19/04/2008
Ano 11 - Número 577
Sheila Sacks ARQUIVO |
Sheila Sacks
‘HEROES’ OU ‘ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ’ |
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Na noite de 25 de setembro de 2006, em uma única tacada, 15 milhões de
pessoas foram surpreendidas com a descoberta de que um pequeno grupo de
seres humanos, portadores de habilidades extraordinárias, transitava de
maneira aparentemente imperceptível entre a população terrestre.
Tratava-se do fenômeno “Heroes”, série produzida pela rede de TV
norte-americana NBC e que se tornou, em poucos meses, a mais assistida
de toda a história da televisão. Fruto da imaginação do roteirista Tim
Kring, de 50 anos, “Heroes” conta a história de indivíduos comuns que,
de repente, vão se descobrindo dotados de superpoderes. Esses novos
heróis, que vivem em diferentes cidades do mundo, logo percebem que, de
alguma forma, estão conectados entre si e têm uma missão extraordinária
a empreender: deter o apocalipse (a destruição da cidade de Nova York e
a disseminação de um vírus letal) e salvar a humanidade.
Graduado em História das Religiões e Arte e criador do seriado policial
“Crossing Jordan” (2001 a 2007), Kring sentiu que seria necessária a
presença de um expert em super-heróis para auxiliá-lo no desenvolvimento
dos personagens e da própria trama. Associou-se, então, a um dos mais
criativos e premiados escritores de histórias em quadrinhos (HQs), o
norte-americano de ascendência judaica Jeph Loeb, 50 (Batman, Superman,
Hulk, Capitão América, Homem-Aranha, Supergirl, Homem de Ferro e
outros), consultor, produtor e autor de vários episódios das cultuadas
séries “Smallville” (temporadas de 2002 a 2005) e “Lost” (temporada de
2006).
FÃ-CLUBE
A parceria mostrou-se positiva e transcorrido um ano e meio da estréia e
com 33 episódios já vendidos para mais de 150 países (a BBC londrina
pagou R$1,5 milhão por episódio para garantir a exclusividade de
transmissão em todo o território do Reino Unido), “Heroes” faz a festa
dos internautas em centenas de blogs e fóruns, principalmente em virtude
de seus intrincados e instigantes enredos terem sido transmutados em
audaciosas e pujantes “graphic novels”. No início de 2008, consolidando
o seu status de hit, os personagens do seriado ganharam versão “toy” nas
feiras internacionais de brinquedos de Londres e de Nova York (Toy Fair),
para a alegria dos fãs e colecionadores. Também no Brasil a série
conquistou uma audiência surpreendente, sendo a mais vista na TV por
assinatura em 2007. Indicada ao “Globo de Ouro” (Oscar da TV
norte-americana) e aos prêmios “Emmy”, “Satellite” (da imprensa
internacional) e Saturn (ficção científica), “Heroes” recebeu a
consagração popular ao ser eleita, pelo “People´s Choice Awards”, a
série dramática favorita dos telespectadores norte-americanos.
É bem verdade que a greve dos cem dias dos roteiristas (novembro de 2007
a fevereiro de 2008) podou o encadeamento original da série, que se
iniciou com o módulo “Gênesis”, prosseguiu com “Generations”, não se
concretizou em “Exodus”, e segue para a 3ª temporada com “Villains”
(Vilões). Curiosamente, um dos personagens que pouco aparecem no
seriado, mas que ganhou um destaque excepcional nas HQs on line, foi o
da heroína Hana Guittelman, 27, uma ex-oficial da Inteligência
israelense (Mossad) que perdeu a mãe e a avó em um ataque terrorista.
Ela consegue se conectar mentalmente à Internet e, apesar de sua morte
ter sido tramada no universo das HQs, Jeph Loeb promete que a
consciência de Hana irá sobreviver e que em algum momento a personagem
voltará à série televisiva.
ALASCA
Em paralelo, percorrendo uma outra vertente de sucesso, o filme “Onde os
Fracos Não têm Vez” (No Country For Old Men), de Joel, 53, e Ethan Coen,
50, produzido em 2006, já amealhou duas dezenas de prêmios em festivais
internacionais e os principais lauréis da indústria cinematográfica dos
EUA: os do Sindicato dos Diretores, da Associação de Críticos e do
Sindicato de Atores, e mais as quatro estatuetas do Oscar/2008,
inclusive a de melhor filme. Na história adaptada do romance de mesmo
nome do escritor Cormac McCarthy, 74 (Prêmio Pulitzer de 2007), os
espectadores acompanham os passos de três personagens distintos que, por
conta de um acaso, se esbarram e têm as suas vidas emaranhadas em um nó
violento e mortal. A paisagem descampada, árida e opaca do Texas reforça
o clima barra-pesada desta ode contemporânea à face obscura, selvagem e
solitária do ser humano.
Filhos de um casal de professores judeus universitários e nascidos em
Minnesota – estado de invernos rigorosos, fronteiriço ao Canadá e cuja
capital Mineápolis já foi considerada, na década de 1950, a capital do
anti-semitismo nos Estados Unidos –, os arredios e irônicos irmãos Coen
escolheram viver em Nova York, a cidade mais judaica (1,7 milhão de
judeus) e cosmopolita do planeta. Com um filme ainda inédito na praça,
(‘Burn After Reading’, com John Malkovich, Geoge Clooney e Brad Pitt),
que tem como foco a CIA, a mítica agência de Inteligência
norte-americana, a dupla também já esquenta os motores para levar às
telas um novo trailer noir, desta vez tendo como base a controversa obra
de ficção-policial “The Yiddish Policemen’s Union”, de Michael Chabon,
44, outro laureado com o Pulitzer. Escritor de origem judaica, Chabon
irritou setores da comunidade ao engendrar uma história de morte e
mistério nas terras geladas do Alasca, território alçado a uma espécie
de nova Israel, na metade do século 21, e cujos habitantes judeus, aos
milhares, são forçados a uma retirada maciça.
LOJINHA
Em entrevista à revista brasileira Carta Capital, duas semanas antes da
cerimônia do Oscar, Ethan Coen, ao lado do mano Joel, ancorados
provisoriamente em Los Angeles, surpreendeu o correspondente Eduardo
Graça com uma frase que deu o tom da reportagem. Perguntado sobre a
importância de verem seu filme consagrado em Hollywood, a resposta soou
como um estampido: “Honestamente, se as indicações e uma vitória abrirem
oportunidades de trabalho, alargarem nossas possibilidades, ótimo! Mas
não há nenhuma significância maior do que esta. No fim, a questão, para
nós dois, é a mesma: é bom ou ruim para os judeus?”. Ressaltando o tom
jocoso da frase e avaliando que a mesma estaria servindo como “mote e
escudo” dos irmãos cineastas na batalha californiana de egos que
antecede a maior e mais disputada festa do cinema mundial, o
correspondente achou por bem finalizar a matéria com o seguinte
comentário pouco elegante: “Afinal, a lojinha dos Coen tem de abrir
novamente no dia seguinte”.
CORDA BAMBA
Fatos recentes ocorridos no Rio de Janeiro guardam alguma similitude com
a tal “lojinha dos Coen” e sugerem que os nossos heróis do dia-a-dia
também são condutores de poderes especialíssimos, tais quais os
personagens de “Heroes”. Afinal, lidar com tranqüilidade e administrar
sensatamente as situações incômodas, controversas e inconvenientes que
pipocam no cotidiano e tendem a respingar em toda uma sociedade,
composta de pessoas de variados credos, requer presenças
intelectualmente preparadas, socialmente conectadas e emocionalmente
afinadas com a pluralidade. O desabafo impróprio da simpática cantora
Nana Caymi publicado na revista “Quem”, de circulação nacional – “Se eu
não matei Cristo porque tenho que sofrer tanto” - ; a charge imprudente
do talentoso cartunista Pedro de Luna, veiculada no “Jornal do Brasil”,
em que se apresenta crianças judias reclamando que no Natal só recebem
presentes de R$1,99; e a impensável “homenagem” do criativo carnavalesco
Paulo Barros, da Escola de Samba Viradouro, a mais cruel chacina do
século 20 (Holocausto), através de um monte de cadáveres encimado por um
sambista fardado de Hitler, demonstram, basicamente, uma despreocupação
egoísta e inconseqüente em relação à sensibilidade do outro. Introduzir
e tornar audível, nessa hora, a voz da história, da razão, da justiça e
da verdade, de forma clara, firme, afável e fraterna, é uma missão para
poucos privilegiados.
Acrescenta-se, ainda, a premissa da ausência de premeditação, geralmente
evocada pelos autores da gafe e que correntemente encontra eco no seio
da maioria da população. Se, por um lado, este é um dado positivo - pois
atesta a saudável vigência da porção generosa do ser humano - por outro
dificulta a posição de quem procura demonstrar que, apesar da alegada
inocência, existiu, sim, uma ofensa moral nas palavras ou ações
questionadas.
O mesmo pode-se afirmar em relação ao uso da palavra “judiação” e do
verbo “judiar”, entendidos como “fazer sofrer” ou “maltratar”, segundo o
dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Admite-se até que pessoas com
pouca erudição se valham desses termos porque os idiomas, em geral,
incorporam palavras que traduzem preconceitos milenares perpetuados
aleatoriamente pelas gerações. Porém, em pessoas de maior bagagem
cultural chega a ser imperdoável a utilização desses termos grosseiros e
agressivos, tanto na linguagem coloquial quanto na redação de textos
veiculados pela mídia.
BOMBA-RELÓGIO
Acerca do preconceito que por gerações tem acompanhado a população
judaica em sua trajetória terrena, alguns escritores e intelectuais
contemporâneos apresentam uma visão curiosa sobre o fato. Utilizando-se
de uma metáfora, eles comparam o povo hebreu aos canários das minas de
carvão. A jornalista inglesa Melanie Phillips, autora da obra que narra
a expansão do Islamismo no Reino Unido (Londonistan, publicado em 2006),
assinala que “os judeus sempre foram semelhantes aos canários que os
mineiros levavam paras as minas subterrâneas: quando os canários
morriam, os trabalhadores sabiam que o ar estava contaminado”.
A jornalista e ativista política espanhola Pilar Rahola e o rabino
norte-americano Harold Kushner, autor do best-seller “Quando Coisas
Ruins Acontecem às Pessoas Boas” (1981), também têm comparado o calvário
dos canários, aves mais sensíveis que o homem à falta de oxigênio e
gases tóxicos, ao sofrimento dos judeus, em artigos publicados em 2003 e
2004, ressaltando a trágica qualidade desses passarinhos que “reagem ao
perigo antes mesmo que o ser humano o faça”, funcionando como autênticos
escudos de proteção para os trabalhadores das minas.
Hoje os canários estão aposentados de seu papel de bomba-relógio nas
minas de minérios. Foram substituídos por aparelhagem eletrônica. Mas
para Melanie, o estado de Israel, na atualidade, faz o papel de
“canário” nas “minas do mundo”, ou seja, quando Israel vai mal o mundo
está em perigo. Logo, como na fantasia de “Heroes”, onde heróis anônimos
lutam para salvar a humanidade, se faz necessário, com urgência,
reviver, multiplicar e perpetuar a tradição judaica dos 36 justos que
respondem, a cada geração, pela continuação do mundo. Seres humanos de
habilidades muito especiais, conscientes, corajosos, imbuídos de
bondade, vontade e fé, e que funcionam como autênticos escudos contra a
maldade e o apocalipse. Porque em um planeta povoado de vilões,
decididamente, repetindo os Coen, os fracos – de qualquer idade – não
têm vez.
(19 de abril/2008)
CooJornal
no 577
Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras
Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO
JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
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