No
limiar do ano judaico de 5769 (29 de setembro de 2008), cresce a legião
de cartunistas brasileiros aliciada por regimes extremistas,
beligerantes e anti-semitas que utilizam a arte da caricatura e da
charge como armas de incitação e convencimento. O cartoon
“político” virou um campo de guerra, uma terra de ninguém onde
artistas-milicianos se valem de todos os artifícios enganosos da
propaganda e do imaginário racistas para degradar a identidade judaica e
o estado de Israel. Eventos macabros como o concurso “Caricaturas do
Holocausto” (2006), organizado pela Casa do Cartum do Irã, ou
belicistas como o “Internacional Gaza Cartoon” (maio de 2008), com o
tema “Morte em Gaza”, ganharam participação significativa de cartunistas
brasileiros, alguns premiados em ambos os certames.
Esse
fenômeno perturbador tem sido detectado pelo pesquisador, escritor e
professor Luiz Nazario, 50 anos, doutor em História pela Universidade de
São Paulo (com a tese “O Papel do Cinema na preparação do Holocausto”) e
profundo estudioso de temas que envolvem o nazismo, o anti-semitismo e
o terrorismo contextualizados nas áreas da propaganda, do cinema e da
animação. De família italiana, foi bolsista na Alemanha e em Israel e
tem mais de 100 artigos publicados em jornais e revistas especializadas.
É autor de 19 livros (o mais recente intitulado “Todos os Corpos de
Pasolini”), ensina Cinema na Universidade Federal de Minas Gerais e
coordenou o Grupo de pesquisa da Discriminação que, desde 1995, coleta
dados de atitudes e atividades de cunhos racista, anti-semita e
neonazista no país, para o relatório mundial “Anti-Semitism Worldwide”,
publicado anualmente pela Universidade de Tel Aviv.
ENTREVISTA:
.A
arte, como expressão imaginativa e criativa, estaria conceitualmente
imune às amarras da ética filosófica tradicional (e suas normatizações
em relação ao Bem e ao Mal)?
-
Tenho me batido, em meus escritos sobre arte e ideologia, contra a idéia
corrente de que o artista é um ser divino, acima do Bem e do Mal.
Naturalmente, talentos específicos distinguem um artista de outros
cidadãos que não possuem os mesmos talentos, mas esse privilégio não
isenta o privilegiado da responsabilidade por suas ações. Se o artista é
capaz de sintetizar numa imagem toda uma situação, sua síntese possui um
poder de impacto que deve ser considerado. Ao engajar sua arte numa
causa, o artista sabe – ou deveria saber – exatamente o que está em
jogo. Nenhum artista é obrigado a engajar sua arte. Mas se ele engaja
sua arte numa causa justa, por mais liberdade, paz, progresso, verdade,
ele deve ser recompensado por prestar voluntariamente um serviço à
humanidade. Da mesma forma, se ele engaja sua arte numa causa criminosa,
por mais terror, guerra, miséria, mentira, ele deve ser punido por
contribuir voluntariamente com a desumanidade. A forma dessa punição
deve ser estabelecida pela sociedade. Claro que certas sociedades podem
aproveitar-se dessa medida para punir os artistas que as incomodem,
estabelecendo uma nova censura, um novo totalitarismo, etc. Daí o receio
de se estabelecer critérios de punição para artistas. Os artistas
alemães contribuíram em massa com o regime nazista, desempenhando muito
bem a parte que lhes coube na execução nacional do Holocausto. Nenhum
deles foi punido por isso. E mesmo Leni Riefenstahl, tão próxima de
Hitler, glorificando o regime nazista com seus filmes de propaganda, foi
enfim reabilitada.
.É
crível ao artista/cartunista, no ato da criação, sublimar suas
ideologias e preconceitos?
-
Como disse, o engajamento da arte é uma opção política do artista. Se um
cartunista como Carlos Latuff dispõe-se a diabolizar os israelenses para
tornar aos olhos do mundo a causa dos palestinos, que ele adotou, mais
humana, ele sabe exatamente a que processos e técnicas sua arte precisa
recorrer. Tendo o domínio de sua arte, ele expressa exatamente o que
deseja expressar. Não pode alegar posteriormente inocência quanto a
isso. Naturalmente, tal artista não quer ser visto como racista, e por
isso ele se diz de esquerda, deprecia neonazistas e sustenta condenar,
em sua arte, apenas um Estado imperialista que massacra palestinos. Mas
ao concentrar a humanidade em apenas um dos lados do conflito,
diabolizando o outro lado, assume, em sua arte, que todos os crimes
podem ser cometidos contra o lado diabolizado.
.De
que forma a arte do cartoon tem sido usada como uma arma
sub-reptícia de guerra?
- O
cartoon sempre foi usado como arma de guerra, desde a Primeira
Guerra Mundial. Veja-se a animação O afundamento do Lusitânia (The
Sinking of Lusitania, EUA, 1918), do cartunista Winsor McCay, com
mais de 25 mil desenhos numa animação realista, enfatizando o peso
dramático da mensagem dirigida contra a Alemanha, cujos submarinos
haviam torpedeado e afundado aquele navio de passageiros, resultando em
1.195 vítimas civis, das quais 128 eram cidadãos norte-americanos. Na
Segunda Guerra o uso do cartoon na propaganda contra o inimigo
foi intensificado, tanto pelo Eixo quanto pelos Aliados. Mas nem toda
propaganda de guerra (caricaturas, animações, filmes, etc.) é
condenável. É preciso distinguir as propagandas que expressam pontos de
vista humanos de solidariedade, amor à liberdade e defesa de uma causa
justa das que expressam pontos de vista desumanos, ódio à liberdade,
defesa de uma causa injusta. Há propagandas aliadas que, ao combater o
racismo e a agressão do Eixo também se mostraram racistas e agressoras.
Nenhuma causa deve servir de pretexto para o artista desafogar a própria
bestialidade. O que ocorre atualmente no conflito Israel-Palestina é o
uso internacional do repertório de clichês anti-semitas da caricatura
anti-semita tradicional (dos séculos XIV-XIX), cujas fontes são os
sermões da Igreja católica; e nazista (dos anos de 1920-1940), cujas
fontes são Os protocolos dos sábios do Sião. Este uso não
se faz mais contra o Judeu (isto é, contra o povo judeu), mas contra o
Estado Judeu (isto é, contra todos os judeus que se identificam com este
Estado). É como se o anti-semitismo, após a criação de Israel,
redimensionasse seu ódio ao Judeu para o ódio ao Estado Judeu. Nesta
operação, os “anti-sionistas” esperam dividir o povo judeu entre
sionistas e não-sionistas e ainda conquistar uma parcela deles para a
causa da destruição da Israel. Algumas técnicas imagéticas dessas
caricaturas: 1. Animalização dos judeus ortodoxos (pintados sob a forma
de ratos, aranhas, serpentes, dragões, etc.); 2. Diabolização das
autoridades israelenses (Primeiros-Ministros com chifres e caudas de
diabo, cercado de chamas do inferno; renomeação de Israel como
“Israelixo” ou “Israhell”, etc.); 3. Negação do Holocausto (associação
de Auschwitz a um parque de diversões com inserção de uma roda gigante,
por exemplo); 4. Dessacralização da Estrela de Davi (sistematicamente
associada a suásticas, crimes, opressões e massacres); 5. Troca
histórica de papéis em situações históricas diversas (substituição das
tropas SS por soldados israelis, da suástica pela Estrela de Davi, de
judeus vitimados no Holocausto por palestinos vitimados por Israel); 6.
Pacifismo (associação da causa da destruição da Israel à Pomba da Paz,
sempre ferida, mutilada, esmagada e morta por Israel, o “eterno
perturbador da paz”, como Hitler, causador da guerra mais mortífera de
toda a História, chamava os judeus); etc.
.Qual
é o papel da globalização nesse contexto?
- A
globalização deu à História a dimensão do tempo real, ou seja, tudo
acontece em todo lugar ao mesmo tempo. O mundo, que sempre foi um, agora
é mais um que nunca. Todos os internautas têm acesso a todas as
informações de todos os lugares o tempo todo. Mas algumas verdades
horríveis não são assimiladas e a má-fé cresce na mesma medida. Numa
disciplina que leciono, Cinema e História, um aluno meu escolheu
analisar o filme Paradise Now. Como poucos, ele percebeu que o
homem-bomba palestino era santificado na cena do banquete, construída
como na Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Mas ao mesmo tempo,
recusou-se a perceber o sentido dessa santificação. Ele sabia o que eu
pensava a respeito. Mas se ele concordasse comigo precisaria recusar a
santidade da causa palestina, o que ele não estava preparado a aceitar,
pois se os terroristas palestinos não forem santos, Israel não seria
mais tão detestável. E ele precisava odiar Israel, precisava que Israel
fosse o Mal para manter funcionando sua visão de mundo, inteiramente
baseada na má-fé.
.Quais os fatores que favorecem, na sociedade brasileira atual, a
disseminação do preconceito e a demonização de Israel?
- A
idéia de que para ser cool, in, fashion, basta
odiar os Estados Unidos (o Grande Satã) e Israel (o Pequeno Satã), e de
que todo o resto virá automaticamente. Pensar dá muito trabalho, é mais
fácil seguir o rebanho. E se a nova onda é um novo tipo de fascismo, é o
que se terá no Brasil. Aliás, é o que já temos. Um novo fascismo de
esquerda, com discriminação total a Israel e aos EUA. Escritores e
artistas como Gore Vidal, José Saramago, John Le Carré, Jean Ziegler e
Mikos Theodorakis ajudaram a dar, através de declarações raivosas contra
Israel nas mídias de consumo, prestígio intelectual ao pathos
anti-semita. Mesmo escritores e artistas judeus precisam, agora, para
fazer sucesso junto às mídias, mostrar-se contra Israel em certa medida,
como o fez Susan Sontag, cujos ensaios admiro, em seus discursos
políticos, incluindo o de agradecimento ao Prêmio Jerusalém, coletados
recentemente em Ao mesmo tempo. Cineastas israelenses devem fazer
como Amos Gitai: criticar Israel em filmes e entrevistas, ou não
ganharão prêmios e retrospectivas em festivais internacionais de cinema.
A obrigação de atacar os EUA e Israel generalizou-se. Não que os EUA e
Israel sejam inatacáveis, mas quando se atacam apenas EUA e
Israel, e não se atacam os Estados que efetivamente suprimem
liberdades civis, acobertam terroristas, doutrinam crianças, perseguem
minorias, inferiorizam mulheres, etc. então não se trata de críticas
exprimindo uma visão humanista, mas de difamações propagando uma visão
desumana.
(26 de agosto/2008)
CooJornal
no 600