14/03/2009
Ano 12 - Número 623
Sheila Sacks ARQUIVO |
Sheila Sacks
JOSÉ SARNEY: O DESAFETO BRASILEIRO DE HUGO CHÁVEZ |
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Em meio as areias mornas
das praias baianas, no único estado brasileiro governado por um político
judeu (o carioca Jacques Wagner), teve lugar no final de 2008 mais uma
reunião semestral dos chefes de estado do Mercosul, a de número 36, sem
que o desejo mais do que explicitado pelo venezuelano Hugo Chávez
tivesse sido concretizado em sua totalidade. A vontade obstinada de
incluir a Venezuela, sob o seu comando, como membro pleno, com direito a
voto, no grupo de países sul-americanos democratas, tem encontrado
resistência por parte do Senado brasileiro, o qual precisa dar o aval ao
ingresso daquela nação na comunidade econômica regional. Daí a birra e o
flagrante atraso de Chávez à abertura da reunião, entendidos como um
claro recado de descontentamento com a situação. O representante da
Venezuela presente ao evento ironizou o fato falando aos jornalistas que
Chávez chegaria à mesa de reunião certamente mais cedo do que a decisão
do parlamento brasileiro.
A indignação do líder venezuelano ficou à mostra porque naquele semestre
coube ao colega brasileiro Lula ocupar a presidência do Mercosul e a
expectativa da total aprovação da Venezuela no bloco era bastante
positiva. Porém, ao fim do mandato verde-amarelo, tudo parecia como
dantes, restando então a Chávez apostar todas as fichas no novato
Fernando Lugo, presidente do Paraguai, país que preside a aliança desde
janeiro deste ano.
Contudo, numa jogada de mestre, o presidente Lula, como bom anfitrião,
soube amenizar a carranca de Chávez ao mobilizar, na véspera da cúpula,
a base aliada na Câmara dos Deputados, que em uma manobra de última hora
inverteu a pauta de assuntos legislativos e priorizou a proposta,
aprovando a Venezuela no Mercosul pelo placar de 265 votos a favor, 61
contra e seis abstenções. Dessa forma, Chávez pôde curtir o encontro de
melhor humor, não obstante à sonora vaia que recebeu ao desembarcar no
Aeroporto Internacional de Salvador e a incômoda teimosia oposicionista
do Senado brasileiro, instância superior que ainda não deu o sinal verde
para a Venezuela integrar o grupo.
DEMOCRACIA DE MENOS
Como é de conhecimento público, a entrada da Venezuela no Mercosul como
membro pleno foi estipulada pelos governos da Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai, em julho de 2006, mas até agora só foi ratificada
pelos Congressos da Argentina e do Uruguai.
Durante os debates na Câmara dos Deputados sobre a questão, os partidos
da oposição, principalmente o PSDB (Partido da Social Democracia
Brasileira) do ex-presidente Fernando Henrique (1995-2003) e dos atuais
governadores Aécio Neves (Minas Gerais) e José Serra (São Paulo),
votaram contra a entrada da Venezuela no bloco, alertando de que naquele
país não existe garantia das liberdades democráticas e que Chávez
tentará impor uma agenda ideológica ao Mercosul, o que não interessa ao
Brasil. Na prática se traduziria no risco do governo de Chávez ficar
contra uma determinada negociação que possa depender de aprovação
unânime, atravancando qualquer avanço comercial de interesse da maioria.
Com a agravante de que a Venezuela ainda não cumpriu as condições
técnicas e comerciais condicionantes à sua adesão. Daí que a aceitação
desse país no bloco equivaleria a rasgar o estatuto do Mercosul, já
alertaram deputados oposicionistas.
FOCO NO COMÉRCIO
Por outro lado a base aliada de Lula, defendendo a integração regional
sem crivos ideológicos, tem argumentado que a entrada da Venezuela vai
ampliar o cenário político do Mercosul, que passará a contar com 250
milhões de habitantes, superfície de 12,7 milhões de quilômetros
quadrados, e um volume de comércio de cerca de 300 bilhões de dólares.
Os governistas invocam, ainda, o fato de que em 2008 a corrente de
comércio entre Brasil e Venezuela atingiu 5,1 bilhões de dólares, dos
quais 4,6 bilhões corresponderam às exportações brasileiras. A
Venezuela, segundo o governo federal, já é o segundo destino das
exportações brasileiras na América do Sul, perdendo apenas para a
Argentina (13,8 bilhões de dólares de um total de 17 bilhões
comercializados com o bloco).
Segundo dados recentes do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e
Comércio, as exportações brasileiras cresceram sete vezes desde que
Chávez se tornou presidente, há dez anos, e no ano passado chegaram a
ser dez vezes maior que as importações da Venezuela, com destaque para a
venda de automóveis, alimentos e outros bens manufaturados. Para
analistas econômicos o Brasil é o país que mais se beneficiou
comercialmente com a política do governo chavista.
O FATOR SARNEY
Dos vários políticos brasileiros que reprovam o governo Hugo Chávez e
resistem em aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul destaca-se o
presidente do Senado e ex-presidente da República (período de 1985 a
1990), senador José Sarney, de 78 anos, que há tempos vem alertando
sobre a crescente militarização daquele país e o perigo que representa a
sua política agressiva para os demais países da América Latina. Durante
recente visita de Cristina Kirchner ao Congresso Nacional, por ocasião
da festividade da Independência (7/9/2008), coube a Sarney saudar a
chefe de Estado Argentina, que em resposta fez questão de acentuar o
papel decisivo do senador na criação do Mercosul, chamando-o de “grande
estadista e amigo da Argentina”. Vale lembrar que o Mercosul foi
instituído em dezembro de 1985, quando da assinatura da Declaração de
Foz de Iguaçu pelos presidentes Sarney e Alfonsin, com o intuito de
implantar uma base para a integração econômica do chamado Cone Sul.
Cinco anos depois, em março de 1991, já nas gestões de Collor e Menem,
foi assinado o Tratado de Assunção, com a participação do Paraguai e
Uruguai, formando, então, a espinha dorsal do Mercosul, com os seus
quatro estados membros votantes. Outros cinco países do continente foram
aceitos como estados associados (Bolívia. Chile, Peru, Colômbia e
Equador) e o México ficou com o status de estado observador.
Por sua vez, Hugo Chávez sempre advogou a adesão plena da Venezuela ao
Mercosul, com direito a voto, porque percebeu que o bloco se apresentava
como uma rentável plataforma midiática para os seus delírios políticos e
performances histriônicas. Um majestoso palco para os seus discursos de
retórica ultrapassada, mas nem por isso, menos virulentos, eivados de
conceitos medievais e preconceituosos em relação aos Estados Unidos, a
Israel e aos judeus. Esse tópico, aliás, merece um parêntese.
DEMAGÓGICO E RACISTA
Exemplos de atitudes de desrespeito e intolerância não faltam ao
caudilho. Em dezembro de 2007, dias antes do plebiscito que não aprovou
a sua reeleição, Chávez deu ordem para que 40 agentes da polícia
política invadissem o Clube Hebraica de Caracas, onde também funciona
uma escola, com o objetivo de encontrar supostas armas e explosivos
escondidos que poderiam ser usadas para atrapalhar a votação. É fato que
nada foi encontrado.
Dois anos antes, em 2005, no discurso de véspera de Natal, Chávez já
havia incitado os seus ouvintes contra à comunidade judaica,
utilizando-se de senhas e jargões preconceituosos próprios de regimes
demagógicos, ao dizer que “ algumas minorias que crucificaram Cristo,
vêm se apoderando das riquezas do mundo”.
Atualmente a Venezuela de Chávez está alinhada com o Irã de Mahmoud
Ahmadinejad, que prega abertamente o extermínio dos judeus e a
eliminação do estado de Israel. Um grupo terrorista autodenominado
“Hezbollah na América Latina” tem encontrado guarida e espaço nos meios
de comunicação da Venezuela. A imprensa local, fortemente influenciada e
dirigida pelo governo, repercute suas idéias e conceitos disseminando o
ódio através de imaginosas teses conspiratórias, transformando o país e
o seu povo em um perigoso arremedo da famigerada Alemanha nazista.
Para culminar, duas semanas antes do referendo ocorrido em 15 de
fevereiro deste ano e que deu ao líder venezuelano a tão almejada
possibilidade de reeleição ilimitada, vândalos invadiram a sinagoga de
Caracas, pichando as paredes e profanando os objetos sacros. Em artigo
publicado no jornal “O Globo” (14.02.2009), o jornalista Osias Wurman –
que já presidiu a Federação Israelita do Estado Rio de Janeiro (Fierj) –
classificou a invasão como “um divisor de águas nas provocações que o
governo de Chávez vinha alimentando contra os judeus venezuelanos”. Ou
seja, a máscara do caudilho caiu de vez e “os bárbaros de Chávez”
assumiram, sem pudor, a sua cruel identidade racista e danosa. É o que
bem demonstra o mais recente caso de intimidação antissemita ocorrido em
Caracas (26.02.2009), quando uma bomba foi jogada contra um centro
judaico.
Esse conjunto de fatos (e mais a expulsão do embaixador israelense do
país) torna-se mais perturbador e assombroso se analisarmos que os
mesmos estão ocorrendo, escancaradamente, em nossas vizinhanças, na
América Latina, no alvorecer do século 21. E o mais absurdo e cínico de
toda essa história é que o governo chavista pôs a sua assinatura no
documento final da cúpula do Mercosul, comprometendo-se oficialmente a
se opor e não dar guarida a nenhuma forma de racismo, discriminação e
intolerância religiosa.
RESISTÊNCIA E AMEAÇAS
Representante do estado do Amapá, o maranhense José Sarney comanda a
resistência, no Senado brasileiro, à entrada da Venezuela no Mercosul, o
que levou Chávez a chamar esta Casa Legislativa, em 2007, de “papagaio
de Washington”, ameaçando com a retirada do pedido de adesão ao bloco:
“Se não pudermos entrar no Mercosul, porque a direita brasileira tem
mais força do que a idéia de integração, nós nos retiramos do Mercosul”,
afirmou na ocasião.
Em discurso no Senado, Sarney acusou o governo Chávez de ferir a
cláusula de defesa democrática do tratado, além de ter dado início a
corrida armamentista na região: “Nós fizemos um pacto aqui no
continente, o de só aceitarmos no Mercosul países que fossem democratas.
E no momento não há como considerar que a Venezuela seja uma democracia
exemplar, visto que na hora em que acaba a alternância do poder, acaba o
coração da democracia”.
Há dez anos no poder (foi eleito em dezembro de 1998), Chávez também foi
duramente criticado pela ONG Human Rights Watch (HRW), que em relatório
divulgado em 18 de setembro de 2008, em Caracas, denunciou o acentuado e
grave enfraquecimento das instituições democráticas na Venezuela, a
intolerância política, a violação de direitos básicos, a intimidação e
censura nos meios de comunicação, o controle do Judiciário, a repressão
aos opositores do regime e a discriminação em concursos públicos
daqueles que não se perfilam com o governo. O documento de 267 páginas
enfatiza a perda das liberdades civis ocorrida nessa década, com a
limitação do acesso à informação e a elaboração de listas negras,
utilizadas para excluir das estatais os servidores que não votem a favor
do governo. Em resposta às críticas, Chávez expulsou do território
venezuelano o representante da organização, José Miguel Vivanco.
Atitude semelhante ocorreu às vésperas do último referendo, quando
Chávez também despachou para fora da Venezuela o representante espanhol
do parlamento Europeu, o deputado Luis Herrero, que estava no país como
observador político. Repetindo as críticas que fez em solo venezuelano,
Herrero confirmou posteriormente o medo que assola os políticos de
oposição e as seguidas ameaças de Chávez a seus adversários,
classificando esse comportamento e o regime próprios de uma ditadura.
OFENSAS
Os pronunciamentos de Sarney também têm enfurecido o governo de Chávez.
Acusado de “lacaio e servil” pelo deputado Carlos Escarrá,
vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores da Assembléia
Nacional da Venezuela, Sarney tem tido que o exercício de uma democracia
irrestrita é condição essencial para o país participar do Mercosul.. Em
resposta, o parlamentar chavista declarou que “a democracia venezuelana
é, hoje, a mais perfeita do mundo”. Sarney ironizou a afirmação listando
os poderes ditatoriais de Chávez na Venezuela: “Criar ou suprimir
províncias, cidades, distritos funcionais, municípios federais, regiões
marítimas, regiões estratégicas, além de designar e remover autoridades,
tais como destituir o vice-presidente e nomear vice-presidentes para
governar as novas regiões, promover oficiais das Forças Armadas em todos
os graus e hierarquias, administrar a Fazenda Pública e as reservas
internacionais.”
Em discurso no Senado, Sarney alertou que Chávez está transformando a
Venezuela em uma potência militar, investindo 4 bilhões de dólares na
compra de caças de última geração, armamentos, submarinos e foguetes que
absolutamente não têm sentido de defesa. “A América do Sul é o
continente mais pacífico da face da Terra. Não termos guerras há 70
anos, e o Brasil, sobretudo, é um exemplo extraordinário, porque tem
fronteira com 10 países e não tem problemas com nenhum deles. É um
perigo, para o Brasil e para a América Latina, que haja uma potência
militar instaurada dentro do continente”, assinalou.
CORRIDA ARMAMENTISTA
A consequência dessa política belicista, implementada por Chávez a
partir de 2006 - quando visitou a Rússia de Putin e encomendou vários
mísseis terra-ar, 24 caças, 53 helicópteros militares, 100 fuzis
automáticos e ainda firmou contratos para instalação de fábricas de
munição e fuzis, com capacidade de produção de 50 mil unidades anuais -
já pode ser aferida nos dados de 2008. Segundo Sarney, a movimentação
belicosa da Venezuela provocou uma corrida armamentista, com o
crescimento de 55% no orçamento militar da América do Sul, atingindo
38,4 bilhões de dólares em 2007, dinheiro que seria melhor empregado em
programas sociais. Mas, insistindo na dose, Chávez viajou outra vez à
Rússia em julho de 2008, desta vez para comprar submarinos, tanques e
sistemas antiaéreos iguais aos que foram vendidos ao Irã.
Para Sarney, o plano de militarização de Chávez jogou a América Latina
para dentro da chamada corrida armamentista, o que inclusive motivou a
reativação da Quarta Frota dos EUA no Atlântico Sul, logo após o retorno
de Chávez da Rússia. Essa frota, criada em 1943 diante da ameaça nazista
ao continente, estava desativada desde 1950, ou seja, há quase sessenta
anos. Constituída por porta-aviões, submarinos e belonaves de guerra, o
conjunto bélico agora terá objetivos humanitários, segundo o governo dos
EUA, de vigilância contra o terrorismo e de repressão ao narcotráfico.
Entretanto, muitos acreditam que a Venezuela de Chávez será o principal
alvo diante de qualquer crise na região.
NO OLHO DO FURACÃO
Em discurso no Senado, em setembro de 2008, Sarney voltou a acusar
Chávez de desestabilizar o continente por oferecer o território da
Venezuela para bases militares russas, “uma reprise do que fez Cuba, em
1962, e que quase levou a uma guerra nuclear, com a crise dos mísseis”.
Dois meses depois, em plenário, Sarney novamente marcou a sua posição
contra a entrada da Venezuela no bloco, chamando a atenção para a falta
de democracia no país.
Essa atitude de Sarney contrária à entrada da Venezuela no Mercosul não
mudou, revela o jornalista Cláudio Humberto, em sua coluna no Jornal do
Commércio (27.2.2009). “Para Sarney, Chávez é só um coronel golpista e
um elemento desagregador no Mercosul”, afirma o colunista que conversou
com o presidente do Senado. Entretanto, mesmo as evidências apontando
para uma gradual perda de liberdades na Venezuela, aumentam as pressões
vindas da Câmara dos Deputados e de setores do governo brasileiro para
que o Senado aprove o ingresso da Venezuela no Mercosul.
HOMENAGENS
Político e escritor, o ex-presidente José Sarney nasceu em 1930 no
Maranhão. Por diversas vezes foi deputado e senador pelo seu estado
natal, além de governador. Desde 1990 é senador do PMDB (Partido do
Movimento Democrático Brasileiro) pelo estado do Amapá e foi eleito, em
fevereiro deste ano, pela terceira vez, presidente do Senado brasileiro.
Autor de contos, crônicas, poesias, ensaios e romances, Sarney é membro
da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa.
Seus livros mais conhecidos são “Maribondos de Fogo”, “O Dono do Mar” e
“Saraminda”.
Entre as inúmeras condecorações que recebeu destacam-se a Grã-Cruz da
Legião de Honra (França) e o Grande Colar da Ordem do Mérito da
República Italiana. Também recebeu condecorações em Portugal, México e
Colômbia. No Brasil é detentor da Grã-Cruz da Ordem do Mérito Nacional,
Militar, Naval e Aeronáutico; do Prêmio de Integração Latino Americana e
da Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
No final de 2008 foi agraciado com uma Moção de Louvor como Embaixador e
Agente da Paz no Mundo durante uma sessão solene em homenagem à “Paz
Universal”, em Brasília, patrocinada pela Associação Internacional
Cristã Amigos Brasil-Israel.
(14 de março/2009)
CooJornal
no 623
Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras
Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO
JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
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