22/03/2008
Ano 11 - Número 573
Sheila Sacks ARQUIVO |
Sheila Sacks
A INCRÍVEL HISTÓRIA DA BÍBLIA DOS AÇORES
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Durante seis anos o jornalista e pesquisador Inacio Steinhardt seguiu os
passos de uma misteriosa Bíblia (Torá, em hebraico) que foi encontrada,
em 1997, na gruta da Aldeia de Rabo de Peixe, situada em uma das nove
ilhas do arquipélago dos Açores, no Atlântico.
Muitos fatos já foram desvendados, porém ainda persistem alguns pontos
obscuros sobre a incrível jornada do pergaminho.
Nascido em Lisboa, em 1933, e vivendo em Israel desde 1976, Steinhardt é
correspondente da agência de notícias Lusa, presidente da Liga de
Amizade Israel - Portugal e Comendador da Ordem de Mérito da República
Portuguesa.
O jornalista também é co-autor do livro “Ben-Rosh- Biografia do Capitão
Barros Basto, o Apóstolo dos Marranos”, que conta a história de um
oficial do exército português que retornou as suas origens judaicas.
AVENTURA E MISTÉRIO NA ROTA DE UM PERGAMINHO DO SÉCULO 18
Em que data e de que forma o senhor teve conhecimento da existência de
uma Torá do século 18 no arquipélago de Açores?
- Na nossa profissão não é raro acontecer que as histórias chegam até
nós e não nos largam enquanto não as contamos. Foi o que me aconteceu
também desta vez.
No dia 8 de Maio de 1997 abri na Internet uma página que listava os
jornais portugueses. Nesse dia o mouse parou sobre O Açoreano Oriental.
Eu nunca tinha lido um jornal do arquipélago dos Açores. Não resisti e cliquei para ver como era.
Logo na primeira página, em manchete, vinha a notícia sobre dois alunos
da escola primária de Rabo de Peixe, uma aldeia de pescadores ao norte
da Ilha de São Miguel, que, na véspera haviam achado, dentro de uma
gruta, dois rolos de pergaminho, escritos com caracteres estranhos, e
enrolados em volta de dois rolos de madeira. Suspeitei logo tratar-se de
uma Torá (Velho Testamento).
Nos dias seguintes todos os jornais dos Açores repetiam a história,
acrescentando que se tratava de um rolo só, que os pequenos tinham
cortado ao meio, levando alguns fragmentos consigo, um dos quais tinha
sido identificado pelo professor de Religião e Moral da sua escola como
sendo hebraico ou aramaico.
A partir daí a imaginação não teve limites, atribuindo-se ao manuscrito
a uma profecia papal e o local como lugar de culto secreto dos marranos
(cristãos-novos, aqueles que foram convertidos à força no século XV). Um
jornal americano chegou a noticiar a existência de inscrições nas
paredes da gruta, nada menos do que em ídiche (idioma ainda usado por
judeus, corruptela do alemão), imagine!
De que maneira a Torá chegou até lá?
- Conheço suficientemente a existência dos cripto-judeus (marranos) em
Portugal para excluir a possibilidade daquela Torá lhes ter pertencido.
A hipótese que me parecia mais lógica era de que a Torá seria de uma das
cinco sinagogas que funcionaram nos Açores, no século XIX, dos judeus de
origem marroquina que lá viveram. A minha suspeita confirmou-se.
Existia na época comunidade judaica em Açores?
- Em 1997 já não existia nenhuma comunidade judaica nos Açores. Durante
o século XIX, até em torno de 1880, havia ali uma comunidade de judeus
marroquinos que chegou a ter quase 250 pessoas e que viviam em diversas
ilhas do arquipélago. As suas sinagogas funcionavam em casas
particulares, com exceção da sinagoga Shaar Shamaim, na cidade de Ponta
Delgada, na Ilha São Miguel, que tinha edifício próprio e ainda hoje lá
está, embora esteja fechada há muitos anos. Todas as Torás dessas
sinagogas foram gradualmente sendo transferidas para a sinagoga Shaare
Tikvá, de Lisboa.
O senhor poderia detalhar as aventuras e as desventuras desse
pergaminho?
- Bom, é uma longa história que levei seis anos para desvendar. Em
poucas palavras, a Torá foi escrita nos primeiros anos de 1700, na
cidade marroquina de Mogador, que hoje se chama Essaouyra, na costa
atlântica de Marrocos. Um judeu de Mogador, Mimon Abohbot, comerciante,
mas pessoa muito letrada em judaísmo, trouxe ao Açores duas Torás para a
sinagoga que funcionava em sua casa, na cidade de Angra de Heroísmo, na
Ilha Terceira, onde ele servia de rabino. Em seu testamento ele deixou
escrito que, após a sua morte, e não havendo mais judeus na cidade, uma
Torá deveria ser enviada para a sinagoga da cidade de Ponta Delgada
(Ilha São Miguel) e a outra levada de volta para Mogador, em Marrocos.
Há informações da época que confirmam que a Torá foi encaixotada para o
embarque, mas, por razões que ignoro, o caixote teria ficado nos Açores.
Cem anos mais tarde, numa taberna da aldeia de Porto Judeu (um nome que
também tem a sua história, para contar outro dia), na Ilha Terceira, o
caixote foi entregue a um jovem capitão judeu, da base aérea americana
das Lajes, também na Ilha Terceira. O capitão Marvin Feldman teve receio
de abrir o caixote, pensando que se tratava de um caixão contendo os
ossos de alguém. Mas, quando finalmente teve coragem para abrir,
encontrou a Torá. Ele mandou vir dos Estados Unidos um manto para a Torá
e começou a usá-la no serviço religioso improvisado, na capela da base,
para os militares judeus. Um fato curioso, que não resisto em relatar, é
que nenhum dos judeus da base tinha conhecimentos para ler o texto da
Torá sem os sinais diacríticos. Quem resolveu o problema foi o capelão
católico, padre Don Hunter, que havia aprendido hebraico e a leitura da
Bíblia no original, e que vinha todos os sábados à capela ler a Parashá
(capítulo semanal) para os judeus. Em 1973, quando regressou aos Estados
Unidos, o capitão Feldman (hoje coronel aposentado), deixou a Torá na
base, dentro de um bonito armário de madeira (Aron HaKodesh) que mandou
construir. Durante muito tempo ninguém soube na base onde se encontrava
a Torá do capitão Feldman. Hoje eu sei que entre 1994 e 1997 ela esteve
com uma senhora que exercia as funções de líder laico judeu. Essa
senhora, antes de regressar aos Estados Unidos, teve a intenção de
mandar a Torá para a sinagoga de Lisboa. Por motivos que ainda
desconheço, ela a teria mandado para alguém, em Ponta Delgada, que, por
sua vez, deveria embarcar a Torá para Lisboa. E foi precisamente em maio
de 1997 que alguém a escondeu dentro da gruta onde foi encontrada.
Qual era o estado de conservação da Torá quando foi encontrada?
- Em perfeito estado de conservação, o que revela que não estava naquele
local há muito tempo. O ar salgado do mar teria pelo menos corroído a
tinta das letras e desfeito as costuras do pergaminho. A Torá
encontrava-se dentro de um grande saco de plástico, como que pronta para
o embarque. Identificado por especialistas da Universidade de Jerusalém
como um pergaminho escrito em Marrocos nos anos de 1700, estava coberto
por um manto de características ashkenazis (origem européia) e até
costurado à máquina, portanto um manto que teria, quanto muito, 150
anos. Pelas fotografias, o capitão Feldman confirmou-me que era igual ao
que ele mandara vir dos Estados Unidos. Esse foi o primeiro fio da meada
que me serviu para desvendar o mistério: uma Torá sefaradita (de origem
oriental) do século XVIII, com um manto ashkenazi moderno. Encontrava-se
em perfeito estado de conservação quando os meninos a encontraram. Eles
porém a destruíram, cortando-a em pedaços para vender na aldeia a
pessoas que imaginavam obter grandes lucros com a antiguidade. Além
disso, quando a notícia foi divulgada, eles tinham deixado o
remanescente na gruta. Logo no dia seguinte alguém foi lá (talvez a
mesma pessoa que a escondeu) e tirando os dois rolos remanescentes para
fora, desenrolou um dos lados para tirar o eixo de madeira (ets haim) e
arrancar os punhos e pontas que eram de marfim. Por alguma razão só
conseguiu tirar o eixo de um lado.
Foi feita alguma restauração? Quem fez?
- O remanescente do achado foi entregue à Biblioteca e Arquivo Regional
da cidade de Ponta Delgada. Depois foi enviada para o Departamento de
Restauros da Biblioteca Nacional de Lisboa, onde fizeram um magnífico
trabalho de restauração, com a ajuda do então rabino da Comunidade
Israelita de Lisboa. Apenas ficaram vazios os lugares dos fragmentos que
nunca foram devolvidos. Foi feita também uma bonita caixa-estojo, da
mesma cor do manto de veludo. Agora a Torá encontra-se novamente exposta
na Biblioteca de Ponta Delgada, nos Açores.
Sua pesquisa durou seis anos. Foi difícil seguir os caminhos percorridos
pela Torá?
Foi necessária muita persistência e muita sorte. Seguindo o fio da meada
fui encontrar, entre os meus papéis, um artigo de uma revista hebraica
citando um jornal judeu de Kansas City, Estados Unidos, que se referia
ao achado de Marvin Feldman. Qualquer coisa me fez guardar esse artigo
(não calcula quantas toneladas de recortes tem o meu arquivo pessoal).
Depois foi uma missão impossível contatar tantos Marvin Feldman nos
Estados Unidos, até localizar, ao cabo de seis anos, o homem certo, na
Austrália! Hoje ele vive na Flórida. Marvin foi extremamente simpático,
gravando para mim o relato exato da sua parte na história. O
interessante é que em 1973, ano em que o capitão encontrou a Torá em
Porto Judeu, eu tinha comprado num sebo em Lisboa um sidur (livro de
rezas) manuscrito pelo mesmo Mimon Abohbot, em 1874, em Angra do
Heroísmo. Copiou-o manualmente na intenção de que seus netos rezassem
por ele em sua memória. Esse fato despertou a minha curiosidade e
investiguei a biografia desse judeu piedoso, publicada em diversas
fontes. Quando ouvi a gravação do capitão Feldman e a história do
caixote, lembrei-me das duas Torás de Abohbot e do seu testamento. Fui
consultar essas fontes e lá estava o episódio da caixa de madeira que
deveria ser embarcada para Mogador. Em abril de 2005 estive pela
primeira vez nos Açores, nas ilhas de São Miguel e da Terceira, para
proferir duas palestras, a convite do Governo Regional. Aí eu contei a
história da Torá, que por duas vezes se recusou a abandonar os Açores.
Foi então que, novamente por acaso fortuito, soube do envio da Torá, da
base das Lajes para Ponta Delgada. E pude assim acrescentar nas minhas
palestras que foram três vezes que a Torá se recusou a sair dos Açores.
Na mesma oportunidade visitei o cemitério judaico da cidade de Angra do
Heroísmo, e, perante a sepultura de Mimon Abohbot e na presença do único
judeu que mora na ilha, li, no livro piedosamente manuscrito por ele, a
oração pelos mortos (Hashkará) na versão sefaradita em que Mimon listou
os mortos de sua família. Foi um momento muito emocionante para mim.
Como vê, o quebra-cabeça ainda não está terminado. Falta ainda saber
duas coisas: onde esteve o caixote durante quase 100 anos, até aparecer
na taberna da aldeia de Porto Judeu? Estive no local onde fui recebido
de forma calorosa pela autoridade regional e com a sua ajuda entrevistei
muitas pessoas idosas, mas ninguém se lembrava do que sucedera 30 anos
atrás. A outra peça da charada que ainda falta desvendar, é saber quem
recebeu a Torá em Ponta Delgada e quem, e por que, a escondeu na gruta
em Rabo de Peixe.
A exposição do pergaminho é aberta ao público?
Sim. Recentemente o pergaminho foi disponibilizado aos visitantes na
Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Foi outro momento
emocionante conhecer a Torá, que de alguma forma me procurou para eu
escrever a sua história, e ler nela um capítulo. Mais: o Diretor
Regional da Cultura afirmou-me que, se a sinagoga de Ponta Delgada for
restaurada e conservada como museu judaico, sendo simultaneamente um
lugar de orações para turistas judeus que visitam os Açores, e havendo
segurança contra roubos no local, ele encararia a possibilidade de
mandar transferir para lá a Torá de Rabo de Peixe. O pergaminho ficaria
em exposição, visto que não pode ser utilizado para o culto, segundo a Halachá (lei judaica). Hoje já não existe comunidade judaica nos Açores.
Apenas um judeu inglês vive na Ilha Terceira e alguns descendentes de
judeus, que hoje já são católicos. Entre estes tenho o dever de destacar
a obra meritória dos membros da família Bensaúde, que já não sendo
judeus têm conservado, por conta própria, os cemitérios judeus ainda
existentes no arquipélago e parte das obras de conservação da sinagoga.
A Torá já foi apresentada em outros locais?
Não. Aliás ela nada tem de extraordinária, além de sua história
fantástica. Houve a sugestão de levá-la para Angra do Heroísmo, para
estar presente quando da minha conferência, mas a idéia foi abandonada
por problemas logísticos e de segurança.
Mudando de tema: em 1997 o senhor publicou um livro sobre o Capitão
Barros Basto, conhecido como o Dreyfus Português (foi afastado pelo
exército em 1943). Qual é a importância deste personagem na moderna
história judaica-portuguesa?
Eu não concordo muito com a designação de Dreyfus Português, porque as
circunstâncias foram bem diferentes. Barros Basto não foi destituído da
sua patente militar. Foi sim exonerado do exército e viveu seus últimos
anos ferido no mais íntimo da sua alma, e em condições econômicas muito
difíceis. Não foi acusado de traição, foi castigado com o intuito de
aniquilar a obra que havia iniciado. Ele começou a sua vida rejeitando,
instintivamente, a religião católica em que foi educado pela mãe, e
buscando a verdadeira religião com todas as forças da sua alma. Passou
por várias fases até que seu avô paterno, antes de falecer, o escolheu
para transmitir o grande segredo da família: eles eram descendentes dos
judeus convertidos pela força, em 1497. A Obra do Resgate, que ele criou
para convencer os outros "anussim" (convertidos à força) de que já havia
liberdade religiosa em Portugal, foi um trabalho gigantesco que
encontrou eco em todo o mundo judaico. E conseguiu construir uma
imponente sinagoga na cidade do Porto. Mas foi uma obra que durou apenas
enquanto durou essa liberdade religiosa, e enquanto o espírito de
discordância entre os judeus não foi aproveitado pelo clero, que não via
com bons olhos o regresso dos marranos ao judaísmo. Em nossos dias a
sinagoga Mekor Haim, que ele construiu, voltou a ser um pólo de atração
para um número crescente de bnei-anussim (descendentes dos ‘forçados’)
que procuram regressar ao Judaísmo.
Existe curiosidade nas famílias portuguesas em investigar possíveis
raízes de ascendência judaica?
Imensa. E não só curiosidade como grande perseverança na investigação,
quase sempre tão difícil quanto serem aceitos no seio do judaísmo
institucional. É um movimento que se alastra rapidamente, não só dentro
de Portugal, como nas comunidades de descendentes de imigrantes
portugueses em vários países. Soube que no Brasil o seu número já excede
a um milhão, o que é bem possível devido às raízes históricas. Mas
também nos Estados Unidos, no México, na África do Sul e em alguns
países europeus. Eles estão agrupados em diversos fóruns da Internet,
principalmente no "Saudades", heroicamente dirigido por Rufina
Bernardette da Silva Mausembaum, em Johannesburgo, África do Sul, ela
própria uma retornada.
Como presidente da Liga de Amizade Israel-Portugal, quais as ações
realizadas por ambos os lados para estreitar esse relacionamento?
A nossa missão é promover a amizade entre os dois povos, através do
mútuo conhecimento em todos os aspectos da cultura e da história comum.
Para isso divulgamos informação, realizamos palestras, apresentamos
documentários e colaboramos em projetos mais ambiciosos da Embaixada de
Portugal e de instituições universitárias. Cerca da metade dos nossos
membros são israelenses de origem portuguesa, sendo a outra metade
também de israelenses, atraídos para Portugal e a sua cultura. O número
destes últimos, felizmente, vem aumentado. Lutamos com grandes
deficiências de meios, pois não temos sequer uma sede, não recebemos
quaisquer subsídios e tudo é feito através do trabalho voluntário dos
nossos membros. Em Portugal existe uma associação portuguesa paralela
com a qual mantemos boas relações, mas com a qual não estamos
vinculados.
(22 de março/2008)
CooJornal
no 573
Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras
Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO
JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
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