Para que servem as
guerras contra Israel? De pronto para escancarar que a realidade e a
razão são departamentos distintos e que na maioria das vezes nem sequer
estão relacionados. Também para distinguir e separar o mundo pressuposto
das idéias, aparências e conjecturas filosóficas, do universo de
experiências cruéis, assustadoras e muitas vezes, sem sentido, mas nem
por isso menos eloquente em sua natural ausência de propósitos
inteligíveis.
Há três séculos, o
pensador iluminista Pierre Bayle (1647-1706) já concluía em seu
“Dicionário Histórico e Crítico” que a história da civilização não é
mais do que um relato dos crimes e infortúnios da raça humana.
Observação conectada à assertiva de seu colega holandês, Baruch Spinoza
(1632-1677), que prevenia os incautos sobre o desconcertante atributo da
natureza: o de não se submeter às leis da razão humana. Dizia o sábio de
Amsterdã na obra “Tratado Político” que “tudo o que, na ordem natural,
possa nos parecer absurdo e mau, só tem esta aparência porque conhecemos
as coisas apenas em parte, ignoramos tal ordem inteira e todas as
ligações entre as coisas”. Quanto ao estado constituído e seus cidadãos,
ele ajuizava: “Os homens não nascem civis, fazem-se”.
GOTA D¢ÁGUA
A mais recente guerra
contra Israel, sob a batuta do Hamas, é a ilustração perfeita da eterna
controvérsia que anima os discursos filosóficos, desde o grego Platão,
300 anos antes da Era Comum, na questão que diz respeito ao aparente e à
realidade. Ou seja, a última instância de julgamento seria representada
pelas idéias ou pela experiência? A pergunta está formulada no livro “O
Mal no Pensamento Moderno” (2002), da filósofa e ensaísta
norte-americana Susan Neiman, 54 anos, que também instiga o leitor com a
provocativa afirmação de que “a preocupação que alimentou os debates
(nesses séculos) sobre a diferença entre aparência e realidade não foi o
medo de que o mundo pudesse, no final das contas, não ser como nos
parecia, mas sim o medo de que fosse”.
Diante da explosão do
embate em Gaza, em 27 de dezembro de 2008 - onde cabe citar novamente
Neiman em sua perplexidade: como uma gota d´água torna-se a última? – e
nas semanas que se seguiram, uma torrente de argumentos lógicos e
racionais da parte das comunidades judaicas mundiais se solidificou em
apurados e consistentes textos literários em defesa da posição
israelense. Com o respaldo de um cortejo de emotivas cartas de apoio, os
artigos se aglomeraram nos turbulentos espaços virtuais da Internet e,
em menor número, ousaram se infiltrar nas ardilosas páginas da mídia
impressa.
CONSENSO CÍNICO
Entretanto, desde
1982, quando da “Operação Paz para a Galiléia” realizada por Israel no
sul do Líbano, com a missão de deter os ataques terroristas da OLP
(Organização para a Libertação da Palestina) ao seu território, todas as
ações israelenses levadas a efeito com o intuito de barrar a escalada de
provocações letais que desestabilizam o cotidiano e impõem o medo à sua
população civil, são interpretadas e julgadas pela mídia internacional e
políticos de diversas nações, sob um contexto irreal e insensato, que
exclui dos agressores os sintomas exibidos de uma perene síndrome de
guerra oriundos da semeadura do ódio, da cultura do terror, da doutrina
da violência e da ideologia da intolerância. Um aprendizado invertido de
humanismo e cidadania que, de maneira indecorosa, é atiçado e
disseminado por lideranças fundamentalistas assentadas nas vizinhanças
do estado judeu.
Desconsiderando os
antecedentes históricos e as evidências contemporâneas de uma
militarização focada na defesa e na preservação de seu berço nacional,
da parte de Israel, em oposição a uma tática palestina de acúmulo de
armamentos, centrada no ataque e na destruição de um país legalmente
constituído, vai-se engendrando, astutamente, no âmago emocional da
opinião pública, uma espécie de consenso cínico e induzido em relação às
ações israelenses, tendo como analogia a tragédia de horror do
Holocausto. Assim, qualquer iniciativa de Israel no campo de defesa
militar já nasce condenada a priori pela natural probabilidade, em seu
decorrer, de produzir vítimas, principalmente civis e particularmente
crianças, no lado agressor, o que se constituiria, segundo essas vozes
espertas e trapaceiras, em um arremedo da estratégia da abominável
máquina nazista que teve por objetivo suprimir o povo judeu do planeta.
Tal tentativa de
estabelecer um vínculo comparativo entre as ações israelenses e a
crueldade imposta por um regime político-ideológico que, entre outras
aberrações, conduziu centenas de milhares de crianças às câmaras de gás,
só pode ser entendida como um deboche ou uma provocação. “Pois os campos
de extermínio não apenas fabricavam cadáveres, mas se destinavam à
destruição prévia de almas”, explica Neiman, para quem todos os
processos de humilhação, indignidade e de erradicação da identidade e da
força de vontade aos quais as vítimas eram submetidas, destinavam-se a
destruir o próprio conceito de humanidade dentro delas. Uma situação
diferente da que ocorre em combate, no enfrentamento e na resistência
armada, quando “instantes heróicos capazes de triunfar à própria morte”
se incorporam ao contexto.
INTENÇÕES E VISÕES
Nesse cenário aberto
à manipulação de jogos conceituais sobre males morais e culpabilidade,
tema de especial valor e sempre presente na dialética judaica do século
20, observa-se que os fatos e as imagens tendem a se dissociar das
argumentações e até torná-las irrelevantes, como ensinou a guerra de
Gaza. Mas, mesmo assim, é preciso refletir na noção de
“intencionalidade” que fomenta os atos de terror do Hamas. “Como os
terremotos, os terroristas atacam aleatoriamente: quem sobrevive e quem
morre dependem de contingências que não podem ser merecidas ou evitadas”
(Neiman).
Contudo, a visão da
calamidade, do sofrimento e da dor afeta e desestrutura o ser humano,
não importando a cor e o credo, que sob o seu impacto recompõe
naturalmente algumas referências ou exigências acerca de padrões para
avaliação do aceitável e do justo. Em mentes sensíveis e criativas, o
fenômeno se expande e adquire dimensões artísticas e literárias
ilimitadas, transfigurando-se em filmes memoriais – o mea-culpa “Valsa
com Bashir” -, odisséias rocambolescas e exposições apocalípticas, mas
nem por isso desimportantes ou desmerecedoras de atenção e análise. É o
caso do livro “The Yiddish Policemen¢s
Union”, do norte-americano Michael Chabon, traduzido no Brasil sob o
título “Associação Judaica de Polícia” (2009). No enredo, o estado de
Israel foi derrotado em 1948 e os judeus sobreviventes do Holocausto
foram viver provisoriamente no Alaska, de onde, 60 anos depois, são
forçados a ir embora por uma decisão dos Estados Unidos.
Na exposição
futurista “Exodus 2048”, do israelense Michael Blum, o novo estado de
Israel fica em Uganda, na África. A debandada da população de Israel se
deu no final de 2047 e muitos israelenses, vinte anos depois, vivem em
campos de refugiados na Holanda. É o que conta o jornalista Ali Kamel
(‘Construções’ – O Globo de 10.03.2009), que visitou a instalação no
New Museu, em Nova York.
Essas projeções
lúgubres evocam, essencialmente, a simbologia medieval do judeu errante
e sem pátria ainda recorrente no imaginário coletivo e que, de tempos em
tempos, é reavivada de maneira irreverente e até desconcertante. Mas o
fato é que a insurgência na literatura, nas artes e demais áreas do
pensamento, nos momentos de crise e nas guerras contra Israel
apresenta-se como um desafio de grandiosa proporção: o de testar,
acintosamente, a incondicionalidade de um compromisso milenar assumido
há mais de 3.300 anos, na aridez do deserto do Sinai, por um povo recém
liberto dos grilhões da escravidão. Vínculo posto à prova, mais uma vez
em Gaza, sem as sutilezas e manhas que floreiam os tempos de paz.
(18 de abril/2009)
CooJornal
no 628