alguma coisa.
Kushner também cita o trecho de um livro escrito por um sobrevivente de
Auschwitz ( A Fé e a Dúvida dos Sobreviventes do Holocausto, de
Brenner) sobre a vontade de Deus e a matança de milhares de inocentes
nos campos de concentração nazista. Afirma o sobrevivente: “Nunca me
ocorreu questionar o que Deus fez ou deixou de fazer, enquanto eu fui um
habitante de Auschwitz... Eu não fiquei menos ou mais religioso com o
que os nazistas nos faziam... Nunca me ocorreu associar a calamidade que
estávamos experimentando a Deus, censurá-Lo, deixar de crer, porque Ele
não vinha em nosso socorro. Devemos a Deus nossas vidas, pelos poucos ou
muitos anos que vivemos, e temos a obrigação de cultuá-Lo e fazer o que
Ele nos ordena. Para isso estamos na terra – a serviço de Deus, para
cumprir a Sua vontade”.
No
mais, o rabino Harold Kushner tem hoje 74 anos, escreveu vários livros
de sucesso (Quando Tudo não é o Bastante; Quando as Crianças
perguntam sobre Deus) e foi considerado pela organização católica
norte-americana “The Christophers” uma das 50 pessoas que, nos últimos
50 anos, tornaram o mundo melhor.
(18 de julho/2009)
CooJornal
no 641